Por onde começar nesta história que conta como o Afonso foi devolvido à vida, depois de ter estado ligado a uma ECMO durante duas semanas?
Tecnicamente designada por Oxigenação por Membrana Extracorpórea (Extra Corporeal Membrane Oxygenation), a ECMO intervém quando se veem comprometidas as funções do coração ou pulmões, fazendo assim a circulação e a oxigenação artificiais do sangue. É por meio desta máquina, ligada ao paciente através de cateteres, que este procedimento é aplicado quando se vê a vida de alguém em risco.
Curioso como o Afonso me falou da visita da morte que o veio espreitar no seu pacato recanto nos Açores e o fez adormecer, num coma induzido por três dias. Mal o Afonso sabia que seria esse quase estado de morte que o faria ser transportado de urgência, de Falcon, rumo ao Hospital de Santa Maria, onde uma equipa médica inteira já o esperava. Dentro dessa equipa estava Nuno Gaibino, médico interno intensivista e internista e um dos nomes fortes ligados à Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
Foi Nuno Gaibino quem me apresentou o Afonso Cruz, o sorridente jovem de 30 anos que esta parte da história não me pode ele contar. “Ligaram-nos do Hospital de Ponta Delgada e pediram-nos para resgatar um doente que, em três dias, tinha piorado de tal maneira que precisou de ser imediatamente ligado à ECMO e já veio assim dos Açores, de Falcon até Lisboa, acompanhado por uma equipa médica”. Rapidamente Nuno Gaibino partilha as fotografias de Afonso Cruz, agora já a salvo; assim vi o Afonso no dia da sua própria saída do Hospital, e com um rosto de alegria que facilmente podia justificar o que o médico Nuno me dizia sobre ele, “é um dos muitos casos positivos e inspiracionais para todos nós”.
A versão do Afonso conta apenas um antes e só o depois do coma. “O enfermeiro de Ponta Delgada avisou que precisava de me pôr a dormir para eu ser ventilado, mas na altura nem percebi que iria ser ligado à ECMO, eu estava com medo até aí, mas depois de me ter sido explicado tudo o que me ia acontecer, eu tranquilizei. Quando acordei já estava noutro hospital e só via caras todas tapadas a falar comigo e que, calmamente, repetiram o meu nome e me situavam onde eu estava”.
Não pense quem agora lê, que o relato o pretende chocar, porventura emociona os menos habituados a este roteiro de salvação contra a Covid-19, mas até os que mais o viveram se comovem ao recordar casos como este.
Afonso Cruz trabalha e gere o negócio de família na área da imobiliária, assegurando a parte financeira. Filho da ilha, só deixou a capital açoriana para se formar em Lisboa, retomando a pacatez da sua terra que nem por isso o convida a grandes passeios pela natureza, apesar de muito a admirar. Empático e muito bem-disposto, diz com bastante sentido de humor que “ainda bem que não fez desporto, porque foram alguns quilinhos a mais que o ajudaram na recuperação da mobilidade após o coma”. Por ter sido alimentado apenas a soro enquanto esteve ventilado, Afonso Cruz perdeu muito peso, ainda assim ficou sólido o suficiente para uma rápida recuperação.
Protetor com a sua família e em particular com os pais e os avós que ainda tem, agradece àquilo que chama de sorte, ter sido o único que ficou mal clinicamente, já que era dos elementos mais jovens da família. É igualmente grato por ter ficado infetado, numa fase precoce em que ainda nenhum hospital vivia o pico da pandemia, havendo todo o espaço e tempo para o receber.
Até ao dia 26 de março, quando deu entrada direta nos Cuidados Intensivos de Ponta Delgada, Afonso não passou por momentos nada fáceis. Percebe-se que não é de se queixar, mas sente que também o foram desvalorizando nos sintomas que apresentava e que ia comunicando regularmente por telefone às entidades de saúde locais. Os dias foram lentos e penosos, 3 dias com febre a 39 graus, tosse seca e um cansaço extremo. Diz-me que lhe ficou claro que estava infetado, o teste assim o comprovou, deu positivo, com a variante inglesa. Seguiu-se o oxímetro que lhe confirmou elevada carência de oxigénio nos pulmões. Mesmo aflito para falar e respirar, Afonso não podia pedir ajuda direta aos seus familiares, pois era obrigatório ser o próprio a chamar uma ambulância para o socorrer. Depois de duas horas à espera dessa única flecha de salvação, teve de descer a pé a rampa da sua casa e entrar pelo seu pé na ambulância, “tinham receio de passar pelos portões da casa”, explica-me.
Neste cenário de quase guerra psicológica, os irmãos iam vendo de longe Afonso, para não ficarem todos infetados. Mesmo antes de saber o que lhe estava reservado, Afonso desejava apenas ficar ligado a uma ventilação. A 30 de março ficou em coma induzido. Adormeceu nos Açores e acordou em Lisboa.
Em alguns momentos iniciais e depois de acordar do coma, chegou a ter delírios, período que me explica ser normal mal se acorda. Via insetos e sapos espalhados pelo quarto, mas sabia, em consciência, que não era um cenário real. Assistiu, no entanto, a comportamentos mais violentos de outras pessoas ao lado, reações mais duras de quem esteve mais tempo ausente da vida. Quanto mais cedo estiverem conscientes, mais rápida será a reação, reforça a informação que já Nuno Gaibino referira. Se o corpo o travava de cansaço e inércia, já a mente suspirava por vitória e para regressar a casa e à vida normal, principalmente para poder rever o Bowser, o seu cão de 3 anos que reagiu muito mal à sua ausência, fugindo da quinta onde estava e indo para a casa de Afonso, à espera que ele chegasse.
A equipa médica do Hospital ainda tentou fazer chamadas para o Bowser matar algumas saudades, mas Afonso acha que ele nunca o reconheceu à distância, apesar de ter aparecido um dia ao telefone enquanto faziam videochamada para a família.
Sofreram, sempre à distância os pais e os irmãos, que iam tentando interagir com um Afonso com tubos e que durante duas semanas não conseguia falar verbalmente, apenas pelo olhar e alguns ruídos que lhe expressavam a alma. Sempre a tentar encontrar espaço privado, na mesma medida seguro, para os encontros familiares, Santa Maria deu autorização à mãe para vir passar um dia inteiro com ele. A mãe trouxe as queijadas típicas dos Açores que adoçaram uma equipa esgotada, mas igualmente grata.
Enquanto esteva ventilado, Afonso era alimentado a soro. Impossibilitado de falar, pela intubação, comunicava por gestos e captava os olhares tentando descodificar de quem eram os olhos que chegavam a cada manhã. Treinou muito o sobrolho, diz-me a rir, e quando precisava de algo batia levemente na cama, para que o vissem, mas a verdade é que as equipas lhe adivinhavam as necessidades antes de se tentar expressar. Das coisas que foi pedindo foi que fosse virado, que lhe tirassem as secreções do nariz, ou mesmo assegurar as necessidades fisiológicas mais básicas. Seguiram-se os iogurtes proteicos, para começar a ajudar o organismo a funcionar e a restabelecer o músculo.
Depois de 3 dias em coma, 10 dias sem falar, 15 dias ligados à ECMO e 16 dias internado em Lisboa, Afonso regressou aos Açores já num avião comercial, acompanhado por uma equipa médica de Ponta Delgada, quase recuperado, mas ainda de maca por não ter força de se erguer sozinho.
Atualmente e passadas três semanas de deixar o hospital, e apesar de manter a fisioterapia respiratória e muscular, os níveis de oxigénio dos pulmões parecem estar já normais, o que o faz celebrar a vida, através de uma caminhada habitual de casa até ao trabalho.
Crua descrição a que segue, na mesma medida em que é positiva e um rasgo de esperança para tantos que, vendo a vida a dar a mão à morte, seguem um de dois caminhos: querer viver, ou desistir. Ao Afonso Cruz perguntei tudo aquilo que o medo humano assombra o pensamento, mas que por pudor tentamos não mencionar. Mas o Afonso deu espaço, e eu limitei-me a ser guiada por ele. Inspirada por ele.
Posso pedir-lhe que me descreva exatamente o que se sente quando se acorda ligado a um ventilador?
Afonso Cruz: A ventilação é muitíssimo incómoda. Temos tubos pela garganta abaixo e a boca nunca fecha totalmente, fica seca. Eu só conseguia dormir uma a duas horas por dia, porque tudo incomodava muito. Lembro-me que quando me tiraram a ventilação eu sinto que desmaiei de sono, recordo-me que o primeiro instinto foi ir ver o telemóvel mas não consegui, estava exausto. Eu só queria dormir.
A ECMO fica ligada ao corpo humano por cateteres que transportam o sangue e o oxigenam, entregando-o de novo ao corpo. Descrito assim é impressionante, mas também se sente?
Afonso Cruz: Tinha dois cateteres, um mais perto do ombro, (aponta para si), aqui perto do pescoço, o outro na perna, esta máquina é uma maravilha científica que substitui o coração e o pulmão por vários dias. (fala aliviado) Só se sentiam os cateteres se eu mudasse de posição, nessa altura trepidavam, parecia uma cobra a tremer na perna (sorri). Mas nada que incomodasse. A única altura em que senti que era precisa muita força de vontade foi enquanto estive com a ventilação. E mesmo depois de tirar os tubos, aquele oxigénio todo, com a máscara, é tanto e tão forte, que nos seca o nariz e isso magoa. Mas nessa altura vem sempre uma enfermeira com um creme para nos ajudar e evitar as feridas, é sempre uma salvação. (Ri). Mas sabe uma coisa? Enquanto estive a fazer a ECMO, todos os dias era muito positivo o processo, porque vinha sempre um médico que a cada dia me dizia: "Afonso hoje ainda estás melhor!". Ou seja, todos os dias eu tinha evolução, o que significava que me reduziam o oxigénio gradualmente e que eu ficava com menos dependência.
Explique-me como fica o corpo depois de duas semanas estático e ventilado.
Afonso Cruz: Não nos conseguimos quase mexer, porque perdemos praticamente toda a massa muscular. A única coisa que nos podem fazer é ir colocando de lado, mas são breves momentos. O primeiro exercício que fiz, já uma semana e meia depois de estar consciente, foi sentar-me na cama. Depois de ficarmos tanto tempo deitados, se tentarmos levantar, caímos no chão. É impossível, porque não há músculo para aguentar. Mas é importante dizer que até enquanto eu estava inconsciente, já vinham fisioterapeutas fazer-me exercícios às pernas e braços. Depois, quando me consegui manter em pé, eles passaram para nova etapa, andávamos um pouco, posteriormente passava tardes sentado na cadeira e já não na cama.
Esta é uma pergunta totalmente íntima e que me atrevo a fazê-la porque qualquer pessoa se interroga sobre as suas capacidades básicas quando está numa cama. Como é que se vivem as rotinas básicas, como fazer as suas próprias necessidades fisiológicas?
Afonso Cruz: Somos bebés autênticos. Dão-nos banho, viram-nos. Enquanto estamos totalmente acamados, temos fraldas e mesmo na fase em que estamos inconscientes, fiquei a saber que, o nosso intestino funciona, sabia disso? Mesmo no coma, temos laxantes, para que o intestino nunca fique parado demais. Mas sabe que enquanto estive ventilado, os meus intestinos não precisaram de funcionar, só voltaram quando deixei o soro e comecei a comer.
Afonso, todo este processo da regressão da nossa independência íntima mexe com a cabeça?
Afonso Cruz: Mexe e não... (fica a pensar um pouco) Em situações normais poderia mexer com a cabeça sim, mas neste caso não. Sabe porquê? Porque há uma equipa inteira a puxar por nós, a cuidar de tudo. Claro que o corpo desistiu de alguma forma, basta ver muscularmente, e isso torna-nos em bebés de novo, mas aceitamos esses cuidados que olhamos de forma positiva. É impossível sentirmo-nos sozinhos ou envergonhados, porque são equipas incríveis. Santa Maria deve ser bom em qualquer parte do mundo, como é que é possível em tão pouco tempo eu ter saído tão bem! (Dá uma gargalhada) Já tive mais stress desde que estou a trabalhar do que enquanto estive naquele Hospital.
Eu tive muita sorte, éramos só dois intensivos naquela altura, até nisso tive sorte. No meio da gravidade eu fui um sortudo.
Não deixa de ser incrível a perspetiva positiva que dá a tudo isto.
Afonso Cruz: Dou, dou! Sabe que as coisas que, socialmente, me deixavam mais incomodado, hoje em dia passam-me ao lado. Agora olho e digo, "pronto, o mundo é imperfeito". Mas relativizo. Veja, já cerca de 1 milhão de portugueses ficou infetado, outros menos ficaram internados, outros menos ainda ficaram em coma como eu. Mas ter escapado a tudo isto é uma sorte incrível, como não posso ser positivo, não é?
Em que é que a sua vida mudou desde que veio do Hospital? Como está a locomoção?
Afonso Cruz: Acredita que nas minhas caminhadas sinto que já estou igual? Eu pelo menos acredito. Bem sei que a recuperação pós-Covid pode ser muito complicada, dependendo da pessoa, principalmente se a pessoa fazia muito desporto e se era muito ativa. Mas eu não era atleta, nem muito desportista. (ri) Gosto de andar a pé, mas não sou de grandes corridas. Também já não era, por isso, veja, continuo a não ser. Está tudo bem assim! Só sinto que a respiração muda se apanho inclinações na rua, a resistência tira-me o fôlego, mas eu pergunto sempre, "já eras assim antes do Covid, ou não?".
O Afonso passou-me várias vezes a ideia que sente saudades do Hospital de Santa Maria e das equipas médicas que o cuidaram, que o salvaram. Há nele quase uma vontade movida a impulso para os vir visitar.
Sabe, contudo, que para rever essas equipas que o salvaram, vai precisar que as próprias pessoas se identifiquem, pede que lhe contem uma história para recordar quem foi que o ajudou. As equipas dos intensivos mostravam apenas o olhar e leves fios de cabelo e por isso Afonso criou um imaginário dessas pessoas, sem saber se correspondiam ao visual certo. Quando na saída viu parte da equipa menos forrada pelos EPI's (equipamentos de proteção individual), ficou espantado como tinham rostos tão diferentes e com tanto cabelo, descreve-me. Havia exceções, sempre reconheceu o seu médico Nuno Gaibino, "ele vinha sempre com um entusiasmo quando era a altura das chamadas, era impossível não perceber que era ele".
![medico sentado](/sites/default/files/inline-images/proximo_0.jpg)
Das coisas que mais valoriza hoje em dia é poder ter uma casa de banho completa, com um chuveiro, ou poder fazer sozinho as suas rotinas mais privadas, luxo dos países civilizados, diz-me com tremendo valor.
Nos tempos mais duros, recebeu tantas mensagens por whatsapp que “parecia uma figura pública”, eram centenas as mensagens que procuravam uma notícia do seu estado. O Afonso ri e o tempo todo, na mesma proporção relativiza muito, ritual que faz com regularidade. Depois é muito grato, porque apesar de todo o dito "azar", a sorte foi a sua guia quase todos os dias. O próprio remata este nosso encontro virtual.
"Eu estou aqui por causa de vocês todos, nem tenho como agradecer".
Joana Sousa
Equipa Editorial
![Share](https://www.medicina.ulisboa.pt/sites/default/files/media-icons/share.png)