A Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa homenageou mais uma vez um dos seus emblemáticos Professores, através de uma iniciativa conjunta entre Diogo Telles Correia, Professor de Psiquiatria e atual Diretor da Clínica Universitária de Psiquiatria, e a AEFML.
Esta iniciativa conjunta aconteceu com o intuito de revelar no passado dia 26 de maio, a placa comemorativa de homenagem ao Professor que se encontra agora entre os seus Mestres, no Auditório Barahona Fernandes, no piso 1.
Professor jubilado de Psiquiatria, António Barbosa foi colocado no mesmo patamar de todos os grandes Mestres da Escola. Fausto J. Pinto, o Diretor da FMUL, não lhe poupou elogios: “Esta homenagem é importante, porque há sempre uma sensação de falta de gratidão das Instituições às pessoas, ao seu percurso e às contribuições que deram. (…) Assim estamos a simbolizar a gratidão, mas também a relembrar às gerações futuras que estes são os Mestres de todos”. A resposta de António Barbosa ao Diretor viria mais tarde, mesmo já no final da Cerimónia, mas não com menos impacto: “Esta clínica deve muito à sua sabedoria e sentido de Estado. Com este Diretor vale a pena ter sonhos. Muito obrigado!”.
António Barbosa despediu-se dos seus grupos de trabalho no passado ano, em outubro, fazendo a sua jubilação. Foi Chefe de Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN) e Professor Catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, assim como Diretor da Clínica Universitária de Psiquiatria e Psicologia Médica. Cofundou o Centro de Bioética e os seus Núcleos de Cuidados Paliativos e de Luto (Académico de Estudos e Intervenção sobre Luto) e o Núcleo de Ensino e Investigação de Competências de Comunicação e Relação, bem como as Associações Portuguesas de Psiquiatria, de Psiquiatria de Ligação, de Epidemiologia Psiquiátrica, as Sociedades Portuguesas de Psico-oncologia, de Estudo e Intervenção em Luto e de Comunicação Clínica em Cuidados de Saúde, tendo assumido em todas cargos de direção. Foi igualmente fundador da Secção de Psicossomática e Psiquiatra de Ligação da Associação Europeia de Psiquiatria de que foi Vice-presidente e Presidente do International College on Psychosomatic Medicine tendo organizado o respetivo Congresso Mundial em Lisboa com o patrocínio da FMUL.
Desde que entrou para a Faculdade como estudante de Medicina, e como monitor de biologia médica em 1972 até aos dias de hoje, passaram precisamente 50 anos, os mesmos anos redondos que o colocaram nas paredes desta sua casa.
“Que respeitosa honra em que me vejo, numa placa, ao lado dos meus Mestres. (…) Estas paredes conhecem-me bem. Fui aluno do Professor Barahona Fernandes, e de António Damásio. Este é um espaço que me diz muito, é um lugar plural. (…) Fui observador estupefacto da condição humana. Não há nada mais instável que o conhecimento. Foi aqui que aprendi isso, bem como a humildade que muito foi adquirida aqui. (…) Não cabemos numa só pessoa, somos tanta gente. Todos somos, afinal, invenções psíquicas. Acumulei memórias de espanto (…) os nomes mais altos da Psiquiatria mundial passaram por aqui, estou a dizer a verdade! Foi nesse contexto que partilhei vida e experiências e generosidades únicas com os estudantes. Estive sempre com eles e eles comigo. (...) Não fui perfeito, mas fui inteiro e com empenho. (…) Se a saúde me permitir, continuarei a deslumbrar-me com a capacidade de me espantar e energizado pela relação humana. Só somos com os outros. (…) Valeu a pena podermos transformar destinos. Vamos continuar a fazer a diferença, juntos!”.
Entrevista a António Barbosa no contexto da homenagem na Clínica Universitária
- Reflexões e aprendizagens
Foi com entusiasmo que entrei em contacto com o Professor António Barbosa. Fui, há mais de 10 anos atrás, e sou aluna na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa e sempre o vi como um professor interessado em espalhar conhecimento e também criativo e pronto a ouvir o que os seus estudantes tinham para dizer. Ao longo da nossa troca de emails apercebi-me da excelente memória e interesse que tem pelos seus alunos, pois ainda se lembrava de um trabalho, em que eu e o meu grupo criamos uma paródia a partir de um caso de um paciente de Freud e da profunda generosidade que tem em dar de si aos outros, como fez em todos os momentos do seu percurso profissional e como docente académico.
Assim, nesta troca, sinto-me novamente numa sala de aula a beber da sua sabedoria, e espero que as suas respostas, tão enriquecedoras e tão profundas sejam para vocês tão importantes como foram para mim.
Qual é a importância que tem para si, ter o seu nome junto dos seus mestres?
António Barbosa: É com respeitosa honra emocionada e com um enorme sentimento de gratidão que me revejo ao lado de Professores que foram também, todos eles, meus Mestres e a placas douradas onde estão nomeados certamente representam simbolicamente o brilho que cada um acrescentou generosamente à Clínica Universitária de Psicologia Médica e de Psiquiatria, à Faculdade, ao Hospital, à Universidade e ao País, e foi muita, imensa a sua partilha e eu fui um dos muitos que dela beneficiaram.
As paredes dessa sala, de onde nos espreitam essas placas comemorativas dos mestres, conhecem-me bem, porque foi nessa sala que carpintei a minha formação, onde se passou quase tudo o que teve importância para a minha formação profissional e para o que depois vim a ser e a fazer.
Sempre foi um espaço plural, laboratório de ideias, projetos, iniciativas formativas, quase sempre multidisciplinares, onde frequentei muitas formas de observar e de dizer a realidade humana (inéditas possibilidades de dizer do que somos feitos) e aprendi a ver de todos os pontos de vista com colegas de várias formações (possibilidade quase única no país) porque a Clínica desde a sua constituição com o Prof. Barahona Fernandes, sempre teve essa orientação de abertura às várias orientações científicas, à cultura, às artes, e sempre uma retina social.
Foi nela e com todos eles, como observador estupefato da disfunção humana perante perplexidades e paradoxos que iluminam e devolvem reflexos de nós mesmos, que agucei a curiosidade no máximo de saber possível, perante a subtileza do humano, mas também reforcei a desencantada e ao mesmo tempo estimulante constatação de que felizmente não há nada mais instável que o conhecimento.
Foi aí que reacendi tantas e tantas vezes a paixão de compreender e, por isso, também a constatação de que não cabemos numa só pessoa, somos feitos de tanta gente, situações, acontecimentos, e em que a verdadeira aventura é o encontro com os outros, num exercício de permanente aprendizagem mútua, interagindo, e de que, se calhar, todos somos invenções recíprocas.
Nessa sala acumulei memórias de espanto e de consideração no contato com inúmeros profissionais e académicos que aí lecionaram e partilharam experiência clínica, de investigação e de vida. Os nomes mais altos da psiquiatria mundial, de várias orientações, académicos de referência de todas as faculdades da nossa Universidade e de outras, quer nos cursos de pós-graduação quer em ciclo de conferências, ultimamente as de outono e tantas outras.
Foi aqui que me afoitei há 40 anos tendo tido o privilégio de colaboração de quase todos os professores das Clínicas Universitárias, em cursos pioneiros sobre a relação médico doente utilizando técnicas de simulação de papéis, mas também foi nesse espaço que partilhei vida, saber e experiência com centenas de alunos. Alunos que foram a inspiração constante do meu fazer académico e dos quais conservo referências de qualidade humana e cívica, de curiosidade e generosidade únicas. Tenho verificado, com não disfarçado orgulho, que ao serem devidamente estimuladas essas qualidades, se tornam invariavelmente em devires luminosos. Estive sempre com eles, estiveram sempre comigo e foram, a seu modo, também meus mestres.
Quais foram as aprendizagens mais significativas que fez ao longo destes anos de percurso profissional e também de ensino?
António Barbosa: Entre tantos outros sublinharia três aspetos fundamentais:
- O ato médico, como prática relacional é também um ato cultural:
A medicina como saber implicado implica necessariamente a integração, na prática e formação dos profissionais, de conhecimentos, atitudes e valores que estão sempre presentes em qualquer ato médico. O saber médico reporta-se a um conjunto de conhecimento sistematizado ao longo dos anos, resultante de observação, análise e experimentação, no sentido cartesiano e científico, de estudo da organização complexa de sistemas orgânicos e suas disfunções, de que resulta o conhecimento de sintomas, síndromes e nosologias, a partir dos quais se prescrevem meios terapêuticos diversificados ou atitudes e comportamentos preventivos ou reabilitativos.
Este saber é, no entanto, aplicado a seres humanos que, para além da complexidade organísmica, detêm, carateristicamente, uma dimensão histórica e narrativa construída na relação com outros ao longo de um tempo e de lugares, em constante simbolização, interpretação e valorização. Tomando como exemplo uma primeira consulta a um doente que se apresenta com cefaleias, o paciente, na descrição dos seus sinais e sintomas acrescenta (qualquer que seja o seu género, idade ou situação socioeconómica) não só dados de perceção sensorial, mas, ao mesmo tempo, uma interpretação pessoal da queixa, velada pela linguagem verbal e não verbal e pela atitude, em que está sempre implícito um modelo de causalidade para essa “dor de cabeça” (mau-olhado, irritação com o chefe, inquietação com a saúde da mãe, preocupação com o pagamento de dívidas, corrente de ar ou golpe de sol de inverno, refeição volumosa…) assim como, a expetativa de uma intervenção terapêutica reportada a vários sistemas técnicos ou leigos (analgésico, chá, massagem, relaxamento…). Ambas as representações causais ou terapêuticas do paciente sobre os seus sintomas ou sinais, são determinadas por vivências pessoais localizadas no espaço e no tempo (quer em ambiência familiar quer na exposição a serviços de saúde e/ou por exposição à “cultura de massas”), todas elas com mediação cultural. Se o médico não se apercebe desse sistema interpretativo subjacente à descrição do mau estar ou não o tenta explicitar respeitosamente, direta ou indiretamente, confrontando-o como seu próprio modelo de representação cultural “biomédico”, pode ver a sua prática diagnóstica e a adesão terapêutica do doente limitadas ou distorcidas, com consequências nefastas para ambos os intervenientes.
Sublinha-se, deste modo, o caráter indispensável e central da relação médico doente (RMD) no ato médico, porque só ela permite, mais do que qualquer algoritmo, a captação relacional duma “atmosfera singular” de cada paciente que oriente personalizadamente a colheita da história clínica, o estabelecimento do diagnóstico diferencial e a formulação e o envolvimento participado e confiante do doente na resolução do seu sofrimento. Foi perante sinais preocupantes de deterioração desta trave mestre do fazer médico como saber aplicado, que a Ordem dos Médicos em associação com a equivalente espanhola, apresentou a candidatura da RMD a Património Imaterial da Humanidade na UNESCO e para a qual foi editado um volume com múltiplos contributos em que me orgulhei de participar.
É esta possibilidade de sintonia cultural através de uma relação médico doente que pode fundamentar a co-construção paulatina de uma confiança profissional e humana, desiderato essencial para o cumprimento da finalidade da medicina como alívio do sofrimento humano.
- Todos os aspetos da nossa vida são mind-body, mas também embodided
Esta dimensão da nossa cognição humana reenvia para uma atenção particular às relações mente-corpo quer na investigação da sua natureza e funcionamento quer nas modalidades da nossa intervenção terapêutica. Na realidade continua a haver um imenso gap de conhecimento sobre o que se passa entre os processos psicológicos e fisiológicos, não há uma teoria que unifique a compreensão da sua interação, as epistemologias, ou seja os modos como chegamos ao conhecimento, são necessariamente diferentes.
No entanto, quando atendemos ao trabalho de um artista ou de um escritor é nos relatado que o seu processo de criação nasce quase sempre de insights, de intuições que não sabe de onde vêm e que serão certamente inconscientes. Exatamente como um cientista, um matemático, um físico como Newton que relata exatamente o mesmo processo no seu labor: aparecem simplesmente, não se sabe de onde, certamente do inconsciente.
Perante questões gerais como “O que é um ser humano?”, as várias epistemologias desenvolvem os seus métodos (histórico, científico, artístico…), e darão certamente respostas diferenciadas, porque estamos numa zona tipicamente de foco difuso e ambíguo: somos bios com as suas limitações, somos biografia com a sua narrativa (dum tempo e lugar geográfico, sociocultural, de vivências relacionais), somos tudo isso ao mesmo tempo. Se negligenciarmos algum destes aspetos ficamos paralisados num buraco.
É preciso, por isso, um diálogo interdisciplinar, não no sentido da confrontação narcísica de poderes nem na perspetiva de que todos devemos ser “enciclopédias”, mas na convicção de que alguém que trabalhe profundamente numa área disciplinar, beneficiará desse diálogo entre vários modelos para o seu próprio trabalho, porque ao faze-lo no tempo ficará seguramente mais apto para resolver problemas na sua área específica, se adotar múltiplas perspetivas de um problema.
Por outro lado, os tão reificados dados objetivos da ciência não existem verdadeiramente sem uma teoria, sem uma interpretação. Nos vários domínios, o não se atender a diversos modelos redundará necessariamente em experimentos de reduzido efeito translacional ou até de confrangedor reducionismo teórico conceptual e metodológico com resultados espúrios e enganadores para o conhecimento, por mais marketing promocional produzido, tantas vezes carente de prudência ética (na precipitação generalizante com que são alardeados resultados preliminares) e estiolando tantas vezes recursos financeiros limitados. Muitos das ineficácias de intervenção terapêutica podem decorrer também de perspetivas dogmáticas disciplinares e reificações que não atendem às verdadeiras necessidades integrativas e holísticas dos pacientes e ao caracter sistémico dos fenómenos.
O diálogo não hierárquico entre disciplinas criará certamente bases mais frutíferas para o avanço do conhecimento científico sobretudo em áreas em que se “marca o passo” há decénios. Trata-se de reconhecer a unidade no seio do diverso e que se processa através do contacto com temáticas transdisciplinares, ou conceitos organizadores ou esquemas cognitivos que atravessam ou permitem convocar vários contributos disciplinares. Esta perspetiva deve ser introduzida recorrentemente aos alunos desde o início da sua formação.
- A psicoterapia pode salvar, também pela neuroplasticidade.
Esta prova científica tornou-se particularmente fecunda na investigação e intervenção pluridisciplinares e abriu esperança realística a algum derrotismo dogmático tão paralisante como estigmatizador em relação a muitas situações clínicas não só de natureza predominantemente orgânica, mas também no trauma psicológico. A evidência científica de que o cérebro está constantemente a reconfigurar as suas redes adaptando-se às exigências do ambiente, às modulações emocionais e às capacidades do corpo e que por isso é possível alterar funções e estruturas, abre auto - estradas para intervenções personalizadas promissoras. A demonstração por exemplo de que o trauma psicológico infantil ou juvenil determina mutações biológicas que por sua vez podem ser revertidas por processos psicológicos específicos (cada vez mais sofisticados nomeadamente através de modalidades multifocais intensivas de psicoterapia, para além de apoios medicamentosas generalistas), abriu um espaço de investigação sobre a integração dos vários sistemas e reforça as potencialidades de um paradigma que para além de meramente reparar o que está lesionado (corporal ou estruturalmente), como no paradigma patogénico, promova todas as condições aos três níveis de integração (biótico, psíquico e socio-cultural) que possam estimular a salutogénese.
O domínio da reabilitação é, neste âmbito, uma referência de enorme pertinência, num contexto de aumento de sobrevida e da morbilidade crónica, ao preocupar-se sobre o modo como as pessoas com doenças crónicas poderão experimentar autonomia e qualidade de vida na saúde, apesar das limitações das suas doenças, se o meio “ecologicamente” lhes oferecer condições (contra-acções) que colocarão o processo de salutogénese, que estava bloqueado, a funcionar e assim compensar alguns defeitos funcionais.
Em que área específica sente que deu um contributo mais integral?
António Barbosa: Foram várias as áreas que desenvolvi, com excelentes grupos de trabalho, quase do grau zero: cuidados paliativos, bioética, humanidades na Medicina, psiquiatria de ligação, ensino da comunicação relação com métodos pedagógicos específicos, redefinição dos programas e métodos de ensino das disciplinas a cargo da Clínica Universitária, mas talvez eleja, neste ensejo, a área do estudo dos acontecimentos de vida (stress) e modalidades diferenciais de resposta e, sobretudo, o estudo e intervenção no processo de luto que aliás se lhes associa sequencialmente.
Esta área constitui-se numa linha de investigação de toda a vida, tentando compreender num primeiro tempo (70-80) como reagimos a acontecimentos de vida relevantes esperados ou inesperados, de intensidades várias e em áreas diversificadas da vida, através de trabalhos de campo comunitários de natureza epidemiológica, com entrevistas em profundidade em amostras populacionais representativas. Num segundo tempo (90) procurámos verificar a interferência dos acontecimentos com o desencadear e recorrer de perturbações tipificados de vários foros (digamos: físico, psiquiátrico e “psicossomático”). Num terceiro tempo (2000-2020) com enfoque específico no acontecimento “perda”, o mais relevante de todos os estudados nas décadas anteriores, aliás tema da minha lição de agregação “O luto em Medicina”, fundamentada na minha experiência na psiquiatria de ligação no nosso hospital desde 1982.
A realidade da nossa vida é uma sucessão de perdas, melhor ou pior integradas, e o médico dedica, consciente ou inconscientemente, uma parcela importante do seu tempo profissional a lidar com situações, direta ou indiretamente, relacionadas com o luto perante perdas significativas.
Apesar da sua prevalência na prática clínica em todos os contextos, foi assunto quase tabu, denegado, negado, que chegou a ser apelidado entre nós de não científico. No entanto, a evolução social, a atomização do individuo, a desintegração da família tradicional e esfarelamento comunitário, o crescimento exponencial da doença crónica com os avanços da medicina e a melhoria do nível de vida e das condições socio-sanitárias, num tempo social cada vez mais acelerado, que desconsidera ou nega o tempo dedicado ao processo de luto pessoal, familiar ou comunitário, fez, entre outros fatores, crescer a visibilidade da sua prevalência e das suas consequências, físicas, psicológicas, socioculturais e económicas nas sociedades atuais, que a crescente investigação veio a denunciar, conduzindo à recente inclusão do diagnóstico de luto complicado ou prolongado nas classificações mundiais.
No trabalho pioneiro que efetuámos com o nosso grupo na Faculdade e no Hospital, para além de investigação epidemiológica e clínica, desenvolvemos desde 2007, no seio do Núcleo de Estudos e Investigação do Luto da nossa Faculdade, investigação multidisciplinar (Antropologia, Sociologia, Filosofia, Religião, Psicologia e Biologia) também com várias publicações, e construímos um modelo teórico e clinico modular de intervenção especifica no luto e de uma modalidade de psicoterapia específica centrada no luto, que são referência nacional e internacional. Organizámos e presidimos ao Congresso Mundial de Luto na nossa Faculdade em 2017. Coordenámos também a Comissão que na DGS elaborou a Norma Nacional sobre intervenção do SNS sobre luto, após os fogos de 2017 na região Centro do País.
Estes desenvolvimentos foram acompanhados pela inclusão pioneira da temática do luto nos curricula pré e pós-graduados para o que, do ponto de vista pedagógico, concretizámos metodologia interativas específicas com utilização de vídeos, práticas de medicina narrativa e de simulação de papeis que obtiveram uma aceitação generalizada dos nossos estudantes que têm vindo a reconhecer a necessidade formativa nesta área, sobretudo para evitar atitudes relacionais iatrogénicas com pessoas enlutadas, tão frequentes ainda nos serviços de urgência, de internamento ou de consulta.
Fica-nos o sentimento de termos iniciado, com uma equipa entusiasta e com apoio internacional qualificado, uma área de investigação e de intervenção inovadora com múltiplos efeitos multiplicativos no ensino, na investigação clinica e epidemiológica e social criando condições para desenvolvimentos futuros relevantes, mantendo a nossa Faculdade como líder incontestável nesta “ciência-arte” do reaprender a viver com a dor da perda, da ausência e da incerteza, de como aprender a viver na sombra de um mistério perante a vida e a condição humana, que inclui o sofrimento , a finitude e a morte, de como fazer significativa uma vida inevitavelmente nova e um futuro não antecipado, e afinal, como aprender a amar em separação
Que problemas considera mais relevantes a desenvolver a curto prazo e porquê?
António Barbosa: Num tempo de alterações profundas nos padrões de morbilidade, de avanço galopante das tecnociências e da celebração no campo social de múltiplas alteridades, atingiram-se sucessos notáveis no campo da saúde, mas também vulnerabilidades acrescidas num mundo complexo e incerto para os profissionais de saúde.
As mudanças radicais que se estão a verificar nos sistemas de saúde, com a polarização crescente de setor público e privado - com perspetivas às vezes complementares, mas muitas vezes obedecendo a lógicas valorativas muito diferentes (consumidor/ utente) com translações de profissionais e recursos, nem sempre transparentes- introduzem uma fragmentação do tecido ético e deontológico profissional acentuada pela ainda não igualdade efetiva, de acesso e cobertura ao sistema de saúde. O acréscimo de despesa que esta desregulação acarreta desencadeia, em contexto de austeridade, pressões cegas para contenção de custos e os profissionais de saúde vêem-se, subitamente, duplamente agenciados como defensores, advogados incondicionais dos doentes e, ao mesmo tempo, braços - parceiros racionalizadores públicos e privados na micro alocação de recursos, através de lógicas e procedimentos que vão contra alguns dos seus valores de justiça social. Este conjunto de forças tem interferência crescente no processo de decisão ética que poderá, assim, ser enviesado, mas também no da satisfação profissional e humana dos profissionais, condição radical do seu empenho responsável.
Perante o risco de um sufocamento do seu ethos, agora sujeito a outros atractores (que importa conhecer crítica e reflexivamente), torna-se necessário, a nosso ver, hidratar, realimentar do interior, reconverter e ressituar, no espaço, no tempo e no modo esse ethos em processo de crescente complexificação no domínio do profissionalismo, que deverá, da forma como tenho vindo a pensar, assentar em duas dimensões fundamentais: Excelência (nas competências clínicas, éticas e relacionais) e Responsabilidade Compassiva, mas acrescidas por outras tantas como uma sólida identidade profissional e cívica, tal como apontam os recentes desenvolvimentos em educação médica: o médico como agente da transformação social.
E nesse sentido quais são as condições indispensáveis para a sua concretização atual?
António Barbosa: A prática médica, como prática cultural numa contemporaneidade (que no âmbito de ciências e práticas de saúde - crescente e orgulhosamente tecnologizadas), arauta, a curto prazo, o dissolver da centralidade da relação médico doente por via da informatização, digitalização e robotização galopantes.
Acresce o sibilino controlo burocrático dos agentes, das instituições e dos sistemas pela despudorada imposição de instrumentos de medição numérica transmutados em diapasões duma produtividade-finalidade, critério de sucesso de um ambicionado crescimento económico a todo o custo como obcecado garante dum progresso ilimitado, promotor da qualidade de vida e da saúde, como paradigma global das sociedades “democráticas” hodiernas.
Recusamos a ideia redutora de que a educação é sobretudo um instrumento de crescimento económico porque, como observamos este não gera, invariavelmente, melhor qualidade de vida e por isso o desprezo pelas humanidades põe em risco a qualidade da vida e a saúde da democracia. A própria fundação da cidadania assenta, a nosso ver, nas humanidades e nas artes, relevando-se na importância de se aprender a relacionarmo-nos corretamente com os outros e, em seguida, a como pensar de forma independente. Períodos de acentuada ansiedade relativamente à imigração e ao pluralismo religioso, são um tempo em que os cidadãos precisam de comunicar melhor, não pior, do que no passado, se se quiser encontrar soluções para os problemas urgentes.
Uma educação baseada sobretudo no lucro no mercado global amplifica estas deficiências, produzindo uma ganância ignorante e uma docilidade tecnicamente instruída que ameaça a própria democracia e que impede obviamente a criação de uma cultura mundial decente.
Com efeito, a mercantilização em escala planetária de todos os setores da vida social, desde a cultura à saúde, corrói algumas “âncoras” de confiança dos estados democráticos que, ao assentirem acelerar aquela dinâmica, descuram algumas bases estruturais em que se fundamentam: o pensamento crítico, a imaginação, a cordialidade no respeito pelo outro numa sociedade livre, politicamente ativa.
Acentuou-se, por isso, a imprescindibilidade do desenvolvimento das competências de empatia e de compaixão, em sociedades cada vez mais multiculturais no âmbito da crescente globalização, essenciais para compreender o significado dos sofrimentos, mas também, das conquistas dos outros, que consubstanciem condições de escuta respeitosa, de pensamento crítico rigoroso e de deliberação participada e não meras competências “úteis” e “meramente técnicas” adequadas à competitiva geração do lucro a curto prazo.
A profissão médica é neste contexto, como que um último reduto, um referencial simbólico e concreto de articulação harmoniosa entre ciência e arte, entre tecnologia e humanismo, e é ainda, a nosso ver, um dos garantes essenciais de uma referência de humanidade perante outros claudicares no mundo da finança, da justiça, da religião…
Neste contexto reforça-se a necessidade de, sob várias modalidades, se generalizar a todos os níveis de ensino e de forma integrada, essa vertente de empatia e compaixão e de que a nossa Faculdade é exemplar com o seu ensino transversal em todos os anos do pré e pós-graduado, mas que importa intensificar contrariando outros atractores com os quais também se deve, contudo, integrar. Há por isso que reforçar também nas Escolas Médicas, sob várias modalidades, a literatura e poesia, as artes visuais, dramáticas e performativas.
Particulariza-se, porque nela temos vindo a trabalhar desde alguns anos, o exemplo da literatura pela sua potencialidade de abrir para novas possibilidades ontológicas, por meio da componente de imaginação empática e de exploração, pausada, de outras vidas interiores. A trama narrativa (selecionada cuidadosamente, ou seja, não estamos aqui a falar de ficção ideológica, prenhe de slogans, estereotipados ou de respostas simplistas, dicotomicamente empobrecidas, a problemas complexos) proporciona efetivamente o desenvolvimento da capacidade de apreciar dimensões particulares da ambiguidade e dos ritmos da existência humana e de invenção do singular.
Quando se lê uma ficção e viajamos intensamente no tempo e na pele das personagens, em virtude da capacidade imaginativa única (essa arma poderosa de todo o ser humano que permite facilmente reconectar com o passado e projetar-se no futuro), somos possuídos pela experiência vivida do outro, o que efetivamente transporta a possibilidade de produzir mudanças perenes dentro de nós, desde que se esteja aberto a essa experiência, que é necessariamente diferente da experiência de contato direto com o sofrimento do doente, mas que nos “treina” para um alargamento de horizontes que nos liberte, por antecipação, para uma abertura sensível às várias dimensões do sofrimento e das necessidades do outro.
Acresce neste âmbito a capacidade que a literatura exibe de, através da renúncia a uma perspetiva única e a uma verdade absoluta, se abrir inteiramente ao outro. Referência outra à da aposta tradicional de timbre determinístico num saber absoluto, totalizante que tudo tende a apropriar, num saber único, dogmático, de verdades e de conceitos sistemáticos, de esquemas bem construídos na sua exatidão cristalizada que tudo enclausura, na “grande composição” que fecha. De modo diferente, exige-se uma alternativa de abertura ao terreno do incerto, do devir contextual, liberto às possibilidades da ocorrência, à “lucida sabedoria da incerteza”, valorizando uma razão aberta e avessa ao totalitarismo ou a unívocos dogmáticos que fenecem em paralisante corrosão, mas que cultive a consciência da historicidade, da contingência e a insuperável limitação de todos os sistemas axiológicos.
É falado muito neste momento do impacto que esta pandemia tem e terá na saúde mental. Mas gostava que nos falasse um pouco de quais as componentes ou fatores protetores que poderão ser desenvolvidos na formação do médico.
António Barbosa: Na realidade os médicos são cada vez mais expostos a uma violência estrutural e simbólica nas instituições, sobretudo em contextos hospitalares. As condições de sobrecarga de trabalho e indeterminações várias para o seu futuro profissional poderão facilitar, que eles próprios venham a ser alvo de uma pressão psicoafectiva, geralmente em situações de grande complexidade e/ou fragilidade clínica e existencial, para além da atual situação pandémica.
Torna-se, no entanto, em contexto pandémico, mais evidente a necessidade de integrar nos curricula médicos, tempos e espaços de contacto cognitivo e emocional com o sofrimento, a vulnerabilidade e a resiliência. A nossa Faculdade leva a cabo há mais de mais de vinte anos pela mão e empenho do Prof. Gomes Pedro e de uma equipa excecional em que tive o privilégio de participar e depois dar continuidade renovada. Com a disciplina de Introdução à Medicina no 1º ano, através da sensibilização ativa nas aulas teórico-práticas sobre essas temáticas, o burnout, como cuidar de si, técnicas de meditação e através das visitas institucionais (devidamente enquadradas) com entrevistas a vários agentes no terreno elaboração dos respetivos relatórios reflexivos partilhados em sessões plenárias, é dado um primeiro passo no sentido da construção individual de uma resiliência refletida (não omnipotente e negacionista da vulnerabilidade de todo o ser humano, nomeadamente do médico) para que o aluno vá reconhecendo sem preconceito as suas dificuldades e vá descobrindo meios singulares da sua superação. Esta primeira sensibilização formal será depois aprofundada nas disciplinas de psicologia, saúde mental e psiquiatria e em disciplinas optativas como Luto em Medicina, Humanidades Médicas, Antropologia Médica e tantas outras, utilizando métodos cognitivos, mas também experienciais, recorrendo às técnicas de medicina narrativa e a trabalho de simulação de papeis profissionalmente conduzidos.
Em todas esta iniciativas formativas, mas também preventivas e promotoras da resiliência, surge sempre a preocupação de acessibilizar múltiplas modalidades para compreender o ser humano
Acredita que esta pandemia pode ter efeitos benéficos no comportamento humano?
António Barbosa: A suspensão transitória de inúmeras rotinas quotidianas (laborais, familiares, culturais, de lazer e conviviais…) agudizaram a nossa consciência pessoal e cívica para os efeitos físicos, psicológicos e sociais no ser humano, nas comunidades e na sociedade em geral, do aceleramento galopante que nos é imposto na maioria das atividades.
Escancarou-se uma “crise silenciosa” na qual as nações “descartam competências” enquanto buscam sofregamente o lucro nacional. Ao mesmo tempo que a artes e as humanidades são limitadas por toda a parte, erodindo as qualidades essenciais da própria democracia, ou seja, a formação desde criança das competências de pensamento crítico contextualizado, necessário para uma ação independente e para uma resistência inteligente ao poder da tradição e da autoridade cegas, através de um modelo de desenvolvimento humano que permita um florescimento de uma cidadania de consciência global.
Nesse sentido abre-se uma janela de oportunidade, que poderá ser aproveitada ou não, para um reforço decisivo da importância das humanidades e da arte na formação de cidadãos responsáveis e vigilantes e na imprescindibilidade de um acentuar da empatia e compaixão em sociedades cada vez mais multiculturais no âmbito da crescente globalização. O desenvolvimento destas competências é essencial para compreender o significado dos sofrimentos, mas também, das conquistas dos outros, que consubstanciem condições de escuta respeitosa, de pensamento crítico rigoroso e de deliberação participada e não meras competências “úteis” e “meramente técnicas” adequadas à competitiva geração do lucro a curto prazo.
Agora uma pergunta mais pessoal: Como está a encarar este tempo após a jubilação?
António Barbosa: É espantoso que continuo a sentir-me criança com aquela curiosidade de aprender, descobrir algo de novo, e perscrutar o mistério do que é feita a curiosidade e penso continuar, se as condições o permitirem, longe do poder e das obrigações administrativas a saborear a vida, a fazer o meu inventário interior, a deixar rumorejar dentro de mim memórias de encantamento, resíduos, vestígios, uma arqueologia de experiências, de muitas leituras de ficção e não ficção, de filmes, viagens e audições…
Dei-me ainda conta, de uma crescente flexibilidade da mente, contrariamente ao que às vezes é afirmado, uma capacidade sintética integrativa que me permite fazer conexões mais subtis, que me dão um imenso prazer e que não tinha há trinta anos. Felizmente, também, me deslumbro com a capacidade de me espantar e de continuar a ser movido pela chama da curiosidade (porquê tão acentuada?) e energizado, claramente, pela relação humana.
Retenho, com esta distância, de quase um ano, o grato sentimento de que se pode mudar um pouco o mundo à nossa volta, sempre através de uma rede de afetos e colaboração em que o aspeto relacional é decisivo. Ninguém é uma ilha. Só somos, uns com os outros, e precisamos de amor, solidariedade e reconhecimento.
Sincera e humildemente, apercebo-me cada vez mais que posso não ter sido perfeito, algumas vezes podia ter sido mais gentil, talvez…, mas fico com o sentimento de ter sido aberto e inteiro e com a certeza de que dei tudo o que podia e sabia fazer, com empenho, coerência, persistência e determinação.
Tenho-me apercebido que, afinal, vale mesmo a pena transformar destinos!
Sónia Teixeira
Equipa Editorial