Não foram fáceis os tempos que viveram no último ano. Habituados a trabalhar na adversidade, a verdade é que o grande foco de salvação estava na Medicina Intensiva, entregue às mãos de poucas pessoas. Dia e noite, hora após hora, dias seguidos num ano ininterrupto e longo, quanto desesperante.
O cenário não é exagerado se lhe dermos a perspetiva que se segue. Sabe para onde vão os doentes, desde a zona centro até a sul do país, quando os seus hospitais locais já não os conseguem tratar? Vão para Santa Maria. E sabe quem geralmente chega aos Cuidados Intensivos? Os casos mais graves de todos.
Agora imagine viver todos os dias nesse limite em que tudo ou dá certo, ou simplesmente não, em que o tempo de ação pode ser determinante e não se pode dizer que a sorte faça parte de uma das parcelas da equação.
A Medicina Intensiva do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte foi o primeiro Serviço do Hospital a receber o doente crítico COVID. Foi também o local onde morreu, no dia 17 de março de 2020, o primeiro doente infetado, a nível nacional. Foi este o Serviço que recebeu um perfil de doentes até aí desconhecido, um Serviço que passou a ter setores inteiros dedicados a doentes COVID e cuja permanência se prolongava bem mais tempo do que o habitual (numa média mínima de 14 dias). Estas foram as equipas que passaram a trabalhar sem a certeza do que era ao certo o SARS-CoV-2 e que danos colaterais podia deixar. Imagine se ainda assim quereria ser voluntário neste Serviço. Foram cerca de 150 as pessoas que pediram para ir ajudar este Serviço. Todos eles sem direito a vacina, todos eles estudantes do Mestrado Integrado em Medicina e fiéis admiradores da perseverança de um grupo de médicos e professores, do qual faz parte Nuno Gaibino.
A sala onde nos reunimos apita regularmente, como se estivéssemos em uma das torres de controlo onde se monitorizam os sinais vitais para nos mantermos mais perto da vida, ou da morte. Não duvide que impõe respeito, mas na mesma sala que apita a avisar da realidade de permanente vida no fio da navalha, há um placard personalizado pelas equipas da Medicina Intensiva, com umas das célebres imagens de Banksy (artista de rua britânico) a ilustrar que há um grupo de corações bravos, que arrumam qualquer super-herói para o cesto.
![grafiti de menino](/sites/default/files/inline-images/banksy-enfermeira.jpg)
Na fase mais aguda da pandemia, a Medicina Intensiva cuidava de 80 doentes em simultâneo, duplicando a sua capacidade habitual. Se é certo que em alturas pontuais receberam reforço de outras equipas médicas e de enfermagem, também era verdade que quem tinha de garantir a gestão dos doentes era a equipa de sempre. As rotinas, nos picos mais altos, também mudaram, se num dia o horário era apenas diurno, no dia a seguir a urgência era longa e sem tantas horas a controlar a saída. Os dias de paragem, quando possível, aconteciam a seguir ao banco. Logo depois o ciclo repetir-se-ia, igual. Sem feriados, nem fins-de-semana, sem dias especiais, e na impossibilidade das longas paragens, o lema fica-me claro na voz de Nuno Gaibino, "Virar costas nunca foi apanágio deste Hospital, muito menos desta equipa”. E apesar de contarem movimentos solidários pela parte dos seus pares, médicos de outros Serviços, sabiam que os doentes beneficiavam quanto mais mantivessem a estabilidade nas equipas residentes.
Já o conhecia sobejamente das diversas iniciativas em que se envolveu com os nossos alunos e também por ser referido tantas vezes. Numa breve passagem pelo Gabinete de Apoio ao Estudante surgia finalmente a nossa oportunidade de comunicarmos. A última característica que me deram dele, mesmo à boca de cena de o conhecer, não podia ser mais precisa. “O Nuno disse que estava aqui em 5 minutos, mas já deve ter parado nas salas todas que encontrou, porque conhece meio mundo”. Nem mais.
Nuno Gaibino sempre teve na vida duas grandes metas para atingir: ser médico, ou piloto. Candidatou-se à Força Aérea e passou pelas provas todas, seria, contudo, barrado por uma característica sua que lhe era incontornável, alguma falta de visão. Sabia que a probabilidade de nunca passar nos testes era quase anunciada, mas não quis deixar de colocar a ele próprio cumprir um dos seus grandes sonhos. Seguia-se a outra escolha que colocava no mesmo patamar de importância, a Medicina. Fez as candidaturas em 2005. Nenhuma lhe foi bem-sucedida, igualmente não conseguiu entrar em Medicina. Assumiu que iria para o outro lado da estrada, para Ciências Farmacêuticas, mas nunca tirou o foco daquilo que verdadeiramente ia alcançar. Obstinado e igualmente com grande humor, conta que cada vez que falava com a mãe ao telefone e esta lhe perguntava como estava a correr a vida, Nuno dizia sempre aquilo que o instigava para não se deixar adormecer, "Estou mal, porque estou do lado errado da estrada e passo o dia todo a ouvir aviões que passam por cima de mim". Diz-me que nesse ano aprendeu que o empenho que colocamos nas coisas é o que nos faz chegar às metas. Sabia que havia coisas que seriam sempre incontornáveis, como ver bem, mas outras eram tão simples como atravessar a estrada, dependia apenas da vontade. Fez novas provas, candidatou-se para a sua grande escolha, a FMUL, mas também para fora do país.
É de Vendas Novas, um bom alentejano que lá viveu de seguida até aos 18 anos e só onde regressou para fazer um estágio no seu 6º ano.
Formou-se pela Faculdade de Medicina em 2012. Seguiu-se o ano comum em Santa Maria. Conta-me que aprendeu cedo a vestir a camisola da FMUL. Basta recordar os seis anos de Faculdade que lhe foram intensos.
Assumiu um ano da Presidência da AEFML, altura em que diz que lhe alterou toda a sua forma de estar na vida, não será coincidência ter sido também onde conheceu a Inês, agora a sua mulher. Durante 5 anos acompanhou as atividades da AEFML. Passou também pela Presidência da Assembleia Geral da ANEM (Associação Nacional de Estudantes de Medicina) e pelo Senado e Conselho Geral da Universidade de Lisboa. Desses tempos recorda com especial cumplicidade os meses de verão, em que optava por passá-los em Santa Maria, principalmente julho e agosto, quando o Hospital ficava mais brando, com muitas equipas de férias. Foram esses os tempos que lhe permitiram conhecer desde o piso -2 até ao 8º; chamar pelo nome cada pessoa da equipa de eletricidade, ou saber de cor tudo dos estaleiros, ou aparecer de urgência para resolver inundações na reprografia. Filho da casa que continua a ter como sua e ligado que está a ela desde que entrou, fez, no entanto, todos os estágios possíveis fora do CAML, para poder conhecer várias realidades e só depois saber por onde optar. Já não surpreende a ninguém dizer que Nuno Gaibino quis voltar a casa, ao Hospital e à sua Faculdade.
Em 2019 acabava a sua primeira especialidade, Medicina Interna. Desde esse ano que integra a equipa médica da Medicina Intensiva, segunda especialização que decidiu tirar, ficando esta concluída, no próximo ano. Operacional médico da viatura de emergência médica de reanimação (VMER) de Santa Maria desde 2017, é ainda formador do INEM na área de reanimação e na formação dos operacionais VMER.
Depois de cinco anos como Monitor de Anatomia, em 2013 ficou como Assistente da Faculdade, ano este que é o seu último, já que no próximo ano mudará para a Clínica Universitária de Medicina Intensiva.
É na Medicina Intensiva que nos focamos agora e nos mantemos a conversar.
No momento que antecedeu o caos da pandemia, Nuno Gaibino decidiu que não podia ir tão depressa visitar toda a sua família ao Alentejo, pais, irmão e avó. Com Inês Urmal, mulher de Nuno e também ela médica de Medicina Interna noutro Hospital, aconteceu o mesmo. Foi como se abandonassem os seus, para cuidarem de um universo bem maior, sabiam que estavam apenas a proteger todos os que amavam, o mais possível. Outro fator viria a aumentar a pressão do momento, Nuno e Inês iam ser pais pela primeira vez. Havia agora mais um elemento a proteger, este no entanto bem perto, tão perto que a única forma de o cuidar era tirando a Inês de um grupo de trabalho de risco e longe de doentes COVID-19. Em novembro de 2020 ficaram infetados; a Inês e a bebé passaram bem, mas Nuno apesar de não ter ido para o hospital, passou 12 dias com febre persistente, cansaço extremo e tosse, assim como com mialgias muito intensas. Ambos recuperados, Nuno regressava à sua equipa, com a mesma vontade de sempre. Dos cerca de 20 médicos que constituem esta equipa, apenas 5 ficaram infetados. A estes médicos juntam-se ainda cerca de 120 enfermeiros.
Mas se pensarmos que o Serviço duplicou para um número de 80 doentes, consegue imaginar o desgaste sobre-humano destas equipas?
Não fosse a situação ser dramática no SNS e teria graça a expressão que Nuno Gaibino usaria da sua amiga e Enfermeira Carmen Garcia, "se o problema nesta pandemia fosse falta de camas, o IKEA resolvia". Mas aquilo que está verdadeiramente subjacente é saber, "quando contrata o SNS mais pessoas"? E como ficam os recursos humanos do SNS após uma pandemia? Como foram estas equipas, elas próprias, cuidadas ao longo do processo?
As respostas imediatas dizem-nos para já que continuam eles a cuidar, falando dos seus doentes com uma memória de acesso à informação tão lúcida que encontra na paixão a única explicação para não cederem ao cansaço.
Conhece já o caso do Afonso Cruz?
Afonso Cruz foi um dos doentes internados com pneumonia a SARS-CoV-2 grave. Chegou a Santa Maria, diretamente de Ponta Delgada e já transportado em ECMO (Oxigenação por Membrana Extracorporal) após o resgate ainda nos Açores. A equipa médica e um grupo de estudantes voluntários acompanharam Afonso durante o seu internamento. Pouco tempo depois estaria já a acordar, a ser extubado (em que foi tirado o ventilador), e acordado em processo de reabilitação, mesmo ainda em circulação extracorporal. Duas semanas depois, Afonso saía a caminhar apenas com um aporte suplementar de 1 litro de oxigénio, saindo com critérios de cura para SARS-CoV-2 e a precisar apenas de fazer o processo de reabilitação através da Fisioterapia. É Nuno quem descreve o quadro clínico de Afonso, com dias exatos sobre todos os procedimentos, detalhes tão minuciosos, de quem parece ter-se despedido do Afonso ainda ontem.
"Nós acordamos de manhã à espera que aconteçam mais casos como o do Afonso, porque quem trabalha na Medicina Intensiva sabe que a carga da doença é enorme. Geralmente os doentes chegam aqui quando apresentam um doença aguda, hiper-crítica ou quando alguma das doenças prévias agravou, o que os deixa quase todos em risco de vida. Quem chega aqui vem com algumas falências de órgãos e em casos COVID 19, a insuficiência respiratória faz com que estes doentes necessitem de suporte ventilatório, muitas vezes de suporte de outros órgãos ou até de ECMO”, explica. Mesmo sabendo que uma grande percentagem dos doentes que aqui entram, têm uma das taxas de mortalidade mais elevadas, e no entanto com tendência a baixar, todos os doentes têm expressões da doença muito grave. A boa notícia é que cada vez mais os doentes têm sobrevivido, mas há sempre casos de desilusão, em que não consegue alterar o percurso da própria natureza.
Acredita que o ser humano segue uma sequência natural e lógica de vida, desse processo faz parte também a doença. Apesar de não receberem crianças, chegam a eles jovens vítimas de politrauma, acidentes de viação, ou casos de patologia médica muito grave. Diante de cada insucesso de um doente, estas equipas sentem que é também o seu próprio insucesso, alteram pequenos parâmetros do rumo natural, o que pode permitir travá-lo, mas a natureza seguirá sempre mais tarde o seu caminho. Explica-me que não é o tempo de especialidade que retira a sensibilidade face ao outro, não há um botão que se desliga quando se passa a porta da saída. Mas são as grandes vitórias perante a vida que os movem a voltar, a cada dia, com o mesmo ânimo de começar sempre do zero.
![rapaz a falar sentado na cadeira](/sites/default/files/inline-images/nas%20job%20talks.jpg)
É precisamente este o espírito que dá a sentir aos seus alunos. Sente que tem a missão de ancorar as suas pessoas, ensinar também elas a saber ancorar outros, neste caso doentes. Muitos foram os casos dos alunos que tiveram uma a duas semanas a visitar doentes, num processo de companhia e estímulo pela sua recuperação. Na semana em que terminou o estágio, voltaram. Quando os doentes foram transferidos para a enfermaria, os estudantes continuaram a ir visitá-los e, mesmo quando estes doentes saíram da enfermaria COVID e passaram para "zonas limpas", estes grupos permaneceram no ritual das visitas. Diariamente ligavam ou enviavam mensagem a querer ter mais feedback dos doentes.
Mas não são só os mais novos que têm ligação estreita ao doente. Nuno Gaibino refere com um certo paternalismo que os "doentes são sempre das equipas que os cuidam", e não é expressão exagerada. Há precisamente um ano atrás, saía dos Intensivos um dos doentes mais carismáticos que Nuno Gaibino se lembra de ter cuidado. Pedro, com pouco mais de 50 anos acabou por ficar praticamente 3 meses internado no seu Serviço. Depois de várias semanas sem conseguir respirar sozinho e sempre dependente de um ventilador, a desmoralização era o que lhe marcava os dias e a sua nova forma de estar. Num patamar de rejeição aos tratamentos, Nuno Gaibino sabia que tinha de encontrar algo que o fizesse chegar àquela pessoa. Depois de descobrir que o mesmo clube os ligava, Nuno Gaibino decidiu que falaria do Benfica todos os dias ao seu doente. A conversa manteve-se a partir daí, a respiração passou a ser uns minutos mais suportada e o olhar também.
![dois rapazes com camisolas benfica](/sites/default/files/inline-images/com%20o%20irmao%20pedro.jpg)
O Benfica ia disputar a final da Taça da Liga e o médico Gaibino descobriu que o seu clube também podia ser um aliado da Medicina. Combinou então que no dia da final da Taça, aquele doente já não poderia estar mais internado e teria de ser capaz de poder respirar sozinho, de modo a irem ver um jogo de futebol, ao vivo, juntos. Pedro já saiu do Hospital e em falta está só o jogo ao vivo que só ainda não aconteceu devido à pandemia.
Como é que um Intensivista lida com o esquema de pensamento que “há uma ordem natural da vida”?
Nuno Gaibino: Há situações nos doentes que são simplesmente incompatíveis com a vida e aí temos de tomar algum tipo de decisões. Por exemplo, fazermos o suporte de órgão fútil, é totalmente contra os nossos princípios deontológicos, mas felizmente que a maior parte das vezes conseguimos oferecer perspetivas de tratamento e outras tantas de cura e é isso que nos faz vir trabalhar todos os dias. A Medicina Intensiva, apesar da elevada taxa de insucesso, é também a versão positiva da história, como a do Afonso, ou seja, se não implementássemos a técnica de ECMO ao Afonso, ele poderia ter morrido. Mas conseguimos devolvê-lo aos pais, aos irmãos, ao cão e à ilha dele. E aí mudámos a ordem do acontecimento das coisas.
Consegue medir o impacto que teve para os alunos vir fazer voluntariado com doentes COVID?
Nuno Gaibino: Eles sabiam que o SNS estava em colapso, numa situação que não sabíamos mesmo se íamos ultrapassar. Ainda assim estes alunos quiseram vir e tiveram uma palavra a dizer, disseram de imediato "presente" quando os chamámos. Eles perceberam que, mesmo ainda não sendo médicos, poderiam ajudar a prestar cuidados, alguns de saúde, e outros menos diferenciados. Um doente que está há várias semanas internado, e sem ver família, precisa de um determinado tipo de cuidados que este grupo já o pode dar e sabe fazê-lo. E eles tiveram um papel muito relevante: a fazer chamadas para os familiares, a recentrar doentes que tinham estado adormecidos e que ainda se sentiam confusos. Tentavam manter os doentes acordados e tranquilos, através da presença física que é o verdadeiro tratamento não farmacológico.
Não é psicologicamente mais violento deixar um doente acordado, quando este não se consegue mexer, e deixar que ele perceba que está em circulação extra-corporal em ECMO?
Nuno Gaibino: Para os doentes é sempre melhor estar acordado, em todos os sentidos. Sabe porquê? Nem que seja para perceberem o processo evolutivo que têm; depois a própria colaboração deles é fundamental para nós. Enquanto estiverem adormecidos não colaboram com nada e os estímulos deles são imprescindíveis para acelerar a recuperação.
Deixe-me manter a tónica na parte psicológica, mas desta vez das equipas. Bem sei que estão habituados aos picos de gravidade. Mas não de um pico tão longo e com um perfil novo de doentes. Como estão estas equipas dos Intensivos hoje? Ou é ainda cedo para prever as consequências que tudo isto vos causou?
Nuno Gaibino: Há coisas que mudaram. Passámos por várias etapas ao longo da pandemia. A reação humana foi a primeira de todas. Tivemos de lidar com o medo e de nos preparar para o embate, isso teve implicações diretas na vida de alguns de nós. Alguns enviaram os filhos para os avós, isolando-os do mundo, ficaram meses sem os ver. Não sabíamos se íamos ficar todos doentes e em que medida o íamos ficar. Gerir a ansiedade da equipa foi muito difícil e isso implicou uma reconstrução e a chegada de novos elementos que formaram equipas que não eram para nós habituais. A seguir tivemos de nos reposicionar para a expansão do serviço, estávamos habituados a ir ver doentes a todos os Serviços do Hospital, mas não a crescer e a expandir o nosso próprio Serviço. Chegámos até às 8 Unidades, claro que com apoio de outros colegas.
A equipa estava cansada, apesar dos períodos mais brandos e que conseguiu desacelerar, passou por três períodos bastante diferentes. A primeira vaga teve poucos casos, mas os que recebemos estavam de facto a carecer de Medicina Intensiva. Foi no verão que conseguimos quase todos tirar alguns dias de férias. Mas houve casos que não foram sequer a tempo, porque em setembro/outubro voltavam novamente os casos. A altura mais complexa de gerir foi mesmo o período de janeiro. O quadro refletia bem a expressão "síndrome da cama quente", conseguíamos tratar o doente, ou infelizmente acabávamos por o perder e logo a seguir tínhamos 10 candidatos para aquela vaga. O telefone que recebia os pedidos tocava dia e noite...Entre hospitais íamos falando e gerindo telefonemas e ajustando vagas. Do ponto de vista das equipas costumo dizer que o cansaço físico é aquele que se consegue superar melhor. Trabalhamos intensamente enquanto estamos cá, mas e a fadiga psicológica? Neste momento temos a mesma rotina há um ano. Saímos derrotados porque não conseguimos sempre os objetivos que pretendíamos, derrotados porque há doentes que não melhoram como nós queríamos, vimos muitas pessoas novas gravemente doentes. Tivemos atletas de alta competição em ECMO, tinham menos de 30 anos!
Apesar de resiliência que se mantém, lidar com a doença tremenda, ver sequelas em doentes que passaram por nós, coloca-nos uma grande carga psicológica.
No pior dos momentos Nuno Gaibino conta que nem um único médico desistiu de se manter firme no seu papel. Muitas vezes perto de um colapso, sabiam que se quebrassem, deixariam ainda mais frágeis os que deles precisavam.
Fielmente convicto da importância dos alunos na vida hospitalar, várias foram as pessoas que falaram de Nuno Gaibino como uma força da natureza e fonte de inspiração. O próprio prefere ver nos seus alunos a revelação daquilo que a humanidade tem de melhor, o sentido de humanismo para com o outro. A eles conseguiu transmitir que ultrapassando os medos iniciais, havia inúmeras pessoas a precisar de ajuda, talvez de uma mera companhia. Defensor que devemos apurar as skills humanas, principalmente agora que vivemos num mundo de tecnologia, é obrigatório o exercício de desconstrução e ajuste dos nossos melhores atributos. Talvez esse espírito justifique que quase todas as semanas um antigo doente dos Intensivos vá rever o seu grupo de tratamento, fazendo visitas a Santa Maria apenas para colmatar as saudades do que já viveram juntos.
“A nossa missão é ajudar o próximo e quando não sabemos o que fazer, instintivamente queremos ajudar quem precisa. Não há outra forma de vivermos!”
Na fita de finalista, no fim de completar o 6º ano, a mãe escreveu-lhe, "nunca esqueças a tua casa, sabes que podes regressar a ela". A verdade é que a sua casa é esta hoje, a de Lisboa, a casa grande de paredes cinzentas, com pequenos jardins, milhares de pessoas a circular, onde uns aprendem, enquanto outros os ensinam, onde há mortes e tanto nasce.
O Nuno reservou um bom tempo da sua manhã para me receber, enquanto ia espreitando o telefone porque a qualquer momento podia ter notícias da sua mulher Inês. Inconfidência esta desnecessária, pensa, mas não é. Já pronto para sair e levar a Inês para o Hospital, para assistir ao nascimento da bebé que estava quase a nascer, ainda acrescentou:
"Este é o projeto que eu decidi, já não sei viver sem isto!"
![casal de namorados](/sites/default/files/inline-images/nuno%20e%20in%C3%AAs.jpg)
Não foi logo nesse dia, mas poucos dias depois nascia assim a Maria do Carmo, fruto de uma já sólida história de vida entre a Inês e o Nuno.
Bem-vinda bebé Carminho.
Obrigada Nuno e a toda a vossa equipa.
Joana Sousa
Equipa Editorial
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