Espero que acabe um telefonema e sento-me no corredor, num sofá cuja pele gasta pelo tempo tende a rasgar a qualquer momento e a deixar-me constrangida pelo meu hipotético peso. Sim, é aquele corredor tão desejado por todos os olhares curiosos e que vêm principalmente de fora desta Faculdade, para ver o que aqui se passa. Maquetes de cérebros, pósteres, salas onde agora se fazem impressões 3D para simular cirurgias em cérebros. Na porta ali ao fundo, bem perto de mim, é onde o Pedro Henriques trabalha e faz dissecação de cadáveres. “Pedro um dia venho entrevistar-te”, digo-lhe sempre que o vejo, mas tenho um medo de ali ficar esquecida que ninguém imagina e adio sempre qualquer conversa.
Naquela sala fria que felizmente tem sempre a porta fechada, há corpos humanos, ou apenas partes, órgãos com doenças, pedaços de pele com tatuagens, fetos, e uma cabeça, a de Diogo Alves, o assassino do Aqueduto das Águas Livres, o último homem a ser enforcado em Portugal, em 1841.
![senhor em pé a falar](/sites/default/files/inline-images/IMG_4505_0.jpg)
É sempre risonho e expansivo na forma como se dirige aos outros, nada formal. “Então a nossa reunião não era só amanhã? Mas entre, não tem mal nenhum falamos já hoje!”, Diz-me bem-disposto. Com absoluta falta de noção do meu ridículo, insisto que eu estava certa com a agenda, mas a verdade é que viria a perceber que troquei tudo e lhe alterei os planos, mas nem por isso foi menos expansivo e recetivo.
O gabinete repleto de livros e papéis em cima da secretária de madeira torna aquele lugar meio soturno, nunca dando a perceber se na rua está um calor de morte, ou se chove torrencialmente. Não há espaço livre. Na parede onde estão dois grandes cadeirões e um candeeiro de pé alto acesso, há um placard de cortiça, repleto de fotografias que contam mil histórias e falam de lembranças, pessoas e laços. Não são todos momentos reais. Já lhe explico porquê.
António Gonçalves Ferreira é Professor Catedrático de Anatomia, Chefe de Serviço da Neurocirurgia, Diretor do Instituto de Anatomia e da Clínica Universitária de Neurocirurgia, assim como o atual Presidente da Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. É a segunda vez que o visito aqui nesta sala, a primeira vez foi para falarmos do lançamento do Manual de Anatomia que passou a ser o roteiro de aprendizagem de quase todos os estudantes de Medicina do país.
![tres pessoas em pé](/sites/default/files/inline-images/tres_1_0.jpg)
A celebrar a 23 de dezembro os seus 70 anos, Gonçalves Ferreira sabe que há números que são sinónimo de conclusões. O número 70 para o meio académico e institucional marca a jubilação, mas para ele marca também a rutura abrupta do mercado de trabalho e da sociedade que envelhece precocemente as pessoas e tira-lhes a utilidade, mesmo que elas ainda a quisessem ter.
Não é de meias palavras, é bastante direto, aliás, age com a segurança do lugar que já ocupa, na idade já vivida, no trabalho. São precisamente várias caras ligadas ao trabalho que de repente identifico naquele placard. “Que engraçado Professor, olhe aqui a Professora Lia Neto, o Professo Ivo Furtado… então também conhece este Diogo aqui?”, vou constatando de novo sem grande noção ainda de todos os meandros que são muito mais de Gonçalves Ferreira que meus. “Claro que o conheço, o Simão é nosso médico, foi meu interno, então não havia de o conhecer?”, Responde-me a rir.
Na verdade das poucas vezes que privamos em eventos da Faculdade, sempre me passou esta impressão: de homem assertivo, frontal, direto e sem meio-termo, igualmente bem-humorado.
“Professor não me diga que conheceu a Gwyneth Paltrow, uau, sempre a achei tão bonita!”, os meus olhos iam viajando pelas fotos a tentar absorver todos os detalhes. Antes de me apresentar então aos filhos e à sua mulher, assim como a alguns amigos, todos rostos espelhados através das fotografias, viria a explicar-me a razão de tal presença internacional. “Não a conheço não, mas tenho pena!”. Ri. Eu também.
Influenciado pelo ambiente geográfico onde cresceu até aos 17 anos, no litoral alentejano de Santiago do Cacém, António Gonçalves Ferreira tem presente que o facto de ser filho de um tradicional clínico geral, lhe pode ter também vincado a personalidade e algumas das suas escolhas de carreira. Se a geografia lhe deu este caracter mais expansivo e de comunicador, as origens familiares impuseram-me método e foco que lhe ficariam para a vida.
Ainda hoje vai dar consulta ao consultório criado pelo pai. Sim, verdade, desses tempos resta pouco de semelhante, e o pai morreu cedo demais, quando António tinha apenas 9 anos. De estreita educação católica, quem cuidou dos dois rapazes da família foi a mãe, uma professora de matemática que não baixou por um instante as médias da exigência. Talvez por defesa natural de uma mãe sozinha que cria a prole para vencer na vida, os filhos tinham de ser sempre os melhores alunos. Terra pertencente à diocese de Beja, no mapeamento católico, o Bispo de Beja visitava a família sempre que se deslocava a Santiago, passando a dar por inerência o cunho moral de bispa à matriarca, então viúva.
Aos 17 anos veio para a FMUL e deixou a casa da mãe. Precisava de uma libertação que não lhe traduzia apenas a emancipação de um quase adulto, mas a mais essencial era a do corte estreito à matriarca e a um lado da religião. Ainda assim, aos 18 anos foi Presidente da Juventude Escolar Cristã, o que ainda hoje vê como grande escola de organização geral. No 3º ano de Medicina deixou as práticas católicas e diz-me que, "se não foi quase um não ateu, pelo menos foi um não praticante".
Armando Ferreira, o seu Professor de Anatomia foi a sua primeira grande inspiração académica, recorda-o desde os tempos da primeira aula em que ouviu, lá bem do fundo do velho anfiteatro de madeira, "se calhar alguns de vocês ainda vai ser um dos meus assistentes de Anatomia".
Integrado o seu primeiro grande interesse pela Anatomia, o Sistema Nervoso seria o próximo a colocar-lhe novos desafios.
O seu meio ambiente natural passava assim a ser lidar com o cérebro, tendo a Anatomia como conselheira para saber aplicar as melhores técnicas na cirurgia.
As particularidades do seu conhecimento, a forma ágil como respondia às necessidades de organização e a sua influência de contactos, fariam com que assumisse papéis de grande destaque internacional.
Um dos mais significativos para qualquer especialista da sua área é a European Association of Stereotactic and Functional Neurosurgery (ESSFN), entidade que assume a Presidência, desde 2018 e até 2023. A Sociedade Científica internacional, congrega os neurocirurgiões que se dedicam a este campo da neurocirurgia e que engloba diferentes áreas, desde a cirurgia das doenças do movimento (d. Parkinson, distonia, tremor), da dor, da espasticidade, da epilepsia e a psicocirurgia.
Já anteriormente vice-presidente, desde 2014, Gonçalves Ferreira foi aprovado por unanimidade para este seu atual papel na presidência da ESSFN.
Integrou ainda a Associação Europeia de Neurocirurgia (EANS), a maior Associação que abrange todas as áreas da área da Neurocirurgia e onde Lobo Antunes fora Presidente Europeu. Gonçalves Ferreira foi presidente em uma das áreas específicas, o Comité de Research, durante 4 anos. Nesse tempo conseguiu instituir algo que se fazia apenas anualmente com o treino técnico, abria agora outro caminho de trabalhos, o curso europeu da investigação.
Papel internacional rico e sedimentado, a verdade é que confrontado com a chegada aos 70 anos, António Gonçalves Ferreira deixa de exercer funções de Direção, quer na Neuroanatomia, quer na Neurocirurgia, interrompendo igualmente as suas funções hospitalares. Continua a assegurar a regência de Anatomia e Neurocirurgia até ao fim do ano escolar, mas depois sai. O corte abrupto nunca lhe pareceu bom reflexo das sociedades que têm pressa em etiquetar etapas e dar prazos às pessoas, pondera por isso continuar a acompanhar as reuniões de Serviço, nem que seja uma vez por semana. “A reforma se não for muito bem encarada pode ser muito ingrata, investida a maior parte da vida em atividades, conhecimento e afinando com o tempo cada vez mais a própria experiência, a reforma cai de repente e interrompe toda a atividade”. Reflete. “As pessoas devem ir preparando a sua sucessão e deixar tudo em ordem para que as áreas continuem, mas é também ingrato a pessoa ver-se interrompida de toda e qualquer atividade”.
Ainda hoje é o responsável pela aquisição do equipamento novo da Neurocirurgia, equipamento esse ligado à estimulação cerebral profunda. A experiência que é exigida, quer nos detalhes e a abrangência tecnológica, colocam-no confortável para ajudar a decidir.
Fala com um entusiasmo muito espontâneo, de quem vibra muito ainda com aquilo que faz. É rápido nas palavras e nas ideias que vai trocando, mas há um pormenor que hoje descubro. Fala mais depressa quando o tema é o fim da vida.
Claramente não gosta de falar da morte. Chamemos as coisas pelo nome certo. Não tem de se falar da morte só porque se atinge certa idade, ou porque alguém se jubila. Com certeza que não! Mas é mais interessante confrontar a mudança que a maturidade nos traz. O tema, quem o aborda, é o Professor, mas o facto é que ele me acompanha sempre de alguma forma quando se faz uma entrevista na Área da Anatomia.
Levava um fio condutor de perguntas, mas que nunca luto por seguir, porque prefiro perceber onde quer o interlocutor levar-me. Esse caminho “às cegas” tem sido fruto para incríveis conversas. Iguais descobertas.
Conta-me, entre temas que, recentemente perdeu um grande amigo, acompanhou-o sempre de perto nesse último processo da vida, diante de um tumor fatal.
Falamos bastante das aprendizagens retiradas ao longo da vida. Tema que se percebe que o reflete intensamente,
Sabe hoje por vivência direta que a deterioração do corpo humano torna os elementos mais frágeis e voláteis, quer de quem adoece, quer de quem cuida do doente.
Diante da observação de perto de um caso real de Doença de Alzheimer, refere-me, perplexo, sobre o abandono de tudo aquilo que um dia já se foi no auge das suas capacidades. Não será essa perda de capacidade também uma espécie de morte, com o corpo ainda presente? Penso enquanto me fala, mas opto por não perguntar.
Nos últimos anos Gonçalves Ferreira tem tentado desenvolver investigação sobre a estimulação cerebral profunda, de modo a minorar demências como a de Parkinson, ou tratar a Epilépsia de que foi o Neurocirurgião pioneiro em Portugal. Explica-me que através do estímulo de algumas áreas responsáveis pela memória no cérebro, é possível voltar a dar vida a essa memória perdida, ou sequer nunca lembrada. O estudo inicial partiu de uma descoberta acidental de um neurocirurgião seu amigo, de Toronto. Com o objetivo de diminuir o apetite e tratar a progressão da obesidade mórbida, de uma doente, descobriram que ao estimular uma determinada parte do cérebro, esta se lembrava de um passado remoto cheio de pormenores e detalhes, como se fizessem em direto uma viagem ao passado. Cada vez que o estimulador cerebral era desligado, a memória dessa doente deixava de se lembrar desse mesmo passado.
O cérebro ao ser estimulado pode ter resultados benéficos, como o desprendimento do vício, ou do excesso de prazer, quer por comida, ou drogas. Foi precisamente isso que fez quando operou por estimulação cerebral profunda (DBS) o primeiro caso de toxicodependência refratária à cocaína, com bom resultado.
Mas dessa manipulação, o cérebro por vezes surpreende quem trata e revela novas funções que não estavam ainda convencionadas nos manuais e na experiência clínica.
Conseguiremos nós então descodificar todo o cérebro sabendo até onde vai a sua capacidade de alcance? Saberemos sobre a densidade da memória e distinguir quantas camadas tem o Homem sobre o seu próprio subconsciente, ou inconsciente, como defenderia Freud?
A idade é um peso e não uma mais-valia. Não é assim para os orientais, por exemplo...
Em vários outros lugares que conheço, as pessoas que atingem a reforma continuam a ter as suas atividades bastante ativas, ocupando inclusivamente lugares de consultoria. Mas nos países latinos não há essa tradição.
Deixe-me dar-lhe um exemplo para perceber a aplicabilidade disso. No mundo inteiro são raras as pessoas que fazem as cirurgias de epilepsia mais complexas, Ainda há pouco tempo ocorreu uma com um colega assistente, foi-me impossível estar presente. A cirurgia correu bem, mas ele lamentou eu não ter podido estar, porque eventualmente poderia ter ajudado a responder mais rapidamente a dificuldades às quais ele se deparou. Estando eu a seis meses de deixar por completo a atividade, é mais do que habitual que já não precisem de contar comigo, mesmo para as cirurgias mais complicadas, mas é também verdade que podemos ter um papel muito útil no que toca à partilha qualitativa da experiência cirúrgica, sobretudo nos casos mais difíceis.
Recordo-me da altura em que fiz um estágio clínico em Epilepsia, no Canadá, num dos maiores Centros de Referência, o Montreal Neurological Institute and Hospital. Foi lá que vi que todas as semanas convidavam o Dr. Theodore Rasmussen, que já na altura tinha mais de 80 anos, mas que sabia ler como ninguém electroencafalogramas raros e diante de difíceis casos de epilepsia. Ele continuava a ser chamado para dar o seu parecer e refletir sobre o tema.
Muitas vezes ao assumir-se cargos de chefia, esse trabalho acaba por ser mais de gestão de pessoas e recursos do que criar, colocar as mãos diretamente nas ações. O que acaba por limitar aquilo que, se calhar, era a principal paixão da pessoa. Sentiu isso ao longo da vida?
Talvez coloque as coisas de outra forma. O que começo a sentir, mais agora, é o papel colateral de se ser professor. Há procedimentos muito especializados que não se executam todos os dias e que, com o passar do tempo, vamos largando cada vez mais para que os outros possam crescer autonomamente. Quem está à frente de uma equipa acaba por prescindir de muitas ações para dar espaço àqueles que ainda estão a desenvolver currículo e precisam de apresentar trabalho. O facto de só estar presente nas situações mais complicadas e mesmo assim gerir as diferentes personalidades mexe realmente com a nossa própria gestão de tarefas.
Gerir personalidades é o grande desafio de um gestor de pessoas?
É um dos grandes desafios. Não é o único. Há o desafio de cuidar com muito cuidado dos (médicos) internos porque são os verdadeiros aprendizes, e que um chefe precisa de ter grande perspicácia para perceber os potenciais e o lado que não pode ser tão valorizado porque não as destacará tanto. Outro aspeto da gestão de pessoas também passa por saber trabalhar com todos de forma igual, mesmo que tendo afinidades mais próximas com alguns elementos com quem nos identificamos mais.
A empatia entre pares e equipas pode toldar a análise crítica face à prestação individual de cada um?
Penso que não, mas o facto é que temos de fazer um balanço entre a razão e as emoções. E pode acontecer o irracional ameaçar, por vezes, o peso da balança.
Explique-me essa parte para alguém que passou a sua vida a estudar e a trabalhar com o lado mais cerebral do ser humano e me diz que há um lado forte irracional.
O irracional é omnipresente, tal como o racional. A diferença é que o irracional raramente aflora, mas pode traduzir-se nos gestos, o que mostra que os dois lados se contaminam, porque nem sempre sabemos colocar estanque cada um dos lados. Mas tendo presente estas noções há que saber geri-las.
O que é que a dada altura da sua vida tanto o distanciou da religião?
Foi pelo facto de eu achar que a prática cristã tradional era muito criticável. Vivia de rituais, defendiam-se muitas cresças e convicções, mas a realidade é que depois não praticavam seguramente aquilo que Jesus Cristo teria pregado. Jesus é uma personagem histórica que a mim me toca e ilumina especialmente. A morte é a parte que não consigo ainda encaixar bem.
Já lá iria. Mas falemos já.
A imortalidade, do ponto de vista molecular, já é algo que sabemos estar a acontecer. Já há as chamadas células imortais. Ou seja, há determinado tipo de células, tumorais ou não, que têm uma infinita capacidade de se reproduzirem.
O que é que o António clínico diz dessa imortalidade?
Tenho pena de não viver um século mais tarde, porque há determinados problemas que serão, entretanto, resolvidos. Na sociedade estamos ainda condicionados pelas grandes doenças que matam, como as Doenças Cardiovasculares, ou as Oncológicas. Ora, nos grandes tumores, pelo menos, vamos ter muitas soluções, num futuro próximo. Outras coisas serão evitadas por vacinas, etç...
![duas pessoas a mexer em objetos](/sites/default/files/inline-images/IMG_4506_0.jpg)
Esse poder da vida dá à Humanidade o toque divino que nunca lhe pertenceu?
Ai vai dar! E é possível que elas se vão apercebendo de tal, através da evolução técnica. Por outro lado, eu tenho alguma relutância em admitir que quando uma pessoa morre, tudo acabou! Então voltemos ao clínico. Neurologicamente acho que realmente tem de ter acabado, morreu. O cérebro não tem circulação. Acabou! Toda a alma que conhecemos, num sentido mais orgânico, reside no cérebro e note que digo isto como neurocientista. Portanto quando o cérebro morre, acabou! Agora... (trava-se e reflete) irracionalmente eu tenho uma enorme relutância em aceitar isto. Porque o cérebro, a nossa vida mental, espiritual, é algo tão complexo e rica que tenho muita dificuldade em dizer que acaba com a morte.
Tem dificuldade apenas como refúgio para não aceitar a morte, ou porque ao longo da sua vida e das suas perdas entendeu que havia algo mais que não sabia explicar?
Acho sobretudo que é uma pena tudo desaparecer. É uma grande pena. Claro que as pessoas vão durando cada vez mais, viverão cada vez mais, mas sabe, que eu gosto imenso dos livros de ficção científica, são aqueles que eu mais leio. Na realidade há muitos livros que nos dizem que, algures, no futuro será possível substituir sucessivamente órgãos, alterar este código que temos geneticamente a dizer que as nossas células vão morrer a partir de determinada altura. E porquê? Porque este código, como todos os códigos, pode ser alterado, pode ser reprogramado.
Será o nosso cérebro um mundo inteiro ainda por descobrir?
Eu acho que é, mas isso também me preocupa, sabe? Há muitas funções absolutamente básicas para o nosso funcionamento que podem muitas vezes ser reguladas de uma forma "sofisticada", mas muitas vezes de um ponto de vista técnico tão simples, como administrar um pequeno fio eléctrico de uma corrente elétrica. A possibilidade e a necessidade de se saber mais, abriu realmente uma nova porta para o mundo da neurocirurgia.
O que o fez ligar-se mais ao sistema nervoso?
Durante muitos anos vi a Neurologia como uma neurociência muito contemplativa, faziam-se excelentes diagnósticos, mas o tratamento acabava por ficar aquém das evidências do que se diagnosticava. Há medicação, mas o tratamento ficava limitado só aí. Na Neurocirurgia sentia que, pelo menos, em alguns pontos era possível fazer algo que interfira mais, de forma mais direta. E foi isso que me fez decidir e dedicar à área. Depois consegui, e fui muito estimulado pelos meus Professores para conseguir isso, como foi o caso do Prof Lobo Antunes, consegui juntar a Neuroanatomia com a Neurocirurgia. E acho que ainda está por dinamizar mais a integração das ciências básicas, com as ciências aplicadas, a reforma do ensino precisaria desse foco maior.
Na sua perspetiva estes dois polos continuam estanques?
Continuam a estar muito afastadas estas ciências. A investigação hoje em dia exige grandes investimentos e eles são feitos pelas agências que apoiam a investigação de cada país. Para conseguirem ter sucessivas bolsas e subvenções para investigar, não podem divergir muito o seu foco de atenção, não podem dispersar muito, ou tentar muitas áreas. Nos centros de investigação, para garantir a credibilidade, não arriscam muito nas suas buscas e vão sempre baseando a pesquisa em premissas comprovadas, porque é isso que lhes garante mais financiamento. Isto significa que estamos ainda muito longe de uma combinação perfeita. A ciência básica já dá resposta a muita coisa, mas responde apenas aos focos de interesse "mais urgentes" da clínica, não pode ter riscos de inovar e dispersar. Provavelmente a tendência será a aproximação, mas para já é algo muito limitado.
Estava a ouvi-lo e a pensar como tem sido contemplativo ao longo desta nossa conversa. Sempre foi assim, ou é o amadurecimento e a experiência que vão mudando o olhar?
Eu sempre meditei muito sobre aquilo que faço e sobretudo no que acontece à minha volta. Mas provavelmente as consequências disso na minha prática como gestor de instituição e pessoas é que foram mudando. Agora...continuo num desafio terrível enquanto Professor de Anatomia, que é neste momento o meu papel principal, de estimular o desenvolvimento da disciplina. O que se passa é que os livros clássicos ainda são baseados em experiências de anatomistas que eram muito iniciais e os avanços da Anatomia microscópica, como é a de microscópica, foram sempre mais publicados na sempre Anatomia clínica e não tanto em livros de Anatomia básica. Então a minha contemplação também é por aqui, é a do caminho do fio da navalha, entre a clínica e a básica ao mesmo tempo. Mas este duplo caminho é muito difícil de se fazer e de replicar nos meios novos.
Onde se encaixa o ensino para quem exerce Neurocirurgia e passa a vida em bloco e sem tempo para investigação?
Os meus internos e Assistentes são hoje em dia tão estimulados para aprender e aplicar na prática o conhecimento, para aperfeiçoar técnicas cirúrgicas e participar o mais possível em bloco operatório, que é a nova dinâmica instalada no mercado. O crescimento dos currículos faz-se assim e quanto mais forem exercitando e praticando, mais currículo ganham e mais se fortalecem. As solicitações que "sofrem" são tantas, que perdem o tempo e espaço para a investigação e a academia. A verdadeira investigação é sobretudo a básica e isso implica tempo que cada vez menos se tem. No meu tempo de crescimento não havia esta competição tão feroz, nem tantas atividades simultâneas.
Os meus Assistentes são-no em tempo parcial, precisamente porque precisam da clínica privada para poder ter uma carreira com mais compensação. Como tal, a academia fica esquecida, até porque não é tão compensatória. Sabe que eu também acho que a pessoa só tem atração por saber mais, quando já sabe muito. Mas onde quero eu chegar ao dizer isto? Por ter esta noção que falta explorar algum tipo de conhecimento, organizamos cursos hands on, aqui no Teatro Anatómico sobre a aplicação da Anatomia em cadáver.
Esta integração da Anatomia tem sido bem-sucedida em termos de ensino, na sua opinião? Porque a verdade é que se há uns poucos anos as Provas Finais de Acesso mostravam que os alunos de Medicina não dominavam muito a Anatomia, agora neste último exame foi a Faculdade com as notas mais elevadas.
Aí é preciso dizer que a Faculdade, através do Prof. Joaquim Ferreira, tem tido a preocupação de preparar os alunos que vão fazendo testes preparatórios e assim treinam as suas competências. Até há pouco tempo só o Minho e Porto o faziam. A conhecida Prova do Harrison, a Prova de Acesso à Especialidade era de puro estudo que se tornava absurdo, era decorar, mas sem saber dar a aplicabilidade.
O tempo nunca é aliado das boas conversas que, quando encarrilam, cruzam-se em linhas de pensamento que nunca alcançam objetivamente um final. Terminámos a meio de algo que ainda se podia ter começado a falar. São as horas que determinam muitas vezes os fechos de algo. Mais uma vez o tempo a determinar a conclusão, a finalização.
Sempre com o mesmo nível de boa disposição, e sem nunca esmorecer ou subir o tom, o Professor fez questão de me acompanhar à porta e brincou, “Eu levo-a, não vá ficar aqui escondida”.
Se há coisa que estou certa que não acontecerá é esconder-me aqui, ou distrair-me nos corredores do Teatro Anatómico. Há sempre este peso subtil que todos somos um fim de ciclo, por isso nunca quererei ficar, não por muito tempo, mas há sempre a tentação de voltar.
Joana Sousa
Equipa Editorial
![Share](https://www.medicina.ulisboa.pt/sites/default/files/media-icons/share.png)