No passado dia 24 de junho de 2022, teve lugar uma iniciativa organizada pelo CEMBE e a FMUL, em que se discutiram as prioridades da investigação em psiquiatria e saúde mental. Este tema é fundamental uma vez o que é prioritário investigar em determinada área pode e deve variar ao longo do tempo.
As necessidades de investigação em medicina devem ser recalibradas consoante os resultados / ou falta deles, e consoante o feedback daqueles que beneficiam desta investigação (as pessoas).
Um dos aspetos fundamentais da investigação em psiquiatria, e que a torna uma área tão complexa, são as suas especificidades metodológicas.
Sem ter em conta estas especificidades os resultados da investigação são nulos e pouco úteis.
As doenças mentais, à semelhança das doenças médicas em geral, são situações que provocam dano biológico (morte ou risco de morte) ou psicossocial (sofrimento e incapacidade) em quem delas padece, e que podem, através de métodos testados (biológicos, psicoterapêuticos) para o efeito ser melhoradas ou mesmo eliminadas.
No entanto existem algumas especificidades na psiquiatria em relação ao resto da medicina. Estas vão desde os seus modelos de causalidade (de que forma contribuem e interagem os componentes neurobiológicos e as variáveis psicossociais), até aos próprios conceitos que constituem esta especialidade (o que é uma doença mental, o que é a classificação das doenças mentais, etc).
Estas questões fazem com que os métodos de investigação (epistemologia) em psiquiatria devam diferir, nalguns aspetos, daqueles utilizados para o estudo das doenças médicas em geral. Têm especificidades. Não se podem replicar modelos importados diretamente do resto da medicina, que se baseia maioritariamente nos métodos usados em ciências naturais.
Há vários aspetos relacionados com a epistemologia (ramo da filosofia que se dedica ao estudo do método científico) da psiquiatria que são estudados através da chamada “filosofia aplicada à psiquiatria”.
Nos últimos anos muito se tem investigado em psiquiatria, sobretudo nas áreas de inter-relação com as ciências básicas, mas nas épocas recentes tem havido uma grande escassez relação aos estudos de análise epistemológica e análise conceptual, ao contrário do que aconteceu ao longo do século XIX e XX (sobretudo até aos anos 80). Uma disciplina que tem sido pouco valorizada nas últimas décadas, mas de que depende a validade dos resultados de qualquer investigação.
São aqui focados sumariamente, os modelos de causalidade e os conceitos, pontos fulcrais em que a especificidade da psiquiatria se torna evidente.
O mundo das causas
Cada vez há mais evidências que existe uma causalidade complexa a nível das doenças psiquiátricas, e que pertencem a diferentes paradigmas e níveis de abstração:
- Está bem estabelecido que fatores psicossociais como experiências de vida têm uma forte relação causal com as doenças psiquiátricas. Estes deverão ser explorados através de uma linguagem diferente que não é pertencente às ciências naturais (exemplo neurociências), mas sim às ciências sociais e humanas.
- Por outro lado os fatores biológicos não atuam diretamente sobre as doenças psiquiátricas mas interagindo de forma complexa com as variáveis psicossociais (ex experiencias de vida, ambiente sociocultural). Também os genes podem ter uma influência indireta na causalidade de determinadas doenças psiquiátricas, por exemplo aqueles que predispõem a determinado temperamento ou personalidade que por sua vez pode predispor à depressão.
- Determinados estados mentais, de causalidade complexa, podem ter uma atuação sobre o ambiente e sobre outros estados mentais. Por exemplo uma pessoa com uma personalidade com tendência a maior impulsividade pode provocar um ambiente relacional mais adverso, o que por sua vez poderá predispor à depressão.
- A cultura, e o tipo de sociedade onde a pessoa cresce ou vive, poderá funcionar como fator determinante, para o aparecimento de sintomas ou perturbações mentais. Por exemplo, uma sociedade que desvalorize determinados tipos de comportamento ou características de uma pessoa, e as hostilize, poderá reforçar o aparecimento de sintomas ou perturbações mentais nessa pessoa.
Outro aspeto fundamental a referir sobre a componente biológica das perturbações mentais, é que há tendência para aceitar que exista uma continuidade entre os estados mentais considerados normais e anormais.
O que distingue um estado mental normal de outro não normal, não são questões biológicas, mas sim questões relacionadas com uma avaliação prévia que nada tem a ver com fatores biológicos.
As perturbações psiquiátricas são “construções sociais” que têm uma determinação resultante de uma interação complexa e ainda não conhecida na sua completude entre fatores biológicos e psicossociais.
Não são constructos naturais que existem independentemente de qualquer esforço humano (como o é mais proximamente por exemplo a disfunção biológica que existe numa doença médica).
A avaliação do que é ou não patológico em psiquiatria está relacionada com vários fatores não biológicos, mas resultantes do julgamento e de valores, nomeadamente conexão com sofrimento e incapacidade (se causam ou não sofrimento ou incapacidade).
A determinação do que é considerado inadequado, desadaptado ou causador de dano (levando em conta o contexto sociocultural do paciente) é independente da sua base neurobiológica.
Nas neurociências, o que podemos encontrar são os correlatos neurobiológicos dessas situações clínicas (que causam sofrimento/incapacidade aos pacientes). Isso não significa que a distinção entre normal e patológico em psiquiatria seja feita por meio de marcadores neurobiológicos, nem alguma vez o venha a ser.
Assim, pode descobrir-se os correlatos biológicos para as manifestações consideradas perturbadas, estas conclusões podem chegar a teorias que ajudem a descoberta de fármacos por exemplo para atuarem e melhorarem essas condições. Mas estes só devem ser usados, em situações apenas nas situações consideradas patológicas pelos fatores não biológicos.
O que se passa na medicina é diferente.
As doenças médicas foram sendo definidas, com base em situações que provocam dano (à semelhança do que as psiquiátricas fazem), no ser humano.
Apenas é considerado doença as alterações das funções das estruturas corporais que provoquem dano, nomeadamente sofrimento /incapacidade ou risco de morte.
Mas com base nestas situações que provocam dano, foram sendo encontradas alterações estruturais especificas, disfunções biológicas (alteração da função de órgãos, partes do corpo). Estas disfunções biológicas que a doença médica tem por base, tornaram-se seus sinónimos. Porque no seu modelo causal, os fatores biológicos têm força suficiente para definirem os modelos de doença. Existe um modelo etiopatogénico mais simples, e que pode ser estudado com uma mesma linguagem, das ciências naturais.
E, portanto, as doenças embora possam ser influenciadas por fatores psicossociais (modelo psicossocial de Engel), elas são reduzidas ao seu principal fenómeno que é a disfunção biológica, factual, que pode ser representada pelos testes que traduzem os seus marcadores. Podem assim ser reduzidas a uma linguagem típica das ciências naturais.
Assim, na medicina, foram encontrados na causalidade biológica das doenças, shortcuts para os seus diagnósticos (biomarcadores), que atualmente se confundem com elas.
O mundo dos Conceitos
Conceitos podem ser definidos de várias formas dependendo de diferentes perspetivas (logica, psicologia, filosofia, biologia, etc).
Podem haver conceitos simples (por exemplo nas ciências naturais, e ciências sociais) e conceitos complexos- em que se tem de recorrer a diferentes paradigmas para a sua definição.
Os conceitos em psiquiatria são chamados conceitos híbridos (dependem da biologia, mas também de componentes psicossociais).
O estudo da sua definição, do seu significado, e da ligação entre os diferentes conceitos, da evolução dos conceitos ao longo do tempo, é feito pela análise conceptual.
Conceitos que são pouco compreendidos e definidos em relação à sua estrutura, aos seus componentes, levam a questões empíricas falsas e a metodologias científicas mal escolhidas, com resultados de questionável validade. Isto pode resultar em baixos resultados na psiquiatria.
Os conceitos evoluem. Podem evoluir por várias razões explicitas, entre elas, descobertas empíricas (acontece na medicina por exemplo, em que grande parte das doenças passaram de síndromas – conjuntos de sintomas- a ser conotadas como equivalentes à disfunção biológica subjacente), outros por razões políticas, outros evoluem sem que haja razão aparente (semantic drift), sendo necessária uma análise conceptual para compreender em que sentido foi a evolução.
Os conceitos que se aplicam ao comportamento do ser humano (nomeadamente classificação de pessoas, aqui pertencem as classificações em psiquiatria) são particularmente fácies de mudar, entre as causas é relevante o facto que determinados contextos sociais históricos políticos podem determinar diferentes valores relacionados com uma avaliação mais ou menos positiva dos mesmos.
O que está por trás dos sintomas psiquiátricos e das doenças psiquiátricas (causalidade) não são disfunções de órgão ou estrutura orgânica, mas sim complexas interações entre componentes estruturais biológicas e variáveis psicossociais (acontecimentos de vida, educação, cultura, etc).
Assim os sintomas psiquiátricos e qualquer estado mental (seja ou não considerado perturbado!), deve ter em consideração estes fatores.
Na pratica e investigação da medicina hoje em dia (que tem por base a compreensão do corpo, da sua estrutura e da sua funcionalidade), doença e disfunção corporal são consideradas sinónimos.
Embora os doentes manifestem os sintomas, sinais, o diagnóstico é sobretudo feito com base nos testes que revelam diretamente disfunção estrutural (analises, imagiologia, etc). As doenças hoje em dia são mesmo diagnosticadas identificadas sem ter de se recorrer aos sintomas. É no fundo uma questão de disfunção biológica.
Um sintoma continua sendo subjetivo em medicina, como por exemplo a dor. No entanto, o diagnóstico é feito com base na disfunção biológica que está por trás dessa dor e a doença será identificada com base na disfunção encontrada.
Doença médica passou a ser sinónimo de disfunção. E disfunção biológica é um conceito mais simples, que pode ser estudado através de metodologia importada diretamente das ciências naturais.
Sintomas e mais ainda sintomas psiquiátricos não são conceitos simples passíveis de avaliar através de níveis de ureia, níveis de TA. São conceitos híbridos e que requerem uma análise diferente.
Perturbações médicas como um AVC, um EAM, são também conceitos mais simples relacionados com algo mais factual e estável, dependente de uma disfunção biológica que ocorre em determinada estrutura e que poderá ser diretamente visualizada, ou sinalizada através de testes que foram encontrados com base nas ciências naturais.
Assim, o diagnóstico e a investigação em doenças médicas é feito com base em conceitos mais simples e estáveis.
O diagnóstico e a investigação em doenças psiquiátricas é feito com base em conceitos mais complexos e instáveis (cultural e historicamente) e que requerem análise conceptual frequente.
Perspetivas para o futuro
Concluímos assim que, há muitas semelhanças entre a psiquiatria e o resto das especialidades em medicina. A medicina e a psiquiatria ocupam-se do tratamento de situações que provocam dano físico ou psicossocial ao homem. Ambas têm por base o individuo (seus genes, anatomia, biologia, química) e o ambiente (o que vem de fora do individuo, que pode ser o ambiente físico ou psicossocial). Por outro lado, há tratamentos eficazes para tratar as condições médicas e psiquiátricas que foram sendo desenvolvidos com base em estudos científicos de eficácia e efetividade.
No entanto, há entre a psiquiatria e as outras doenças médicas algumas diferenças que é fundamental ter em conta quer na prática clínica quer na investigação.
O modelo de causalidade das perturbações psiquiátricas é muito mais complexo que o das doenças médicas. As variáveis psicossociais e biológicas, têm linguagens (na avaliação, na tradução dos resultados, etc) completamente diferentes, interagem de forma contínua, interdependente e com pesos de igual importância na etiologia. Esta interação, devido à sua complexidade, está longe de ser completamente conhecida. Na maioria das doenças médicas, a fisiopatologia está centrada numa lesão biológica, que corresponde a uma falha da função de órgão (disfunção). Embora possa haver falhas no conhecimento de todos os fatores que concorrem para esta disfunção, os principais fatores são biológicos/físicos e utilizam uma mesma linguagem (ciências naturais) para serem estudados.
Devido a estas circunstâncias, a própria classificação dos sintomas e das doenças mentais faz-se de acordo com uma lógica da forma como elas se apresentam (ie. Perturbações de humor, Perturbações Psicóticas, etc) e não de acordo com uma possível etiologia ou lesão de base. Por outro lado, os sintomas e as doenças médicas fazem-se de acordo com localização anatómica e tipo de lesão (ou disfunção) encontrada.
É por isso fundamental, com a crescente importância que as perturbações mentais representam no mundo moderno (sendo aquelas que mais provocam incapacidade, de acordo com os estudos mais recentes), refletir sobre a metodologia de investigação usada nesta área, com as suas especificidades próprias, de forma a chegar a resultados mais realistas e úteis.
Na nova cadeira optativa de “Filosofia aplicada à psiquiatria e saúde mental” da FMUL são focados estes e outros aspetos úteis relacionados com a filosofia das ciências aplicada à psiquiatria e saúde mental, sempre numa perspetiva prática e adaptados à realidade clínica e de investigação, que em muitos casos, podem ser transpostos para a medicina em geral.
Tabela 1- Semelhanças e diferenças entre perturbação médica típica e perturbação psiquiátrica
Diogo Telles Correia