"Sentia que era preciso ter um Manual de Anatomia à imagem daqueles Americanos que ensinavam o essencial sobre a matéria", explica-me, numa conversa perfeitamente descontraída, um dia depois da apresentação oficial do novo Manual de Anatomia Humana.
Por seguirem formas de ensino ligeiramente diferentes entre culturas americana e portuguesa, mais se adensava a necessidade de construir algo de raiz, prosseguia. E, apesar de qualquer aluno de Medicina saber inglês, a facilidade de apreender matéria na sua própria língua era também argumento forte.
António Gonçalves Ferreira é Professor Catedrático de Anatomia, Neurocirurgião e Diretor da Clínica Universitária de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
Congeminava um manual já há mais de 30 anos, prova de que os sonhos são como as grandes árvores, precisam de tempo para crescer. Diante de uma proposta de uma editora, percebeu que o desafio era tentador, mas igualmente sério.
Tinha a perfeita sensibilidade para avaliar que faltava documentar a Anatomia geral para estudantes e que, apesar da existência dos cinco volumes do já falecido Prof. Esperança Pina, havia um certo excesso de pormenor dos “grandes tratados de Anatomia”, como refere, que não eram necessários para jovens a contactar com a Anatomia pela primeira vez.
Fazer um manual destes obrigava a envolver os melhores intervenientes. Assim aconteceu, desenhou um primeiro esboço, logo com a premissa que os Regentes de Anatomia das Faculdades de Medicina do país tinham de participar. A semente ficou em repouso, mas a germinar em terreno fértil, demorou anos para acontecer, mas a partir do momento em que os Professores de Anatomia da sua geração, pudessem reagir com autoridade suprema, não só iriam regar a ideia, como alimentá-la. Foram esses que se tornaram os coautores de um Manual que era assim aclamado por todas as Escolas Médicas do país.
Maria Amélia Ferreira, Professora de Anatomia e ex-diretora da Faculdade de Medicina do Porto, Artur Águas, Diretor de Anatomia do ICBAS e António Carlos Miguéis, Catedrático de Coimbra, assinavam assim o Manual que vê uma coordenação tripartida entre Gonçalves Ferreira, Lia Neto, atualmente Regente de NeuroAnatomia, e Ivo Furtado, todos Professores da Faculdade de Medicina.
Nascia então um livro facilmente transportável que, embora mais empático para o novo target, mantinha um rigor obrigatório para o nível de exigência de um estudante de Medicina. Havia ainda outra condição estipulada por Gonçalves Ferreira, que o custo deste novo livro fosse abaixo dos €100, limite que colocou ao editor Jaime Cacella de Abreu, também presente na apresentação oficial.
Deste livro sabemos ainda que o modelo que posou para as várias situações explicativas, surgiu pelas mãos de uma antiga colega e amiga, a Professora Isabel Ritto, de Belas Artes. Sabemos também que foi contratado o ilustrador Pedro Afonso, que criou e adaptou, de forma muito paciente e com tentativa erro e nova resolução, as mais de 800 imagens deste Manual.
E como bom guia de orientação do conhecimento dos estudantes, este grande roteiro do corpo humano reúne no final de cada capítulo perguntas tipo, que podem surgir em exame e permitem uma autoavaliação permanente. Mas sempre perto das preocupações da aplicabilidade ao real, juntam-se igualmente algumas noções aplicadas à clínica.
Contar a história deste Manual seria tema interessante que bastasse para falar com o Professor António Gonçalves Ferreira, mas sabendo que falamos de Anatomia quando falamos deste Manual, era impossível não espreitar a evolução dos tempos e da própria disciplina que todos já ouviram falar num qualquer tempo da sua vida, mesmo não sendo de Medicina.
Os mesmos lugares, alguns anos depois.
O Teatro Anatómico, lugar que recebeu a apresentação do Manual de Anatomia Humana, era o mesmo lugar onde o estudante António fazia os seus primeiros exames da mesma cadeira.
Ainda nesses tempos agrupavam-se dezenas de estudantes que se atropelavam nesse mesmo espaço para observar as disseções de cadáveres conservados de forma tão arcaica que ao recordar esses tempos, faz ainda uma expressão de profundo incómodo referindo esse como um "momento dantesco".
Do tempo que contactou com a Anatomia enquanto jovem estudante, explica-me que a noção do vivo era pouco palpável, pois não havia grande desenvolvimento da imagem, apenas algumas ecografias ou raio-X simples.
Por todos os contrapontos que observou e viveu, Gonçalves Ferreira sempre quis fazer da Anatomia algo mais estimulante já que na sua altura refere uma obrigatoriedade sem fim de decorar matérias que depois não tinham aplicabilidade útil.
Como é que vê os seus alunos de 1º ano, quando lhe chegam à primeira aula?
Gonçalves Ferreira: Vejo-os como me via nessa altura. Lembro-me perfeitamente de estar em pé, tínhamos um número absurdo de alunos e não havia lugar para todos, estava no Anfiteatro que na altura era chamado de Anfiteatro de Anatomia, agora José António Serrano, e eu estava lá atrás da última fila. Lembro-me de estar a ouvir o Professor que dizia que “a Anatomia não era só uma questão de memória, mas também de raciocínio” e acrescentava algo como, "alguns de vocês, os melhores, poderão colaborar mais tarde comigo e com os meus Assistentes no ensino". O que é engraçado é que recebi completamente no meu coração aquela mensagem, decidi que ia fazer parte daquele grupo.
Tão cedo achou isso? Porquê? Entendia ter o perfil certo para isso aos 18 naos?
Gonçalves Ferreira: Sabe que o perfil constrói-se, nós até podemos ter um perfil que nos facilite as coisas, mas no caso de Anatomia é preciso saber mesmo muito sobre ela para deixar marca.
Então isso faz-se com muito, muito estudo?
Gonçalves Ferreira: Com muito estudo. Mas sabe, foi com a Anatomia que já anteriormente a mim se ensinava através do peer teatching, ou seja, os alunos mais velhos eram monitores dos mais novos. Só que nesta altura não contava com créditos na formação destes mais velhos. Os alunos que tinham nota de 16 ou mais em Anatomia, eram convidados para ser monitores. E nós aceitávamos ter esse papel de monitores de forma voluntária, durante um certo tempo, e era nesse tempo de aulas que os Professores mais velhos mesmo iam depurando o nosso papel. E foi por esse caminho que cheguei aqui.
Por onde se estudava Anatomia na sua altura?
Gonçalves Ferreira: Por verdadeiros tratados. Um livro chamado Rouvière, completado por um ainda mais velho, o Testut por onde se estudava o Coração. E quando falamos em volumes o Textut tinha uns 7. Na altura aquilo era um massacre de matéria. No meu 1º ano de Medicina não pude ir de férias, porque era impensável em julho alguém passar no primeiro exame, o próprio Professor nos avisava disso. Lá viemos a exame em Setembro e as coisas correram bem.
Quando é que se confronta pela primeira vez com a Anatomia do vivo, do real?
Gonçalves Ferreira: Apenas nos anos clínicos. Nessa altura chegávamos aos anos clínicos e não se sabia grande realidade dos doentes, raros alunos que eram os melhores sabiam um pouco mais, mas não muito mais. Pouco tempo depois do fim do meu curso é que apareceu a TAC, permitindo-nos ver o interior da cavidade intracraneana, depois surgia a Ressonância Magnética que mostrava coisas fantásticas já com o funcionamento do próprio cérebro e tudo com muito mais detalhe. E foi precisamente nessa altura que percebi que era preciso fazer uma revolução na Anatomia e ensinar a verdadeira Anatomia que um médico moderno precisa de saber.
A Anatomia é das cadeiras com mais Assistentes e Monitores, porquê?
Gonçalves Ferreira: Porque são todos clínicos e os seus contratos são a tempo parcial. Sempre pretendi que os meus Assistentes fossem bons clínicos anatomistas, e porquê? A Anatomia que damos em Medicina deve ser muito virada para a prática e não para a Anatomia teórica de livro. É mais rica lecionada por clínicos, porque estes ensinam de forma mais aplicada a doenças e situações mais reais. Mas não é fácil, porque estão muito envolvidos em atividades paralelas que lhes ocupam boa parte da agenda não permitindo gerir ainda tempo para carreira docente.
Temos 28 turmas e cada Assistente tem 2 turmas, o que faz com que sejam 14 Assistentes. Na Anatomia Geral, que ocupa os dois semestres do 1º ano, e na Neuroanatomia do 2º semestre, do 2º ano, são necessários outros 14 Assistentes. Salvo raras exceções de casos em que um assegura mais trabalho. Mas há mais detalhes a evidenciar, a dificuldade de se dar nas aulas práticas toda a matéria necessária das teóricas. Apesar da reforma do ensino pretender aliviar o peso da Anatomia, a verdade é que para permitir mais tempo de estudo para os alunos estudarem, cortaram-se tempos de aulas. Se no passado davam duas aulas de duas horas práticas por semana, agora dão duas horas práticas por semana. Se o horário era mais pesado, a verdade é que era também mais abrangente em matéria, mas atualmente há menos horas de contacto humano e de prática, o que permite mais tempo de estudo individual. Feitas as contas, para que todas as matérias sejam dadas em tempo real, significa que um sistema inteiro do corpo humano exige ser dado numa semana, isto é em apenas duas horas.
A Anatomia é tão popular quanto temida por quem chega a Medicina. Porquê?
Gonçalves Ferreira: A Anatomia é uma disciplina que por mais simplificada que seja, e tem vindo a ser muito simplificada ao longo do tempo através das diversas reformas de ensino, é sempre uma disciplina "pesada". Digo sempre na primeira aula o seguinte, "vocês não precisam de saber muito a Anatomia, basta que saibam a Anatomia toda". O que quero dizer com isto é que não têm de saber os pormenores de tudo, mas não podem deixar um capítulo de Anatomia por estudar. Um médico tem que saber a Anatomia toda, do organismo todo. É nesse sentido que insisto neste aspeto que têm de conhecer as áreas todas. Mas sei que é difícil os alunos acompanharem as aulas práticas todas.
É exequível dar em duas horas, numa aula, um sistema todo?
Gonçalves Ferreira: É um grande volume de conhecimento, mesmo omitindo os detalhes. Isso obrigada a que os alunos tenham de estudar matérias que não foram dadas nas aulas. Este é um enorme desafio. As aulas teóricas têm aqui uma importância grande, pois permitem desbravar as matérias e dar as primeiras noções mais genéricas. Assim, quem participa nas teóricas, já não aparece nas práticas tão perdido.
Quais são hoje as coisas que os futuros médicos precisam de saber?
Gonçalves Ferreira: Precisam de saber a configuração geral de todos os órgãos de todos os sistemas. Têm que saber algumas especificidades, pormenores; no que diz respeito aos nervos e vasos sanguíneos, por exemplo, é importante saber que estes têm características muito diferentes. Também é muito importante aprender uma Anatomia que se possa aplicar aos conhecimentos da clínica. E isso quer dizer que alunos acabados de formar, têm de saber olhar para uma TAC ou Ressonância e saber o que lá está. Só nos últimos anos é que temos insistido que os alunos façam uma integração que permita aprender a Anatomia por cortes seriados, pois a TAC e Ressonância são feitas assim. Por vezes depois há a construção tridimensional, mas um médico tem que saber ver por cortes seriados. Esta é a Anatomia seccional que tem de ser ensinada.
Na sua apresentação deste novo Manual dizia a dada altura "este livro não pretende ser um tratado, mas um manual". Quem precisa de ler os tratados então se não são os estudantes?
Gonçalves Ferreira: Os tratados são livros de consulta, não são obras de estudo sistemático para estudantes.
Este vai ser o Manual a adotar pela Faculdade a partir do próximo ano letivo?
Gonçalves Ferreira: Eu espero que sim foi feito a pensar nisso. Mas há algo inédito é que este livro conseguiu reunir o consenso das Faculdades do país e isso traduz a qualidade da obra e um certo consenso sobre os conteúdos de Anatomia para o ensino médico em Portugal.
Este Manual basta aos nossos estudantes para serem bons?
Gonçalves Ferreira: Basta. Até tem algum conteúdo dispensável.
Dia 20 de novembro o Manual de Anatomia via finalmente a sua edição concluída. Só na Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina foram já vendidos 81 livros e no total pelo país atingiram-se as 250 vendas. Este Manual custa €80 e os estudantes têm 20% de desconto sobre esse total. Para quem o quer comprar, saiba que já está à venda em todo o país, nas livrarias de todas as Associações de Estudantes das Faculdades de Medicina e diretamente pela Prime Books. A partir de março entrará no mercado livreiro mais global.
Joana Sousa
Equipa Editorial