Encontro-o na Bioética, um espaço que se acomoda num recanto que nos convida a ficar e do qual é o Diretor. O dia ensolarado ajuda a querer perder o olhar nas centenas de livros que identificam claramente as suas áreas de eleição. Enquanto os espreito curiosa, penso que encontro alguém que se dedica intensamente, para além da Psiquiatria e a Bioética, à área dos Cuidados Paliativos, do Luto, ou da Dor/ Sofrimento. A grande maioria destes livros ofereceu-os à Faculdade da sua biblioteca pessoal, referência autobiográfica de uma curiosidade incurável. O Centro publicou também mais de uma vintena de volumes constituindo-se alguns deles já em manuais de referência.
António Barbosa é Chefe de Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN) e Professor Catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, assim como Diretor da Clínica Universitária de Psiquiatria e Psicologia Médica. Cofundou o Centro de Bioética e os seus Núcleos de Cuidados Paliativos e de Luto (Académico de Estudos e Intervenção sobre Luto) e o Núcleo de Ensino e Investigação de Competências de Comunicação e Relação, bem como as Associações Portuguesas de Psiquiatria, de Psiquiatria de Ligação, de Epidemiologia Psiquiátrica, as Sociedades Portuguesas de Psico-oncologia, de Estudo e Intervenção em Luto e de Comunicação Clínica em Cuidados de Saúde e em todas teve ou tem cargos de direção. Foi igualmente fundador da Secção de Psicossomática e Psiquiatra de Ligação da Associação Europeia de Psiquiatria de que foi Vice-presidente e Presidente do International College on Psychosomatic Medicine tendo organizado o respetivo Congresso Mundial em Lisboa com o patrocínio da FMUL.
Desde que entrou para a Faculdade como estudante de Medicina e como monitor de biologia médica em 1972 até aos dias de hoje, são 50 os anos redondos que lhe dão este sentido de pertença à casa.
Foi no 3º ano com a cadeira de Psicologia Médica do Professor Barahona Fernandes, e com o seu então assistente António Damásio, que consolidou as suas áreas preferenciais de que foram certamente contributo relevante as estimulantes reuniões da quinta-feira em casa de António e Hanna Damásio.
Mal terminou Medicina, partiu para um estágio no Hospital Psiquiátrico Universitário de Lausanne onde teve contacto com relevantes professores e investigadores a nível mundial e onde se habituou a trabalhar das 7h às 20h, nessa altura em condições de excelência clínica e assistencial.
Voltaria, pouco depois, a fazer novo estágio, desta vez em Londres no Napsbury Hospital, igualmente um hospital psiquiátrico de vanguarda que desenvolvia pioneiramente uma modalidade de intervenção domiciliária multidisciplinar, com o objetivo de evitar ao máximo internamentos desnecessários, intervindo eficazmente em casos agudos e de crise, acompanhando domiciliariamente doentes, familiares e vizinhos. Esta experiência revelou-se marcante para absorver a vivência do ambiente social e familiar na doença mental.
De regresso ao país concluiu pós-graduações em Saúde Pública e em Medicina do Trabalho que potencializou no serviço médico à periferia com um grupo de dez colegas em três concelhos alentejanos, um dos quais o mais pobre do país de então.
Lembra essa altura como fase muito marcante da sua vida pois conheceu um Portugal profundo, real e muito pobre em recursos de saúde, precisando urgentemente de apoio médico que não existia. Já tinha sido alertado para esta realidade aquando das cheias de 1967 quando participou como aluno do primeiro ano de medicina em campanhas de vacinação nessas áreas devastadas em que percebeu que perante as vicissitudes mais extremas as pessoas tinham uma enorme capacidade para resistir, o que foi reforçado depois na disciplina de medicina preventiva do terceiro ano num estágio de 15 dias acompanhando diariamente as enfermeiras de saúde pública em bairros degradados. Estas experiências abriram-lhe decisivamente a perspetiva de que a saúde não se faz só nos consultórios ou nos hospitais, que não é possível conceber a saúde/doença sem o ambiente que a determina o que implica parcerias e multidisciplinariedade e, por isso, ser indispensável introduzir vivencialmente estas dimensões no ensino médico.
Foi efetivamente possível criar no âmbito de uma reforma curricular, em que foram introduzidos pela primeira vez os conteúdos opcionais na Faculdade de medicina, uma disciplina no 2º ano de Antropologia Médica, que leciona há mais de 20 anos, acompanhando, em articulação estreita com as Administrações Regionais de Saúde locais, os seus alunos no Alentejo ou no Ribatejo, durante 2/3 dias, criando condições para que contactem proximamente, com os profissionais de saúde dessas unidades locais, nomeadamente em visitações domiciliárias, mas essencialmente com diferentes pessoas de uma aldeia (antigas parteiras, enfermeiras ou professoras, comerciantes …) com mediação dos presidentes das juntas de freguesia. Os alunos, organizados em grupos de quatro, recolhem relacionalmente histórias de vida e diferentes representações de saúde/doença e de prestação de cuidados de saúde locais e, após visita cultural organizada pela câmara e jantar com antigos médicos ou profissionais de saúde, elaboram um relatório que partilham em sessão final com os colegas, com a direção da unidade de saúde e com o presidente da câmara locais, apercebendo-se assim dos principais problemas de saúde e modalidades de superação por via de diferentes e criativas modalidades de parcerias locais ou regionais.
Procura-se a partir deste laboratório comunitário integrar que o ato médico é sempre um ato cultural e ético, como as duas licenciaturas em Antropologia e Sociologia do Professor António Barbosa já o haviam alertado.
Na sua vida seguiram-se projetos na Saúde Escolar dentro da Direção-Geral da Saúde, chegou a trabalhar em bairros de lata onde nem a GNR entrava; esta foi a fase na sua vida em que contactou com o movimento da escola moderna e com grandes educadores e veio a desenvolver intervenções para adolescência em todo o país, já que anteriormente se reportavam unicamente ao ensino básico.
Posteriormente também a Medicina do Trabalho viria a desafiá-lo, em período de grande transformação da realidade laboral industrial, a resolver profundos conflitos entre a gestão pessoal fabril e a tomar resoluções urgentes sobre saúde e sobrevivência humana.
Viajante incorrigível entre geografias, saberes e práticas, viajemos no tempo e voltemos à experiência de Londres, desta vez no Bedford College na equipa do Prof. George Brown que viria a ser o seu mentor e abrir-lhe as portas a um relevante e pioneiro estudo comunitário em Portugal na área da epidemiologia psiquiátrica sobre acontecimentos de vida e depressão consubstanciado no modelo de stress daquele investigador. Entrevistou no domicílio uma amostra representativa das mulheres de uma freguesia de Lisboa (400 mulheres entre os 18 e 65 anos). Confessa "que foi das experiências mais ricas que teve na vida", porque passou, com cada uma, cerca de duas horas em média. O foco era estudar os efeitos dos acontecimentos de vida na saúde mental e particularmente na depressão. Percebeu que o contexto de cada um influi muito na depressão e que o grande fator protetor era a existência de uma relação de intimidade mais que outros fatores de suporte social o que determinou transformações inovadoras no plano de apoio a esta população pelas instituições públicas de solidariedade social daquela freguesia.
Com todos os processos que já viveu, pode afirmar que com o passar do tempo os perfis de depressão também se foram alterando?
António Barbosa: Não tenha dúvidas. As depressões “reativas” foram mudando com os tempos. Na altura em que comecei a trabalhar, grande parte dessas depressões eram marcadas pela culpa, havia um "eu reprimido" de pensamentos sexuais, agressivos ou emoções mal resolvidas em relação aos pais, aos filhos, ou aos companheiros. Essa pressão da culpa tem-se dissolvido. O que irrompe desde há uns 20 anos para cá são depressões acentuadamente narcísicas, ou seja, de quem não atinge os objetivos que se propôs ou que lhe foram impostos (às vezes encapotadamente) e tem uma quebra.
Isso quer dizer que é a perda da resiliência que está na base destas depressões?
António Barbosa: Com a aceleração exponencial dos processos sociais e tecnológicos dificulta-se a capacidade de integração no tempo, de deliberação ponderada, de atuação prudencial e de razoabilidade comportamental e em muitos casos fragiliza-se o ser humano quer na vertente da fadiga e do enfado quer na vertente da arrogância imediatista cega e dissociada. Para além dos factores biológicos, há valores com relevância cultural diferente: a atitude sobre a sexualidade mudou, a liberdade também, mas são os objetivos de sucesso a todo o custo que se tornaram imperativos e os fatores de alienação cada vez mais subtis. Na verdade é sempre a falta de algo imposto pelo próprio, ou pelos outros, que não foi atingido e que determina o ficar deprimido. O que é preocupante é que a própria sociedade impõe este peso às pessoas, porque se elas não atingem mesmo determinados objetivos, elas perdem empregos e formas decentes de viver. Um exemplo paradigmático verificou-se há duas décadas com uma nova geração de bancários que viu os seus horários de trabalho prolongados muito para além da saída habitual às 16h com a ilusão de algum reconhecimento. Ao não verificar-se ao fim de um dezena de anos desencadeou paulatinamente uma pesada onda de desencanto e muitas perturbações psicossomáticas numa população inicialmente resilientíssima…
Numa outra dimensão, o mesmo se está a verificar atualmente com a digitalização tirânica e metrificação da sociedade, do ensino e da prática médica. Para além de algumas vantagens funcionais e de facilitação da gestionária, esta prática imposta vai fechando (incompetentemente) a nossa abrangência como seres humanos e cerceando a nossa liberdade (criativa e transformadora) com modalidades de condicionamento, em apuramento constante e cada vez mais intrusivas, na possibilidade de um controlo humano personalizado dos processos fora de quantificações e resultados/lucro. A insatisfação profissional nos serviços de saúde passa também, por esta variável que reduz, se não estivermos despertos, a nossa satisfação profissional e a nossa atenção relacional com o doente que é a mais saudável fonte energética da vida profissional.
A vida boa não se constrói só com as coisas que possuímos nem com as coisas que fazemos mas sim com a maneira como nos relacionamos com o que nos acontece e fazemos. Como vê, mais uma vez a importância dos acontecimentos de vida, que na realidade não valem por si mas no seu aspeto relacional que inunda toda a vida.
Depois de ter investigado nos últimos vinte anos, com foco na área de psicossomática, sistematicamente o papel do stress na doença física e mental em colaboração com praticamente todos os departamentos do nosso hospital plasmado em mais de 150 publicações científicas com fator de impacto, interessou-se especificamente pelo impacto físico e mental de um dos acontecimentos de vida: a perda e luto, tão frequente na prática médica, apesar de um certo evitamento de o encarar de frente. Quando propus esse tema para a minha lição de agregação há vinte anos alguém me disse que não era um assunto científico… qualquer coisa que nos acontece todos os dias…. E não havia qualquer preparação teórica ou prática sobre esse tema quando entretanto se assistia a um crescendo galopante de mortes hospitalares que se transferiam das famílias.
Desenvolvemos por isso uma valência de apoio ao luto primeiro na equipa intra-hospitalar de suporte em cuidados paliativos e mais tarde a consulta de luto no serviço de psiquiatria. Elaborámos com toda a equipa um modelo próprio de intervenção no luto prolongado que tem sido divulgado em inúmeras pós-graduações realizadas na faculdade mas também com a introdução do tema no ensino pré-graduado no currículo obrigatório e optativo com excelente adesão dos alunos. O nosso grupo de investigação tem também produzido evidência científica relevante e pioneira no nosso país e no contexto do congresso mundial do luto que organizámos na nossa faculdade fomos convidados pela tutela da saúde para presidir a uma Comissão (Comissão de Acompanhamento da Implementação do Modelo de Intervenção Diferenciada no Luto Prolongado) que elaborou uma norma, em 2019, sobre Modelo de Intervenção Diferenciada no Luto Prolongado em Adultos, já em vigência, com recomendações para todo o Serviço Nacional de Saúde e com a criação de centros de apoio especializado ao luto prolongado sendo um dos polos nacionais a consulta de luto do nosso hospital.
Trata-se, como sempre, de percebermos como somos afetados pelo mundo, pelos acontecimentos (stress), como a eles respondemos e sobretudo como somos transformados por essa experiência e como podemos ajudar com eficácia.
É pelo acumular desses acontecimentos em ambiente institucional que surge o designado burnout de que agora tanto se fala, quer nos profissionais, quer nos estudantes. O Professor é o Coordenador e Regente, para além de outras disciplinas, do Módulo III.I – Medicina Clínica: “O Médico, a Pessoa e o Doente”, da Área disciplinar de Introdução à Medicina. Esses aspectos são abordados na nossa Faculdade?
António Barbosa: Na realidade em virtude da confluência de vários determinantes tem-se verificado, em Portugal bem como noutros países, um aumento de burnout nos profissionais de saúde e do ensino para níveis que são alarmantes. Estes temas têm sido introduzidos nos conteúdos obrigatórios logo no primeiro ano da disciplina de introdução à medicina e com sensibilização prática para modalidades mindfullness, depois aprofundadas em optativas nomeadamente meditação e medicina e humanidades médicas. No terceiro ano na disciplina de saúde mental dá-se relevo teórico e prático a este tipo de sofrimento com treino de estratégias preventivas. Temos acompanhado também inúmeros trabalhos de investigação por alunos da nossa faculdade sobre essa temática, alguns já em vias de publicação. É também preocupação da reforma do ensino clínico em curso disponibilizar mais tempo livre para o aluno (para a sua vida pessoal e participação noutras atividades complementares) com racionalização dos tempos de para os exames e nova integração disciplinar e com ênfase no reconhecimento do trabalho proativo dos alunos em várias dimensões. Mas também na criação de novas disciplinas designadas Foundation Skills que acrescentarão recurso práticos para a melhor integração em futuras modalidades de prestação de saúde e como agentes de transformação social. Como fundamentámos na publicação “Medicina centrada na ralação: Um contributo para a educação médica”, que elaborámos como apoio à citada reforma, torna-se quanto a nós indispensável reforçar a componente comunicacional/relacional da formação do jovem médico segurizando-o ao garantir capacidades bem integradas, vivenciadas e repetidamente treinadas nessas competências, para que não se constituam em mais um fator de sobrecarga na vida profissional, nomeadamente na área da comunicação de más notícias, de relação com doentes com emoções extremadas ou em fases de transição dramáticas, particularmente em situações de urgência. São já alvo de treino específico na disciplina de psiquiatria do 4º ano mas serão reforçadas futuramente no 5º ano.
Num documento que escreveu sobre o seu trajeto profissional a dada altura faz uma breve explanação das suas grandes preocupações, ou focos de ação e diz "do meu agir habitando o tempo". Passou o tempo a agir para mudar as coisas?
António Barbosa: Nós vamos sendo... num eterno tornar-se. Não tive um trajeto pré-determinado, foram as circunstâncias da vida que vieram ter comigo, me espantaram, revoltaram, me transformaram no meu cometimento e me fizeram agir sempre em colaboração com tantos outros significativos. Veja, por exemplo, no serviço de psiquiatria em 1982 integrava uma equipa, fazia urgências, dava consultas gerais e às terças-feiras fazia a designada consulta para os doentes internados no hospital (que muitas vezes nos apareciam com soro, debilitados, resfriados na sala de espera comum) mas que precisavam de apoio psiquiátrico. Achei a situação tão desagradável que sugerimos porque não irmos nós médicos psiquiatras às enfermarias o que foi prontamente aceite. Fizemos um levantamento das necessidades perguntando a uma amostra representativa de médicos e enfermeiros do nosso hospital “sentem necessidade do nosso apoio?” e espantosamente a maioria dos profissionais não sentia necessidade de apoio. Mesmo assim começámos (dois psiquiatras) a deslocarmo-nos a todos os serviços do Hospital (atividade que mantenho até hoje agora com funções de coordenação de um equipa fixa de psiquiatras e psicólogos). É quando saí do conforto do meu gabinete e começo a circular por todo o Hospital (Santa Maria) que percebi com espanto antropológico que se morria mal, que não se atendia devidamente a dor, até nas crianças! Esta perceção dolorosa levou-nos a procurar outras referências no estrangeiro e foi assim que estagiei no Massachusetts Hospital de Boston no departamento de psiquiatria de ligação e depois de psico-oncologia, em Manchester, em Madrid… Estabelecemos articulações com esses departamentos e criámos a sociedade portuguesa de psiquiatria de ligação e depois fomos fundadores da sociedade europeia de psiquiatria de ligação. Conseguiu-se legislar pela obrigatoriedade de constituição de equipas de psiquiatria de ligação em todos os hospitais e a obrigatoriedade, na formação dos internos de psiquiatria, de realização um estágio de psiquiatria de ligação. Criámos no nosso hospital o Núcleo de apoio psicossocial ao doente oncológico, coorganizamos uma consulta multidisciplinar de dor da mesma forma que anos antes tínhamos participado na criação da consulta multidisciplinar de cefaleias. Trabalhámos de seguida no problema da morte no hospital e dos cuidados em fim de vida. Depois de uma pós-graduação em cuidados paliativos em Boston na Universidade de Harvard, começámos a dedicar-nos a esta área de cuidados com a criação, em 2002, do primeiro Mestrado em Cuidados Paliativos do país, que vai na 17ª edição - já com cerca de centena e meia de dissertações discutidas - e que tem vindo a formar os principais líderes e investigadores desta área de cuidados em Portugal
É por isto que nasce também a Bioética na sua vida?
António Barbosa: Precisamente, no deambular diário pelas enfermarias deste hospital em contacto com profissionais de saúde, doentes e seus familiares apercebi-me que havia excesso de “sofrimento moral” que não era consciencializado, ou seja, os profissionais debatiam-se diariamente com problemas éticos e não tinha consciência da sua natureza e, por isso, ou não os partilhavam ou os consideravam de outra natureza e não os discutiam tudo isso provocava sobrecarga! Procurei no Mestrado Europeu de Bioética os fundamentos para ajudar em deliberações éticas na saúde que se vieram a implementar através da criação do Centro de Bioética e do respetivo curso de mestrado e tantas outras pós-graduações onde se procurou sempre envolver toda a faculdade. O móbil era desenvolver, dentro do conceito que propusemos de ética relacional, um método de deliberação em decisões sobre problemas éticos na saúde facilmente utilizável na prática clínica e de investigação. Partimos da constatação que as nossas decisões e escolhas são ou deviam ser fruto de uma deliberação cujo principal objetivo é tomar decisões prudentes dando razões explícitas para a resolução do conflito de valores, em que nenhum deles deve ser desprezado. Depois de reconhecidos e aprofundados devem-se tentar encontrar cursos intermédios de ação que se considerem razoáveis e ótimos para aquela situação concreta. O Centro para além da consultadoria tem desenvolvido parcerias de cooperação científica, pedagógica e cultural com centros da Faculdades de Ciências, Direito, Farmácia, Letras, Psicologia e Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, com os quais tem desenvolvido projetos financiados pela FCT: Narrativa & Medicina e atualmente SHARE-Saúde e Humanidades Actuando em Rede (Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa) e EXCEL - Em Busca da Excelência. Biotecnologias, Enhancement e Capital Corpóreo em Portugal (com o Instituto de Ciências Sociais. Organizou também diversos encontros científicos nacionais e internacionais dentro dos quais: Conferência Anual da European Association of Centres of Medical Ethics (2003), o VII Encontro Luso-Brasileiro de Bioética “Bioética e Responsabilidade Social em Saúde” (2012) e a 32nd European Conference on Philosophy of Medicine and Health Care, Lisbon (2018).
Mas quem é o homem que entra no raciocínio menos lógico dos outros e os tenta ajudar?
Ler a cabeça de alguém deve ser das tarefas mais desafiadoras. Não há feridas ou massas a retirar, mas muito a interpretar.
António Barbosa reitera que para um profissional de saúde neste domínio ajudar o outro tem de conhecer-se a si próprio e saber identificar os paradoxos que nos tornam humanos em que se incluem naturalmente muitas das nossas sombras, muitas delas tão silenciosas e raramente partilháveis. Teve o privilégio de ter realizado uma psicanálise pessoal como ferramenta muito importante para o autoconhecimento e consequente ajuda do outro. Preocupa-o quem não entende a importância desta modalidade de autoconhecimento ou de outras com o mesmo propósito e a olha com estranheza, ainda com mais razão para quem trabalha em instituições de saúde em que a violência estrutural (longitudinal e vertical) e pessoal é constante para as profissões que trabalham diariamente com o sofrimento. É no confronto com o sofrimento do outro que o médico terá de regular a ansiedade que agita, a inquietude que perturba, o medo que paralisa, para que possa estar mais próximo do doente e ajudá-lo integralmente
Afável sem ser expansivo, é só aparentemente distraído, precisa de observar primeiro quem tem diante dele. Se confiar, dá espaço para se expor. Enquanto fala e retrata as vivências, o seu percurso e convicções várias, o olhar azul viaja pela sala. Postura habitual de quem se habituou à escuta flutuante da análise ou reserva, pergunto-me. Professor acarinhado pelos alunos, gosta de lhes mostrar o seu interesse genuíno pela relação humana e profissional através do que designa uma medicina centrada na relação que procura integrar os fatos biomédicos rigorosamente colhidos com uma auscultação sensível e delicada da vivência do doente que os sofre ou antecipa. Uma medicina que informada pela evidência da prova esteja simultaneamente atenta incondicionalmente à narrativa do doente e da família. Uma medicina centrada num encontro de parceria e mutualidade eticamente deliberado e ancorada numa responsabilidade compassiva co-construída.
Foi sinuoso e longo percurso iniciado nos anos 80 para que estas competências relacionais fossem ensinadas por métodos ativos e integrados com docentes treinados ao longo de todos os anos da licenciatura o que veio acontecer pela primeira vez no ano letivo passado com a criação do Núcleo de Ensino e Investigação de Competências de Comunicação e Relação.
António Barbosa: A principal queixa dos doentes na nossa Ordem passa por problemas de comunicação e é por isso urgente (como outros países o estão a fazer) manter a formação destas competências ao longo do curso. É um trabalho de Sísifo… mas ainda mais indispensável para a prática futura da medicina, mas que deve passar não por um mero ensino de técnicas. Este deve ser sempre enquadrado, por docentes bem preparados por formação específica, pelo estabelecimento de uma relação em contexto de sofrimento em que a suas dimensões totais devem ser sempre escrutinadas como um sexto sinal vital que será outra área a aprofundar no ensino.
O que acontece quando o sofrimento do doente o toca?
António Barbosa: Toca quando me causa a mim também sofrimento. O problema é estar “disponível” para acolher e “deixar-me” tocar pelo sofrimento do outro. Não é fácil para quem a toda a hora lida com ele e por isso sente necessidade de se “defender” dessa exposição quando é excessiva o que muitas vezes passa pela adoção de comportamentos insensíveis, distanciados e por vezes não gentis… Mas só tendo consciência do meu próprio sofrimento é que posso estar próximo da vulnerabilidade do outro. Note que o nosso trabalho interior serve precisamente para estarmos bem com o nosso próprio sofrimento. A verdadeira análise pessoal transporta-nos até às nossas dimensões mais recônditas, revisitando as gavetas mais excluídas, aquelas que mais tapamos. Quando por aí passamos e partilhamos intimamente com alguém o lado mais escondido, estamos igualmente a criar laços humanos que são as ancoragens que permitem que se vão dissolvendo ou arrancando certas "ervas daninhas" que sugam energia, desfazendo algumas sombras que nos paralisam e fluidificando sentimentos cristalizados que nos rigidificam. No envolvimento de uma relação empática vamos passando por todos os nossos quartos escuros e ao passar por eles perdemos-lhe o medo e ao aceitarmos os nossos próprios fantasmas tornamo-nos mais abertos a ouvir os outros. É nesta dinâmica que posso ficar genuinamente mais disponível para ser tocado pelo outro e por isso mais empático. Quanto mais passei pessoalmente por uma experiência mais ela me toca. Mas há outro aspeto, não é por não ter vivido uma experiência que não posso tentar colocar-me na pele do outro, não é porque nunca matei que não consigo tentar entender um momento de raiva de alguém que matou, possivelmente por um descontrolo emocional que não fez aquela pessoa pensar.
É muito interessante aquilo que me diz, porque se bem entendo o que quer transmitir é que é no confronto com a nossa própria vulnerabilidade que ela nos liberta.
António Barbosa: E as pessoas cada vez o fazem menos. Sabe que já me disseram que não era útil falar em sofrimento aos alunos logo no 1º ano? Mas a nossa profissão tem como propósito último aliviar o sofrimento e é isso que faremos toda a vida! Considero que se a pessoa não tem ideia destes temas e não os aprofunda vivencialmente como poderá depois lidar com os doentes? Se a pessoa não for tocada e se não souber receber o outro, como pode ter capacidade de perceber o doente e responder às suas singulares necessidades, para além dos aspetos biomédicos? Deixe-me dar outro exemplo da importância do contacto com a nossa própria vulnerabilidade e que é a do confronto com a morte de um doente. Em tempos ouvi da parte de um orientador a um aluno do último ano, algo como, "não vale a pena investires nesse doente porque ele está a morrer…". Não imagina como isso me tocou porque este aluno estava completamente traumatizado. Então alguém vai morrer e não se fala com a pessoa? Alguns dos grandes momentos que tive de vivência humana e que continuam a calar dentro de mim foi o falar com doentes no fim de vida, quando estão em condições de fala, em que emerge tantas vezes uma transparência sem igual! Como já não há nada a perder, podemos sempre ser nós, sem filtros. Algumas das pessoas que ouvi diziam-me, "olhe para mim, aqui ligado a vários tubos, por todos os lados, para quê isto tudo?". Aqui não está em causa a intervenção médica de urgência, o que esta pessoa me está a dizer subtil e humanamente é que quer morrer tranquilo. É um apelo também existencial e é isso que eu interpreto como pessoa, como médico e só posso tentar ajudar. Eu sei que não vou salvar a vida desta pessoa, mas naquele momento crucial esta pessoa pôde ressoar com alguém e sentir que alguém está presente e que ainda é alguém para alguém e pode partir como o que designo de orgulho existencial. Estas experiências são únicas e (se não nos retirarmos em evitamento defensivo) podemos ter a alegria única que o outro sente ao ser escutado, mesmo que vá partir. É uma alegria contagiosa que nos transforma, humaniza e energiza e reforçará certamente a nossa resiliência humana e profissional. Permite-nos habitar mais radiosamente a nossa profissão. É um mistério difícil de compreender porque quebra os esquemas da utilidade, do mero pragmatismo estandardizado ou do legítimo desejo de benefício…mas é a alma da medicina!
Existe nas nossas instituições de saúde um enorme potencial humano sedento de aliviar o fardo do sofrimento inelutável que impõe a condição humana. Foi essa a minha experiência de quase cinquenta anos de prática diária num hospital universitário em contato com doentes e famílias, profissionais e estudantes. Deem-se condições formativas e organizacionais e as “pessoas” agarram. A educação toca o futuro!
Resiliente, ou não fosse essa a palavra mais usada pelos seus alunos para o caracterizarem, António Barbosa insiste ano após ano em matérias que no início causam sempre estranheza, até negação. Chega a esperar anos para que os passos se afirmem, mas como sabe tratar por tu a sua própria vulnerabilidade e trabalha sempre em equipa, vai aguardando e tentando, com uma profunda convicção de que as coisas podem melhorar, até que elas acabam mesmo por acontecer…
Joana Sousa
Equipa Editorial
