A manhã é agitada aos meus olhos, mas para aquele grupo diria que é um dia comum e rotineiro. Chego precisamente num horário em que assisto a uma troca de equipas, uns estão de saída, outros ainda agora a entrar. A sala é pequena para o aparato, ali não há qualquer tempo morto. Há dois computadores, sempre ocupados pelos médicos que vão preenchendo informação por diversas vezes. Há uma certa boa disposição, algo misturada com um cansaço de quem terminou agora o banco e está prestes a ir para casa. Falam nas cápsulas de café que um deles trouxe para partilhar, uns agarram nas lancheiras agora vazias já que estão prestes a sair, outros querem apenas despertar melhor para começar o longo dia.
Acomodo-me na sala, estranha e com medo de parecer intrusa, mas ninguém me olha como tal. Bem pelo contrário.
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Ouço falar de temas que me fazem deslizar um pouco mais pela cadeira abaixo, só pela sensação de medo que me assola, enquanto me abano com folhas cheias de tabelas que afinal estavam a ser procuradas por uma das pessoas da equipa. No léxico apanho conceitos que me são levemente familiares: esperam os resultados de uma biópsia, aguardam mais detalhes sobre uma endoscopia e estão a contactar outro hospital para ultimar os dados sobre o resgate de um paciente que precisa dos cuidados destas equipas de Santa Maria. Os médicos vão entrando e saindo, quase todos têm uma palavra simpática de “bom dia “ para dar. Eu cheguei atrasada, porque aquilo que me parecia um trajeto óbvio e fácil, fez-me perder mais uma vez no Hospital de Santa Maria e, como tal, deixei a Professora Susana Fernandes à minha espera, como se o tempo não fosse importante, mas eu sei bem como ele é raro e precioso para a agenda de todos. Constrangimento meu absoluto, mas rapidamente instalo-me ali e ali apetece-me voltar tantas vezes mais.
Susana Fernandes é médica Intensivista em Santa Maria, responsável pela Medicina II, regente de Medicina Intensiva e a Diretora da Clínica Universitária de Medicina Intensiva, da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. A cada fragmento de um minuto, é solicitada por rostos de várias equipas que a interpelam, mas estão já habituados a verificar se é mesmo imprescindível falar naquele momento, ou se pode ser retomado para depois. Estamos em contagem decrescente para falar sobre as dezenas de estudantes que se voluntariaram para ir apoiar as equipas da Medicina Intensiva. Dentro de poucos minutos vai retomar mais uma da suas rotinas interrompidas durante o período alto da pandemia, dar aulas, agora via zoom.
Marcam-me alguns nomes e rostos. A Ana Rita, Assistente hospitalar de Medicina Interna e em formação em Medicina Intensiva e o João Oliveira, interno de 3º ano em Nefrologia e com quem vou falando entre as entrevistas que decorrem ali durante toda a manhã. O Pedro, outro médico que entra, recebe os meus “bons dias”, opto por alinhar no bom espírito e reforçar as “boas-vindas a mais um dia de trabalho no nosso Hospital”. A ideia parece ser bem recebida, quem não gosta de ser tratado com ânimo?
Estas disponíveis pessoas, todas com um rosto empático, falam-me de um doente especial que há 92 dias (à data a que escrevi este artigo), dizem-me, sem fazer contas mentais, quase quebra e se despede da vida, mas quase todos os dias também se levanta e comunica que não é ainda o seu tempo de morrer, porque assim não o quer.
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Venho passar a manhã à Medicina Intensiva, depois de um breve encontro com um dos seus elementos, o médico Nuno Gaibino, ex-aluno da FMUL e um nome ativo que sempre manteve os laços emocionais à sua Faculdade e às suas pessoas. Falou-me que 130 alunos tinham passado pelas enfermarias Covid da Medicina Intensiva, porque queriam ajudar, mesmo que isso implicasse riscos para eles. Ao longo de poucos meses e depois de um longo período de exaustão, o Hospital de Santa Maria abriu as suas portas mais privadas aos alunos de Medicina e pediu-lhes ajuda, para continuar a cuidar de doentes infetados pelo SARS-CoV-2.
A ideia embrionária surgiu em meados de novembro, altura em que a solicitação na área da Medicina Intensiva, área Covid, não tinha mãos a medir. Havia a sensibilidade para aceitar ajuda externa e algumas ideias chegaram a ser trocadas nesse sentido. Em janeiro, o Diretor de Serviço de Medicina Intensiva, João Ribeiro, voltou a abordar o assunto, mostrando urgência na sua aplicabilidade. Rapidamente aquilo que era só uma intenção, saltou para a prática. Coordenados com a Associação de Estudantes (AEFML), e em consonância com a Direção da Faculdade, começou-se o plano para envolver estudantes voluntários, entre os 4º e 6ºanos, para a Medicina Intensiva.
As mãos não chegavam para tudo e a equipa era a mesma para assegurar as 7 Unidades que prestavam cuidados a todos os doentes infetados pelo SARS-CoV-2. Quem me faz o relato calmo e sempre ponderado é Susana Fernandes, afinal para quem trabalha em Medicina Intensiva, estas características são-lhe já inatas. "Precisávamos de ajuda para alguns momentos de trabalho menos diferenciado mas que exigia conhecimentos de léxico clínico, ajuda essa que alunos dos anos mais acima, já saberiam dominar. Então fizemos um levantamento de quantos alunos poderiam estar interessados e admito que, contra algumas das minhas expetativas, inscreveram-se cerca de 130, a 150 alunos. Eram muitos! E assim tentámos aproveitar esta vontade deles ao máximo, até por reconhecermos que poderia haver algum cariz pedagógico a acrescentar à vida académica deles e tentámos envolver mesmo todos. Nesse intuito, criámos o maior número de turnos e rotatividade que lhes permitisse vir mais do que uma vez, durante uma ou duas semanas consecutivas para cada aluno, dando um total de quatro dias para cada um. A verdade é que a partir de março, a necessidade de termos apoios foi menor, porque o número de internados também reduziu significativamente. Se por um lado vieram ajudar, por outro vieram também completar o contacto clínico deles, reforçando assim um lado que estava deficitário devido à pandemia”.
Que tarefas podiam eles assumir?
Susana Fernandes: Acompanhavam muito os doentes, ou seja, há muitos doentes que são sedados e depois disso, e ao acordar, encontram-se confusos e precisam de ter sempre alguém perto que vá comunicando com eles, fazendo companhia e alguma integração. Colaboraram connosco em muitos posicionamentos dos doentes, porque era necessário colocá-los em posicionamento de decúbito ventral (quando o paciente fica deitado de bruços sobre o abdómen, com a cabeça voltada para um dos lados); envolveram-se em atividades próximas dos doentes, para nos ajudar a exercer técnicas. Ajudaram ainda em tarefas de registos, porque a nossa capacidade de os fazer não estava a ser eficaz, não conseguíamos chegar a tudo, até porque mantínhamos as linhas de investigação na área Covid.
Como foi a reação dos nossos estudantes diante destes cenários reais?
Susana Fernandes: De grande entusiasmo principalmente. Mas houve de tudo, algumas síncopes lá dentro, mas transitórias. No dia a seguir voltavam e queriam recomeçar tudo de novo, a verdade é que o ambiente era duro, não só pelo que viam, mas porque estavam muito mais tapados e vestidos. Mas adaptaram-se todos e muito bem. E do ponto de vista cívico foi igualmente muito importante, muitos deles sentiam que estavam longe da realidade. Cheguei a falar deste tema com o António Velha (o Presidente da AEFML), para estes estudantes, se não tivessem colaborado nem assistido a nada nesta fase pandémica, o que iriam eles recordar daqui a 5 anos quando olhassem para trás? Eles queriam muito envolver-se nestas atividades e fizeram-no noutras frentes, como a linha Saúde 24 e outro tipo de ações de solidariedade. Mas este era, sem dúvida, o verdadeiro terreno real.
E para vocês equipa médica também foi importante o contacto com um grupo eventualmente mais naïf, igualmente menos cansado e pressionado?
Susana Fernandes: Trouxeram energia diferente... Recordo-me que uma das alunas, só o facto de vestir o EPI, aquilo deu-lhe um entusiasmo tal que ela fotografou tudo, isto depois de ir lá para dentro e contactar com doentes; ela estava totalmente feliz. Havia outros que chegavam a ficar mais de duas horas só a falar com um doente, depois voltavam para manter o processo de acompanhamento deles. Também tivemos dois ou três casos de pessoas que vieram ajudar e que o quiseram muito fazer, mas pediram só para não ir para a área Covid, fizeram a parte mais burocrática. Mas a grande maioria quis ir mesmo para a área Covid e queriam era estar ali à cabeceira do doente. Ajudaram e acompanharam muito os enfermeiros e isso foi muito rico para eles.
Como é que foi esta gestão de recursos humanos na Medicina Intensiva, que duplicou de tamanho de doentes, mas não de equipa? Como geriram vocês estes tempos?
Susana Fernandes: Foi... (hesita, está pensativa) Foi um trabalho de uma grande entrega e de grande resiliência. Foi essencialmente isso que nos aguentou. Depois, dividimo-nos muito mais, normalmente trabalhamos em equipa, equipa essa constituída por pessoas séniores e outras mais juniores. E aqui tivemos de nos separar todos, cada sénior ficou sozinho a receber a colaboração de outros médicos que nos iam chegando das mais diversas áreas.
Neste período nunca conseguiram parar e descansar?
Susana Fernandes: Não... No espaço de um ano, só agora estão a ser gozadas as primeiras férias. Mas conseguimos chegar aqui! E já estamos a dar aulas aqui na Medicina Intensiva de novo, algo que teve de parar porque não tínhamos qualquer capacidade. Eu e a Profª Catarina Mota (também da Medicina II) já voltámos a dar aulas, houve ali uma altura em janeiro e fevereiro que isso era impensável, felizmente essa altura coincidiu com a época de exames, em que se tornou impossível ter aulas mesmo. A partir de março tudo voltou a melhorar novamente.
O que prevê nos próximos tempos, sendo que já assistimos a um desconfinamento muito generalizado?
Susana Fernandes: Sabe que é difícil fazer essa previsão, porque mesmo em janeiro as explicações para o que aconteceu foram várias e não havia só uma única razão possível. Vai, por isso, tudo depender muito da capacidade de vacinação em massa nos próximos meses, esse será o passo mais importante. Depois, é importante ir percebendo a estirpe do vírus que está a circular. Acredito pessoalmente, e não sendo epidemiologista, que não vamos voltar a passar por aquilo que se viveu em janeiro. Mas se viesse mais uma terceira vaga seria extremamente complicado, porque as equipas estão esgotadas.
É importante referir os alunos do 6º ano, a pedido da Profª Helena Cortez Pinto, foram diluídos entre áreas porque estavam muito parados e sem saber como agir, para onde ir. Só nós aqui tivemos 5 alunos, e foi um contributo muito enriquecedor para nós. De tal modo que queremos muito que o 6º ano passe a estar mais integrado nas nossas equipas, podem adquirir excelentes conhecimentos e darem assim um salto qualitativo no seu percurso. Posso dizer-lhe que o empenho deles foi tal que no final podiam ser equiparados aos internos mais jovens. Isto aconteceu no âmbito de estágio pedagógico, o que os fez obter uma nota final.
Faria sentido enquadrar de forma cíclica e continuada, a presença dos estudantes, a partir do 4º e em diante, numa aproximação cada vez maior à realidade?
Susana Fernandes: Essa ideia tem cabimento, mas é mais complexa do que possamos pensar à primeira impressão. Para eles virem para uma Unidade, é preciso criar-lhes também as circunstâncias certas para que se possam adaptar e aprender. E nós temos de estar disponíveis para explicar e acompanhá-los. Seria necessário uma preparação prévia para os próprios estudantes, teriam de perceber que comportamentos são os adequados junto dos doentes, perceber o que é o espaço do doente. Necessitaria de formação organizada, como aliás o fizemos para receber estes estudantes voluntários. Mas a experiência e o contacto com a realidade clínica são muito interessantes, até para que saibam exatamente o que querem seguir, e porque foram contribuindo para os próprios serviços.
O projeto de voluntariado de estudantes de Medicina contínua, mas das 7 Unidades que estavam ativas no pico da pandemia, agora são 4 as áreas em funcionamento. A boa notícia é que deixou de ser urgente ter apoio extra destes estudantes, não porque não o queiram continuar a dar, mas porque a taxa de redução de infetados desceu em larga escala.
Foram pedidos testemunhos finais a este grupo de voluntários e comprovou-se que a adesão em massa lhes trouxe também a eles forte motivação e grandes mensagens de vida.
Vale a pena conhecê-los!
Romana Rodrigues
Aluna 6º ano – Não foi por estar no 6º ano que não se voluntariou, a verdade é que o seu estágio em Medicina Interna estava em compasso de espera, devido à pandemia e ir para a enfermaria Covid foi a sua desafiante alternativa.
Mãe de uma bebé de 11 meses, tem agora de estudar para a Prova de Nacional de Acesso. Há poucas semanas, Romana entrava às 9h no Hospital, a primeira tarefa era passar em revista os doentes que, a cada dia, podiam mudar. Refere com grande apreço Susana Fernandes que responsabilizava um doente por cada aluno do 6º ano, sempre com supervisão, mas igual voto de confiança. Antes de ir ver o seu doente do dia, os passos mantinham-se iguais: estudar a ficha clínica da pessoa e só depois equipar-se com o fato Covid (EPI) e entrar na área restrita. As horas de saída, que deveriam apontar para as horas de almoço, acabavam sempre por derrapar para mais tarde. Durante dois intensos meses apaixonou-se pela Medicina Intensiva e pela adrenalina que ela causa, se não fosse pela maternidade e a responsabilidade que ela acata, Romana escolheria sem hesitação esta área como especialidade final. Mas por ser um pouco mais velha do que a média dos seus pares e pela sua vida atual, manter-se-á fiel ao seu primeiro grande amor desde que escolheu Medicina, a Gastrenterologia.
"Sabia que havia riscos de vir para esta área, porque não estávamos nem íamos ser vacinados. Tive algum receio se teríamos o nível de conhecimento suficiente para podermos ajudar. Mas entre correr riscos e poder agarrar a oportunidade, nem hesitei. Foi algo tão enriquecedor, como assustador, particularmente na primeira semana. Senti que precisava de legendas para tudo, tudo se ouvia por siglas e que até agora só ouvidas por nós em algumas aulas teóricas. Nesta área deparamo-nos com a realidade de ter de intervir em suporte de órgão e nós não estávamos propriamente preparados para isso. Foi uma corrida contra o tempo, sabia que sendo aluna, tinha de ajudar, mas sem atrasar as dinâmicas de quem já cá estava. Chegava a casa e lia vários artigos, li vários. Quando achava que já percebia algo, chegava depois ao Hospital e percebia que era tudo totalmente diferente. Na verdade, quando estudamos, há o cenário ideal, em ambiente controlado, e depois há o hospital e a vida real. A aplicabilidade do que li não era depois assim tão claramente evidente. Claro que senti muita dificuldade, mas deparar-me com dúvidas e dificuldades, faz parte das rotinas de um aluno de 6º ano. Há uma história em particular que vou levar de um dos doentes que marcou toda esta equipa médica e de enfermagem, e que traduz a resiliência e a provação máxima do Homem. Aprendemos que estar fit e saudável, pré-covid, não permite dizer que não se vai ficar sempre ileso no que toca à saúde, porque é algo errado; aprendemos depois a acreditar muito na força humana, porque quase diariamente há um doente que absorve um embate negativo da doença e volta a colocar-se de pé e a querer acordar sempre no dia a seguir. Estar aqui neste Serviço, deu-me uma noção da dimensão médica, mas igualmente da humana e da sua vontade interior".
Margarida Sá Machado
É de Braga e está no 6º ano do MIM. Sempre olhou para o aluno de 6º ano como alguém que sabia muito, e a cada ano que ia fazendo o seu curso, aspirava chegar a esse momento. Agora que ocupa honrosamente o lugar de finalista, e diante de uma pandemia que mudou as regras para todos, acha que estão mais perto da incapacidade de uma criança, que da sabedoria da solução de um crescido. Exercício de humildade que cultiva, agora que sabe que "quanto mais sabe, sabe que nada sabe". Reflete um tratamento de igual para igual entre médicos e alunos, e agradece-o pela forma nada hierarquizada entre pares, algo que era impensável ao longo do percurso académico. Sempre fez os estágios todos em Santa Maria, em cirurgia pediátrica, depois cirurgia geral, mas este último soube-lhe a quase nada, porque foram apenas duas semanas, quando numa fase normal seriam seis de estágio obrigatório. Sempre gostou da dinâmica dos Intensivos, estes eram para Margarida os "médicos mais completos", conta-me. Chegava o mês de janeiro e Margarida fazia parte da reorganização do Hospital, dos 15 doentes que ocupavam a enfermaria, e nessa altura estando a Margarida em estágio curricular, a única certeza que tinha é que nunca se sabia como seria o dia seguinte. Lembra-se do seu último dia de estágio convencional, foi o dia em que ajudou a transitar esses mesmos 15 doentes para a enfermaria do Pulido Valente. A sua área de estágio em Santa Maria passava agora a ser somente área Covid. Terminado abruptamente o estágio, por incapacidade de manter os alunos e porque havia sérios riscos de contágio, estes foram para casa sem saber o que esperar. Foi nessa altura que tomou conhecimento da abertura de vagas para estágios curriculares de 6º ano e foi das primeiras a ficar integrada. Esqueceu-se, no entanto, de avisar que estava diante de uma pielonefrite (infeção bacteriana do rim), desvalorizando a febre e a dor e fraqueza absoluta que sentia. Vestir um EPI e estar várias horas com a respiração circunscrita a um fato fechado e máscara, causou-lhe várias sensações de desmaio, mas nunca cedeu. Durante meses evitou a família por segurança e controlou as saudades daqueles que são o seu porto de abrigo, mas admite que agora que regressou a casa, precisou de repor muito colo e conforto. Neste último ano percebeu que não de deve ter vergonha de pedir conforto e apoio, porque a emoção ou a vulnerabilidade não traduzem fraqueza num estudante que está sempre a ser preparado para não falhar. E será sem fraquezas que a Margarida quer estar na vida, como médica? Para ela está claro que não.
"Na Medicina Intensiva Covid senti muito menos medo que numa enfermaria normal, porque todos os dias só tínhamos acesso a máscaras cirúrgicas e a um fato descartável. Todos os dias chegava alguém da secretaria a dizer que “tinha aparecido mais um contacto na enfermaria e que havia um novo infetado”. De imediato íamos ser testados, mas nem sempre havia tempo para estarmos certos dos resultados desses testes. Era uma incerteza diária grande, porque ninguém sabia de onde vinha o risco. E na Medicina Intensiva, a partir do momento em que entramos no “covidário”, sabemos que estamos protegidos da cabeça aos pés e mais não é possível para salvaguardar a nossa segurança. Claro que os primeiros procedimentos são imponentes. Bastava deixar parte do cabelo visível que havia risco de contágio. Nesta fase senti que temos uma geração muito atenta ao outro, que sabe que um abraço, que ele por vezes basta para que alguém ganhe força. Basta estar ao lado de alguém que sai de um ventilador e dar uma palavra de ânimo. As pessoas estão assustadas, estar rodeado de máquinas e apitos é assustador, estes doentes estão assustados e muitas vezes acordam ligados à ECMO. Estes mesmos doentes quando adormeceram, não sabia o que lhes ia acontecer. É como acordar dentro de um pesadelo, apesar da ECMO ser a máquina que lhes vai salvar a vida. Estes doentes confiam em nós e confiam-nos as suas vidas e algumas vezes sabiam que não iam sobreviver. Ainda assim, agradeciam por cuidarmos deles até ao fim. Esta aprendizagem vale muito além da boa nota, a boa nota pode cegar-nos e a Medicina tem uma magia muito além disso. Só no contacto com os Serviços é que sabemos o que é a realidade. Se calhar não estudei tanto quanto devia para o exame que será em novembro, mas o que aprendi de clínica dá-me uma bagagem que não tem preço".
Nota - A Margarida já entregou a tese a 10 de Maio, a defesa será a 28 de junho. Para ela só podemos querer que lhe aconteça o melhor!
Joana Asseiro
Aluna do 4º ano do MIM ofereceu-se como voluntária, depois de passar um 2º semestre do seu 3º ano parada e sem saber o que a vida académica lhe traria. Inscrita e aceite, a Joana diz com grande pena que "só conseguiu frequentar duas manhãs da enfermaria Covid", veio num sábado e ficou para domingo. Irmã mais nova de duas filhas, a irmã já vai mais à frente no caminho de médica, é Anestesista em Coimbra, terra natal de ambas. A Joana sabe ver os lados positivos da vida, mesmo quando tem presente que há um reverso da moeda. Estes últimos tempos assim o mostraram, mas nem por isso olha para o que a rodeia com menos magia. Aulas à distância? Poderia ter encarado um problema, mas preferiu ver a solução. A transição do físico para o virtual chegou a beneficiá-la, explica-me, permitindo-lhe que se pudessem rever aulas e melhorar notas e apontamentos. Mas era preciso fortalecer a prática e começar a treinar a elaboração da história clínica, a fazer o exame objetivo ao doente, bem como as manobras semiológicas. Joana viu-se "presa em si própria", contudo não se resignou às decisões forçadas das circunstâncias e decidiu oferecer as suas mãos para uma obra maior.
"Cada pessoa faz do curso de Medicina o que quer, no sentido em que parte de cada um mexer-se para ter mais experiência e contactos com a realidade e com a clínica. Precisamos de nos mover, de mexer nas coisas, devemos ser insistentes para nos envolvermos nos procedimentos todos e isso traz resultados, funciona. Eu sempre fiz por ter mais prática, já que o curso nos prepara muito para a teoria. Claro que nos conseguimos adaptar e, à medida que vamos fazendo a especialidade, vamos ganhando mais experiência, mas a mim custa-me esperar por esse tempo. Gosto mesmo de ir para as enfermarias e de tentar, de experimentar. Quando me inscrevi como voluntária, o meu medo era que eu fosse inútil, que não soubesse fazer nada, por outro lado achei que era essa a melhor forma de aprender. Temos de aprender a resolver os nossos problemas. Só custa a primeira vez, essa vez é horrível, depois é continuar a tentar. Quando cheguei à enfermaria Covid, vinha cheia de medo, admito, li e reli o mail que nos mandaram em que explicavam os passos todos. Mal cheguei fui recebida pelo Dr Nuno Gaibino, ele e os internos foram incansáveis, mostraram tudo, explicaram tudo com o maior cuidado. No momento em que cheguei, não havia nenhum doente com infeção ativa, logo nem foi preciso vestir o EPI. Na verdade até senti pena, queria ter experimentado essa parte, porque estava a viver tudo muito intensamente. Mas já era março e felizmente não havia quase infetados. Fui com uma equipa examinar doentes e, claro que, usámos as proteções adequadas como as máscaras FFP2, as luvas e sempre a desinfetarmos tudo. O foco era observar doentes que já tinham estado infetados e estavam com grande défice muscular, quando ficam muito tempo acamados, perdem massa e há uma atrofia que é característica nestes doentes de Cuidados Intensivos. Nunca tinha estado numa UCI e não tinha noção da debilidade humana. Nunca estamos preparados para ver tudo e eu vim precisamente com a intenção de perceber se tinha estrutura para seguir uma área destas, ou não. Admito que saí daqui e pensei que não queria muito enveredar por este caminho, é demasiado duro para mim, mas foi muito bom vir para saber tirar as minhas próprias conclusões".
Gabriela Rodrigues
Está no 4º ano do MIM e tem dupla nacionalidade, parte da família é de Floripa e Gabriela não para de contar as semanas para voltar a um dos seus lugares do coração, o Brasil. Entrou como voluntária já numa fase mais calma para a Medicina Intensiva. A verdade é que queria ter entrado logo no primeiro turno, para entrar no meio do caos. "Quem está em Medicina quer ajudar", explica-me como condição lógica para quem chegou ao primeiro ano que lhe proporcionaria a ligação à clínica. Estava ansiosa pela experiência, mas o rumo académico travou-se sem poder controlar nada. Desmotivada, porque os tempos a obrigaram a abrandar, ficou-lhe claro que estava longe de colocar o melhor de si nas coisas que fazia. Era como se quisesse chegar mais além, mas faltava o impulso real, a oportunidade. O cenário de algum desalento viria a mudar a partir do momento em que lhe foi comunicado que iria integrar as equipas da Medicina Intensiva, como voluntária na área Covid. O primeiro embate não foi fácil, como peixe novo num oceano grande demais para o seu tamanho. Novo léxico, novo ritmo entre médicos e doentes, tudo isto deu a Gabriela um sentimento de ser “demasiado pequena” para tamanho desafio, mas aproveitou a oportunidade para mostrar por que razão queria estar ali. Não começou com pouco, um dos seus primeiros contatos foi uma doente em ECMO. Ficou um fim-de-semana e depois de passar a Páscoa, voltou novo período de tempo e ganhou o seu verdadeiro presente, a senhora que estivera ligada a uma ECMO, já estava fora de perigo. Nunca tinha visto ninguém tão frágil à sua frente, ver nas notícias um cenário de fragilidade já lhe era habitual, mas diante dos seus olhos havia um embate duro demais. Ainda a viver com os pais e com a irmã, não pediu a opinião para a decisão que tomou, preocupada principalmente com a saúde e bem-estar dos pais, avisou apenas: "Mãe e pai, eu vou para a Medicina Intensiva". E assim foi.
"As pessoas que conheci estavam altamente debilitadas, pessoas novas, com pouco mais de 50 anos. Isso mexe connosco e com aquilo que tínhamos como convicção. E mostra que aquilo que eu tinha visto nas notícias era real, tudo igual. Falei com o meu Professor Nuno Gaibino e este foi o cenário que eles viveram, mas agora imaginem levado à exaustão”.
Katerina Drakos
Está no 5º ano e sempre foi habitual envolver-se em inúmeros projetos académicos e causas solidárias. Diretora de Intercâmbios Clínicos para Incomings na ANEM, aprendeu primeiro a falar inglês, só depois apurou o português, percurso lógico para quem tem dupla nacionalidade e um pai igualmente do Chipre. A pandemia levou-a inicialmente até à linha Saúde 24, onde prestava informações a quem ligava a pedir ajuda. Os turnos acabaram por parar, já que a dada altura a afluência diminuíra. Continuou a sua vida de aluna, até que novo mail lhe viria a fazer luz aos sentidos. Ser voluntária nos Cuidados Intensivos era a ajuda que queria dar, diante de uma situação pandémica. Conseguiu entrar nos primeiros meses, o que lhe permitiu frequentar três semanas a enfermaria. Começar logo por doentes em estado crítico e quase todos infetados por Covid, conseguir acompanhar uma trajetória de evolução dos doentes e assistir a uma enfermaria a deixar de ter tantos doentes críticos por infeção, são os momentos que relata. Decidiu ler artigos científicos, porque queria dominar o léxico que ainda não era o seu, mas que queria apanhar. Recebida por Nuno Gaibino, um dos médicos que foi sempre dando as boas-vindas a todos os estudantes, teve ainda tempo para receber informações transversais, para se sentir menos fora de pé. A função de Katerina era manter laços e comunicação com os doentes. Os primeiros dias descreve como um choque, viu casos que eventualmente a acompanharão para sempre na memória de alguém cuja visão da realidade mudou.
"No dia em que entrei vi uma senhora entubada. Ela não conseguia sequer falar connosco, mas gesticulava e chorava. Quando fizemos a chamada para a família ela não conseguia disfarçar a angústia que sentia de estar ali, naquele grau de dependência e sem conseguir descansar a sua própria família. Eu sentia-me uma mera espectadora, limitava-me a segurar no telefone e sentia-me intrusa. Eu e uma amiga que também foi como voluntária, estávamos iguais. No segundo dia a senhora já tinha sido extubada, o que significava que já estava ligeiramente melhor. E no terceiro já estava a falar normalmente e foi extremamente simpática. O que parece estranho é que ao terceiro dia já tínhamos criado uma forte ligação a ela. Percebemos o impacto que também tivemos para ela quando, depois de quase uma hora a conversar, nos íamos afastar para falar com outro doente, e a senhora pediu-nos para ficar. Pediu tempo connosco, precisava de mais atenção. No fim agradeceu muito, referiu que tinha sido dos momentos mais importantes da sua vida. Aqueles doentes sentem-se completamente sozinhos, ligados a máquinas, com vários tubos e rodeados de barulhos vários, o tempo todo. Para lá disso veem poucas pessoas e as que veem só as identificam pelo olhar, todo o resto está tapado. Tinha graça como essa senhora nos disse que éramos bonitas e na verdade só nos viu o olhar... Houve outra senhora que me marcou muito, era dona de uma padaria e, quando começou a pandemia, ela começou a fazer pães com chouriço para todas as equipas médicas e vinha ela própria entregar. Tentou ajudar tantos e acabou por contrair a doença. Felizmente depois ficou bem, mas parece quase injusto, não é? Já eu tive sorte, porque cumpri o meu objetivo, estabelecer o contacto social. Mas isso trouxe-me um peso inicial, porque ao regressarmos a casa, aquelas pessoas não nos desaparecem dos pensamentos. Eu costumo ser uma pessoa positiva e percebi que só agora me confrontei com a morte, pensei muito no processo e ele é tão complexo que não sei como falar dele ainda. Eu fazia os turnos da tarde e ia a pé para casa, já era de noite. Recordo-me que ia a ouvir um podcast que referia, precisamente, a ausência da ligação humana para com os doentes e da incapacidade de não se saber nada da história de vida da pessoa. Aquilo marcou-me muito. E fez-me, também, refletir como nos meus primeiros anos de formação, não nos passaram as melhores mensagens, porque vi-a que se dirigiam aos doentes pelo número das camas. Um doente não é apenas um número de cama e sobre quem se vai escrever a ficha clínica; o doente é uma pessoa que tem história. Falta ainda muito a componente humana e é o voluntariado que me tem ensinado isso. Precisamos de mais experiências destas, com uma componente de voluntariado e contacto com o doente. Porque é muito diferente aprender sobre algo, ou contactar com algo real"
Mariana Dores
Mariana Dores está no 4º ano, entrou na Medicina Intensiva no período de abril, numa fase mais calma. Logo no seu 1º ano no estágio de enfermagem foi para a Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos, momento marcante já que assistiu muito precocemente à morte de um bebé de apenas seis meses. Durante dias ficou aterrada e não conseguia sair com os amigos, ou simplesmente ir apanhar sol sozinha à praia. O embate com a realidade apelou ainda mais pelo seu sentido de humanismo com o doente, não é por isso em vão que idealiza uma Medicina correta onde se estimam todos os doentes, desde bebés ou idosos, mas que se cuidem de todos com o maior cuidado, o que significa cuidados extremos com a higiene e o conforto. Ir para a Medicina Intensiva não foi menos impactante, falar com doentes cuja comunicação passava só pelo olhar, foi nova aprendizagem que teve. O que dizer sem ferir sentimentos? Que tipo de informação se pode dar e que temas se podem referir para que a comunicação seja estimulante? Foram algumas das suas inquietações.
Tem especial paixão pela Medicina Interna e Intensiva. Ir para casa e ficar a ver o mundo a acontecer, sem a sua intervenção era impotência forte demais que lhe buzinava aos ouvidos que não estava a ajudar ninguém. Conhece Nuno Gaibino desde os tempos em que este foi seu assistente de Anatomia na FMUL e foi com ele que começou a envolver-se no Serviço de Urgência. Desde o 1º ano do MIM que gosta do contacto com a clínica, foi sempre pondo em prática esse gosto, acompanhando Nuno Gaibino nas Urgências e interagindo de perto com muitos daqueles que iam sendo também seus Professores. Curioso como me conta que alguns desses seus Professores acabariam, também eles, por fazer formação em Medicina Intensiva, inspirados por um momento tão duro como a pandemia, sabiam que tinham de agir e estar aptos para ajudar ainda mais novos doentes. De adrenalina à flor da pele, Mariana é de ações rápidas, já que na Urgência entram os mais variados cenários de descompensação e que revertem mediante as eficazes ações médicas. O sentido de ajuda é algo que acompanha a Mariana desde que exerce livremente as suas vontades, é por isso que em vez de passar férias a descansar, prefere fazer voluntariado com quem mais precisa de cuidados.
Com a Mariana fica-nos claro que um médico também precisa da colaboração do doente para que se vejam progressos, e essa relação torna-se num laço inquebrável.
Admite que provavelmente vive num mundo utópico, porque acha que os doentes merecem ser cuidados e "mimados", entende que se deve dar tudo pelos doentes. Em breve quando a Mariana for médica, saberemos que lutará por cada doente até ao fim. Então, só podemos desejar ter mais pessoas assim como a Mariana.
"Os hospitais a descambar e eu em casa, foi horrível ver este cenário e era só nisto que eu pensava. Inscrevi-me como voluntária para a Medicina Intensiva mal pude. Entrei numa Unidade em que os doentes estavam há mais de 60 dias ligados à ECMO. O meu contacto foi diferente, porque estes doentes já faziam parte da "família médica", o que significa que quando estas pessoas descompensam, a equipa clínica também, porque já estão todos ligados uns aos outros. As equipas médicas sofrem por estas pessoas. O maior ensinamento que a Medicina Intensiva me deu foi que o que domina um médico e a equipa, é a paciência, ou seja, hoje podemos não ter um resultado, nem amanhã, nem muitos dias seguidos, e só daqui a um mês o resultado aparece. E é preciso calma e paciência para acreditar no doente e ir apenas controlando a situação, sem ditar sentenças. Oposto ao que aprendi na Urgência. Aqui nos Intensivos exercitamos, de facto, muito a paciência. O caso com o qual lidei de perto foi com uma senhora em ECMO e sem possibilidade de falar. As indicações que recebi foi para ficar com ela e comunicar, para lhe fazer companhia. Tive três horas a conversar com a senhora e é diferente daquilo a que estamos habituados, porque o feedback dela é movendo os olhos, também através do silêncio. Os doentes estão entubados e no caso desta senhora que vi, terá possivelmente de passar por um transplante pulmonar, porque já não tem a função respiratória. Neste caso só se pode ir trabalhando a parte dos músculos, através da fisioterapia respiratória. Este trabalho é de muita paciência e crença no doente. Com esta senhora estive duas horas a falar e não obtinha qualquer reação, ou resposta. Duas horas e meia depois, ela começou a reagir e a responder, mexendo os olhos. Agora percebo a razão de nos terem chamado numa altura tão crítica, porque os médicos não tinham tempo para tudo e é muito importante criar interação com o doente, os estímulos podem ajudar muito na evolução do quadro clínico”.
Nota final - a toda esta equipa obrigada pela incrível generosidade e pela forma disponível como nos acolheram, mesmo para aqueles que não referimos diretamente neste artigo, mas que queremos enaltecer.
Joana Sousa
Equipa Editorial
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