O dia não é um acaso. 15 de junho é formalmente a data em que passa a sua pasta de Presidente e sai da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. (AEFML). A poucas horas de entrar no Grande Auditório João Lobo Antunes, onde fará a sua despedida formal enquanto Presidente da AEFML, João Martins recebe-me na sala principal que tem vista ampla para a escadaria da Faculdade.
Lá dentro e quase a terminar de deixar o chão a brilhar está a Dona Elvira. Anos a trabalhar no Hospital, os acasos da vida levá-la-iam a manter-se, mas desta vez na Faculdade e entre os mais jovens. ”Eles são muitos e ao início é para aqui uma barafunda e nem sabemos quem são eles e depois de um tempo vão-se embora e nós é que ficamos a sentir muita falta deles”, dizia-me com um certo instinto maternal que é inevitável quando acompanhamos o crescimento de alguém que cuidamos.
“Veja lá se estivermos a incomodar, vamos para outro lado”, dizia o João, claramente mais um dos meninos adotados pelo coração de Elvira que não gosta de mais nomes antes.
Pedi ao João Martins os dois discursos que melhor o apresentarão nesta entrevista. O de começo de mandato e o de fecho. Passados alguns dias chegavam-me ao telefone os textos. Acabara de alterar ainda ligeiríssimas coisas. Se o João não o fizesse, eu estranharia. Não por ser inconstante, ou deixar as decisões adiadas até ao limite dos ponteiros, mas porque está permanentemente em observação dele e das circunstâncias e não tem qualquer ansiedade em mudar o seu rumo, ou apenas um texto se o tempo lhe ditar outras reflexões.
Sempre foi assim.
Alentejano de Beja, sólido nos pensamentos, leva em lume brando as decisões, olhando para o que o rodeia e procurando sempre as respostas que lhe chegam no contacto com o mundo. E como as respostas levam o seu tempo, assim também o João saboreia o tempo para chegar à decisão certa.
Leitura no vago de alguém que mal conheço? Não é verdade.
Não estranho agora que me conte que passou pela Força Aérea para ser piloto, que se tenha quase candidatado à NOVA, para Gestão e que apenas na noite de se fecharem as candidaturas ao ensino superior, tenha então decidido por concorrer a Medicina. Eram precisamente 23h13m26s quando o fez.
Se é ambivalente que baste nas suas competências académicas, uma coisa o João tem clara, o desporto é uma grande paixão que tem e não tanto por o praticar fielmente, porque também já o fez com o ténis, mas porque o desporto traz em si mensagens de uma bravura primordial. “A exaltação dos feitos das pessoas, a luta por metas e desafios próprios”, explica em modo de justificação para não ter a mesma bravura dos que admira. Jogou vários anos ténis e fez competição, mas o empenho na Faculdade obrigou-o a abrandar, mas nunca a desistir de se manter ligado ao desporto.
Desde o 1º ano que faz parte da AEFML. Entrou em junho, mesmo no final do ano letivo.
Acredita que passar vários anos na AEFML, antes de chegar a um patamar de maior decisão, é uma preparação natural para se liderar e conhecer as pessoas e as diversas pastas. Ainda assim, nunca exclui a diferença e admite que o disruptivo possa trazer eventualmente outras características inovadoras e importantes para lá daquelas que os grupos que asseguram a continuidade podem trazer.
Foi-se preparando devagar para o lugar que acabou por ocupar como Presidente da Associação que representa os Estudantes dentro da FMUL. Não foi, por isso, para ele um enorme espanto a grande maioria das funções que desempenhou neste último ano de mandato. A observação e experimentação dos anos anteriores permitiu-lhe prever o que aí vinha de responsabilidades, assim como calcular ações em relação às entidades tutelares, como a Direção da FMUL ou federações (Associação Nacional de Estudantes de Medicina, ou Federação Académica de Lisboa).
Também para ser estudante de Medicina há que ter preparação e esta é de ter em conta até para estudar. Leva tempo para ganhar novo ritmo e para criar métodos de estudo esta máxima também se aplica. A base de aquisição do conhecimento é dura, verdade, mas prepara para os anos seguintes e tem visível aplicabilidade na aquisição dos conhecimentos que se seguem. O João explica bem o caos que é ouvir sobre mecanismos fisiológicos e nomes de Anatomia que são perfeitos estranhos nos primeiros tempos da faculdade, mas que há medida que o conhecimento se vai cimentando os anos seguintes são bastante mais prazerosos.
O envolvimento na vida académica e associativa obrigou-o a ser proporcionalmente distante dos hábitos de sempre. Desmultiplicou-se em compromissos, reuniões, eventos, assembleias gerais, momentos de construção de equipa e preparação de discursos.
Rapaz orgulhoso da sua terra, talvez a escolha final da profissão tenha sido pela possibilidade infinita de mobilidade. Quer ser de vários lugares e não ficar preso a um local só. Fator que o fez decidir por Medicina, profissão que se exerce tanto num grande centro urbano, como numa pequena vila.
Terra de ambiente próximo, descreve o seu Alentejo como um espaço eclético e familiar, permitindo que se construa uma personalidade de forma cuidada, segura. Confessa a rir que quem lhe é mais próximo, diz que o João fala bastante. Bom comunicador diz-me que quando se sente mais descontraído fala e não para. As pessoas marcam-no e isso sente-se pelo seu lado caloroso de quem observa o outro e analisa temas e grupos de trabalho.
Discreto, não gosta de grandes focos de luz em cima dele, prefere as ações discretas de um bom profissional de bastidores se nunca for visto. Não são características que lhe sejam atribuídas da boca para fora,
O pai desenvolve projetos de valorização regional ligados ao Projeto Alqueva. A mãe com um percurso ligado ao Ensino Superior sabe bem o que se passa neste meio. Quem os conhece diz que o João tem a diplomacia do pai, mas o próprio considera o pai mais disruptivo, não tem medo de ser “positivamente inconveniente, mas ainda vou fazer por buscar essa parte", diz a sorrir. Com uma irmã mais nova que entra em breve no ensino superior não sabendo também ela ainda que carreira seguir. Lá por casa a diplomacia sempre imperou, explica, nada se fazia por pressão, medo ou imposição. As decisões eram conjuntas e sem serem guerreadas.
Um dos momentos mais turbulentos que presenciou enquanto membro da AEFML foi em 2019 com a extinção de um jornal satírico das Olimpíadas da Medicina na Reunião Geral de Alunos, o órgão máximo da AEFML, em que é o coletivo que toma as decisões finais.
Relata que no mais recente mandato, e apesar dos tempos difíceis de ter atravessado um ano de pandemia, o balanço foi harmonioso e foram reconstruídos muitos dos projetos que fazem a diferença para a Comunidade Estudantil.
Pegando na extinção do jornal das Olimpíadas, como exemplo, pergunto-te se gostarão as pessoas assim tanto de rir de si próprias. Penso na Noite da Medicina e coloco a mesma pergunta. Se mantivéssemos todos no anonimato, o que diriam os alunos sobre a sátira?
João Martins: Essa foi uma das nossas grandes discussões neste mandato. Questionamo-nos se para manter o Pasquim (jornal das Olimpíadas da Medicina) valeria a pena ter uma declaração de consentimento para aqueles que pudessem ser mencionados. A sociedade tem mudado um pouco na maneira como lida com estes temas. A verdade é que a Noite da Medicina continua a ser um oásis, porque a sociedade está cada vez mais assética em relação ao humor. O humor entra sempre um pouco na vida da outra pessoa e a questão é se a devemos ou não proteger disso. Nós trabalhamos para os estudantes e se a maioria identificar que há que manter resguardo, assim o faremos. Só faz sentido manter algo, não porque a direção assim o entende, mas porque a maioria dos estudantes assim o quer. No que toca concretamente à Noite da Medicina acho que ela é um espetáculo singular, porque marca o culminar de memórias de 6 anos e um dever cumprido por todo o percurso, pelo que a sátira acaba por ser melhor recebida neste contexto.
Como é que o rapaz de Beja, primordialmente tímido, chega a este campus enorme e se torna Presidente da Associação de Estudantes?
João Martins: A pergunta já revela um lado meu que eu creio não transparecer. A minha timidez de base sempre foi algo que fui trabalhando. Aprendi cedo a quebrar as minhas próprias barreiras, nos cumprimentos assumo logo eu o gesto inicial. E nas conversas iniciais assumo-me logo como expansivo, sendo na verdade mais inato em mim a reserva. Então é provável que a maioria das pessoas da Faculdade, ao ler na pergunta que sou tímido, nem me reveja nessa descrição.
Quanto ao facto de vir de Beja considero uma vantagem. Cidade relativamente pequena, tem um conjunto de serviços que nos permitem o acesso a várias realidades, desde a música, ao desporto, aos cuidados de saúde. A uma escala pequena, Beja tem praticamente tudo o que se precisa e oferece-o de forma próxima, com qualidade. Isso acaba por dar segurança numa fase de crescimento pessoal.
Devo muitos aos meus pais o suporte que me deram, mas também será justo agradecer a todos os que me antecederam, os que me coordenaram nos departamentos por onde passei e aqueles com quem partilhei atividades. Com todos eles, mesmo quando estamos em desacordo de ideias, aprendemos sempre.
Há uns tempos um piloto da Força Aérea dizia-me que só no dia em que assumiu o papel de formation leader- caça dianteiro que conduz todos os outros - é que percebeu a real dificuldade de se comandar o grupo inteiro do caça que vai à frente. É diferente estar no lugar de comando, em vez de seguir atrás de alguém que comanda por nós?
João Martins: Há muita diferença. A primeira vez que liderei uma equipa, ela era muito pequena, eram 3 pessoas e eu tinha escolhido todas, sabia bem que eram e escolhi o perfil. Senti-me como peixe na água. Na presidência foi muito diferente. Aumentámos para mais 4 elementos na direção e éramos um total de 33 elementos. Ter de lidar com estas 32 pessoas foi mesmo muito desafiante. Todos nós temos personalidades diferentes, e apesar de olharmos para os assuntos até de maneiras dissonantes, sempre soubemos colocar essas diferenças ao serviço da equipa. Justiça seja feita ao Departamento de Gestão e Tesouraria que dividiu muito comigo a responsabilidade de todas estas tarefas.
Recordo-me bem de uma aula do 1º ano que o Tomaz Morais, ex-selecionador Nacional de Rugby e atualmente coordenador de Formação do Sporting, nos deu. Ele ensinou-nos muito sobre o espírito de equipa e a verdade é que este espírito não vale só para o desporto, é muito necessário para nós enquanto equipas de médicos, enfermeiros e auxiliares. A mensagem subjacente é que para o líder, o que faz a diferença é se conseguiu motivar todos os que estão consigo. Todos devem estar alinhados. Recordo na minha tomada de posse que citei Antoine Saint-Exupéry, "Se queres construir um navio, não chames as pessoas para juntar madeira nem lhes atribuas tarefas e trabalho, ensina-as sim a desejar a infinita imensidão do oceano". A mensagem é a mesma, o nosso trabalho será mais eficaz se conseguirmos que as pessoas tenham um objetivo comum. A partir daí o resto acontece.
Ser líder de um grupo é um exercício de ego ou altruísmo? É porque se quer representar os outros, ou porque há uma certa exposição do ego?
João Martins: Há sempre uma duplicidade. Sou muito adepto dos equilíbrios e por isso digo que na liderança tem de existir um misto das duas vontades. Tenho um espírito de missão diante de um grupo dos 33 dirigentes da AEFML, ou dos 2900 estudantes que somos. É preciso ter consciência que o que falamos tem de causar impacto, tem de mobilizar acontecimentos. É importante haver uma confiança pessoal sustentada para os propósitos que a pessoa está a representar vejam o melhor resultado os objetivos a que se propõe sejam alcançados.
Como é que foi esta gestão diária de trabalhar com um diretor que era também o teu enquanto estudante?
João Martins: A primeira vez que falei com o diretor, foi na minha Tomada de Posse. Sempre existiram apresentações prévias à Tomada de Posse, mas até nisto a pandemia trouxe de facto muitas particularidades. Obviamente já tinha ouvido o Professor mas nunca tinha contactado diretamente. O momento da nossa primeira conversa causava-me um certo nervosismo. Perguntava-me que ambiente iria eu criar e se conseguiria traçar objetivos comuns. Lembro-me que a primeira reunião fui quase sem assunto para não ir tão pressionado e ficar apenas a conhecê-lo. Levei claro temas comuns, mas procurava apenas estudar a nossa proximidade e quebrou-se o gelo. A partir daí senti um ganho de confiança progressivo. Falar com a Direção foi um caminho de trabalho imprescindível para uma fatia grande do que fizemos durante o ano.
Há temas que não são consensuais entre alunos e direção. Bem sei que tu João podes ter uma posição sobre algo e ires defender a posição contrária se a maioria assim o pedir. E penso em questões que podem ser estruturais e que podem fazer dano e que, gostando ou não, tens de as levar a palco. Como foi esta gestão de equilíbrios?
João Martins: Foi o ponto em que, tendo conseguido trabalhar, estive menos confortável no meu mandato. Ter que levar posições, em que algumas vezes não era a minha posição pessoal seja com a Direção da FMUL ou com as Federações onde a AEFML se faz representar obrigavam-me a um esforço extra e a preparar-me ainda mais para perceber argumentos que não seriam, de base, os meus. Ainda assim, sempre me ficou claro o que tinha de defender. Quanto à abordagem fui ganhando confiança e ia fazendo a preparação toda da conversa e abordagem antes do momento real de discussão. Este caminho também se constrói, ou seja, as dificuldades do início não podem ser extrapoladas para serem dificuldades ao longo de todo o caminho. As dificuldades sempre me suportaram as próprias fraquezas. Este cargo de Presidente é muito vasto e é difícil alguém que seja totalmente perfeito para o cargo. É preciso ter um conjunto enorme de especificidades.
Uma delas a diplomacia que, justiça seja feita, tanto te caracteriza.
João Martins: Sou muito fã da diplomacia.
Daqui a uns o que vamos saber sobre ti? Em que Especialidade estarás?
João Martins: Ainda não sei. No que toca à especialidade só a vou escolher em 2024. Mas não sinto pressão por não ter respostas. Há tantas matérias que eu gosto na teoria, mas agora quero viver o dia a dia das especialidades para sentir o que me toca mais. Mas se falarmos apenas do ponto de vista teórico menciono talvez a Oncologia e a Cardiologia, mas faltam muitos elementos para decidir.
Pões-te pressão a ti próprio para te apressares a tomar decisões?
João Martins: Este é um dos aspetos que mais marcam a minha personalidade. Eu não sinto pressão, porque quero sempre ponderar todos os aspetos necessários quando se toma uma decisão. Eu sei que vou ter várias indecisões. E vou pesá-las a todas e ainda assim, no fim, é provável que nem tenha a certeza delas. As pessoas que estão perto de mim ficam muito mais nervosas com a minha indecisão, muito mais do que eu. Foi também algo que fui conseguindo melhorar, diminuir essa pressão a tomar decisões.
Há uma característica curiosa em ti. Fizeste dos discursos mais inspiracionais que ouvimos nos últimos tempos e fomos recebendo feedback de várias pessoas que ao ouvirem-te, emocionam-se. Mas depois percebo que boa parte deles escreves na véspera ou no próprio dia
João Martins: Na grande maioria dos discursos já pensei muito bem previamente sobre tudo o que queria expressar. Aliás, este foi um dos pontos que sempre desejei quando pensava se queria candidatar-me a Presidente da Direção da AEFML. Tocar as pessoas. Sempre senti que os discursos que mais me tocavam tinham sempre algo que fosse comum a mim e me fizesse de certa forma sentir identificado e foi isso que eu procurei fazer também. Queria criar pontos comuns e mostrar que o que é agora marcante para uns, também já foi para mim no passado. É muito importante ter estado na perspetiva do utilizador e agora voltar lá de novo. Saber estar no papel do outro é fundamental. Um ponto que sempre achei verdadeiramente relevante é fechar com chave de ouro. Eu comecei a aplicar isto nas minhas apresentações na disciplina de português no secundário, lembro-me de dizer aos meus amigos de escola, alguns que entraram comigo nesta faculdade, que a apresentação no meio deve ser competente, mas que aquilo que a professora se iria lembrar como mais marcante era a maneira como se terminava. No fundo tento aplicar aquilo que comigo resultaria.
Então dá-me o teu momento final, para que não mais me esqueça desta conversa, nesta tua passagem.
João Martins: Encaro esta entrevista como sendo para mim, claro, mas que abrange o grupo que esteve comigo neste ano de AEFML. A grande marca que deixamos de mandato é a reconstrução dos monumentos da AEFML. Sinto muito orgulho por todos os 32 que estiveram comigo e de termos reconstruído muito daquilo que a pandemia tentou esconder e encapotar. Então não será propriamente uma frase final, mas é a principal marca que eu sinto e que deixamos. A base está reconstruída e o caminho só pode ser positivo a partir daqui. Nós tentámos fazer um pouco melhor do que o ano anterior e a direção que se segue fará seguramente um pouco melhor do que nós.
Joana Sousa
Equipa Editorial