Margarida Queirós é professora associada no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) e investigadora efetiva do Centro de Estudos Geográficos (CEG), onde desenvolve investigação sobre temas da igualdade de género, ambiente e ordenamento do território.
A eloquência com que defende aquilo em que acredita é proporcional ao tom assertivo da voz e à rebeldia dos cabelos. Sem rodeios, diz o que pensa. Ganha-nos o interesse não por ser revolucionária, mas por ser “straight to the point” e dizer o que muitas vezes ninguém tem coragem de apontar. Conquistou-nos em definitivo quando defendeu a urgência de obtermos todos uma maior consciência da desigualdade e equidade de género, associado às nossas cidades e sociedade, na conferência “I AM…ME”, iniciativa promovida pelo Gabinete de Apoio ao Estudante (GAE) e do Departamento de Saúde Pública e Sexual da AEFML.
Ao longo da discussão que liderou, muitas foram as frases que se transformaram em soundbites e ganharam eco na nossa consciência: “O medo foi naturalizado pela mulher”, “Os rótulos têm o poder de discriminar umas pessoas e o poder de privilegiar outras”, “As nossas cidades são patriarcais” – tudo isto culminou num desejo expresso de falar com esta mulher que não tem medo de tocar com o dedo na ferida e fazer-se sobressair pela capacidade de identificar as desigualdades e abrir “luta armada” contra elas.
Quando a intercetámos para uma entrevista, tememos uma resposta mais severa, pois com a morte recente da cidadã britânica, Sarah Everard, a marcar uma atualidade de violência e insegurança sobre a mulher nas ruas, receámos que visse este convite como uma tentativa “trendy”, da nossa parte, de acompanhar o assunto, mas as palavras que recebemos foram de total recetividade. E, por isso lhe agradecemos!
Em Portugal, quais são as desigualdades (de género) mais acentuadas, por si identificadas, na nossa sociedade?
MQ: Poderia referir as desigualdades de rendimentos, entre os 10% das pessoas mais ricas e os 10% das pessoas mais pobres no nosso país, mas não é com esse fim que me coloca a questão, mas sim no que respeita às desigualdades de género.
Se atendermos ao Índice de Igualdade de Género calculado pelo EIGE (Instituto Europeu para a Igualdade de Género) para o contexto da UE, em 2019, Portugal ocupava o 16º lugar (59,9 em 100 pontos, correspondendo 1 à desigualdade total e 100 à igualdade plena), sendo que o nosso país, em relação a 2005, aumentou 10 pontos, revelando que estamos a progredir no sentido da igualdade de género no contexto dos estados-membros.
Este é um índice que revela as tendências no domínio da igualdade de género (domínios centrais: trabalho, tempo, rendimento, política/poder, conhecimento, saúde) na Europa. Este índice é depois complementado com informação sobre experiências vividas de violência sobre as mulheres (prevalência, severidade), e de desigualdades entrecruzadas entre diferentes grupos de mulheres e de homens (idade, tipo de família, nível de instrução, in/capacidade, país de origem).
Todavia, as pontuações de Portugal são inferiores às da EU, em todos os domínios. As desigualdades de género são mais pronunciadas nos domínios do poder (46,7 pontos) e do uso do tempo (47,5 pontos). Uma boa notícia diz respeito ao domínio da saúde, onde Portugal atinge a sua pontuação mais elevada (84,5 pontos).
E como se combatem essas desigualdades?
MQ: Para mim, e sublinho que é o meu ponto de vista, as desigualdades combatem-se em diversas frentes, com diversos tipos de políticas públicas, mas a que mais me toca é a da educação, do conhecimento. Existem grandes desigualdades de género no acesso à educação, quer nas competências da aprendizagem, quer da continuidade no percurso escolar, na maioria das vezes às custas das meninas e jovens. Acesso à instrução, ao conhecimento e à participação, todas são fundamentais para as competências (capacitação, empoderamento) das mulheres, para que elas possam, de facto, ter oportunidades na vida e se transformarem.
A pobreza, abandono escolar, estatuto social, deficiência, casamento precoce e gravidez prematura, violência de género, atitudes e estereótipos sobre o papel das mulheres, isoladamente ou em combinação, estão entre os muitos obstáculos que as impedem de exercer plenamente seu direito de cidadania, de participar, completar e de se beneficiar da educação.
Acredito que a educação é um bem público e um direito fundamental; e enquanto tal, as políticas de educação devem ser sensíveis às desigualdades de género. Podemos lutar para ultrapassar as referidas desigualdades através de políticas públicas que assegurem uma educação equitativa e oportunidades de aprendizagem ao longo da vida.
Especialmente meninas, jovens e mulheres devem alcançar níveis relevantes de alfabetização, proficiência funcional e autonomia para a vida. No atual contexto, as tecnologias de informação e comunicação devem ser aproveitadas para fortalecer as suas competências, pois a digitalização não pode continuar a acontecer sem a participação das mulheres.
Na sua opinião, no que toca às políticas públicas de igualdade de género, considera que andamos a reboque dos compromissos internacionais, nomeadamente União Europeia e Nações Unidas? Não deveríamos planeá-las e implementá-las de forma mais autónoma?
MQ: Como referi no evento “I am…me”, em Portugal as políticas de igualdade de género são em grande parte estimuladas pelas orientações das instâncias internacionais (e.g., União Europeia; Conselho da Europa; CPLP; Nações Unidas). Não obstante a igualdade de género estar contemplada em documentos tão antigos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), a sua efetivação nas políticas nacionais é recente e decorre em grande parte da abertura da sociedade portuguesa após 1974.
Hoje a sua principal alavanca externa ainda é a UE, que: 1) desenvolve orientações que foram sendo transpostas para a legislação nacional, 2) promove o estabelecimento de redes transnacionais, e 3) financia projetos de igualdade salarial, igualdade e emprego e prevenção e combate à violência, etc. Portugal participa nestas construções.
Isto não significa que Portugal “anda a reboque” da UE ou mesmo que isso seja negativo. Acontece que, por um lado, vivemos na “era da globalização”, num mundo interdependente e integrado, a funcionar em rede com o resto do mundo (a sociedade da informação), onde se efetuam trocas intensas de conhecimento, pelo que estamos permeáveis às agendas globais e assinamos compromissos internacionais no domínio da igualdade. Por outro lado, Portugal encontra-se integrado no bloco regional da União Europeia, logo é desejável que tenhamos políticas comuns, que os países possam construir pontes e convergir na direção da igualdade enquanto direito humano a ser garantido pelas instituições que criamos para o efeito.
A globalização marca a vida interna do nosso país e podemos retirar daí benefícios. Diria que, no contexto de um mundo global e regional, havendo “contaminação” e bons exemplos de agendas políticas, de princípios e de objetivos, estes são estímulos muito positivos, e os benefícios são muito grandes para a promoção da igualdade de género e não os podemos desperdiçar.
Naturalmente que a partir de desígnios comuns e compromissos internacionais, traçamos o nosso caminho de uma forma autónoma (mas que está em conformidade com os problemas que partilhamos na UE e no mundo), pois as nossas políticas públicas internas para a igualdade têm vindo a intensificar-se, a aprofundar-se e a entrecruzar-se (veja-se desde os Planos Nacionais para a Igualdade à atual Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação, ENIND). E isto está a acontecer quer ao nível do país, quer à escala local e regional, com a “territorialização” das políticas públicas para a igualdade, como procurei mostrar no webinar. “I AM...ME”. As respostas estruturadas e concertadas no apoio à igualdade de género, aprofundam o trabalho em rede com entidades públicas e privadas, nacionais, regionais e locais, permite comprovar respostas flexíveis, rápidas e eficazes com e para os problemas dos territórios onde eles ocorrem. Estas redes regionais/locais enformam modelos de governança territorial de resposta integrada.
O que a moveu a dedicar-se ao estudo das desigualdades de género e a associa-las ao urbanismo?
MQ: Sou geógrafa de formação, logo o espaço e o lugar são as áreas onde me movo melhor. E o espaço e o lugar podem começar nos corpos (a apresentação do corpo, a gestualidade, a linguagem, as expressões faciais, por exemplo). Neles refletem-se relações de poder, desiguais e hierárquicas (e não meras dicotomias e relações simétricas e complementares, como tradicionalmente nos procuraram convencer). As relações de género são histórica e espacialmente contingentes. O significado de se ser homem ou mulher depende de um contexto, relacional e variável, se bem que submetido às leis e regulações, de cada tempo/época e espaço, que estabelecem o que é permitido e o que é um ato transgressor. E a ideia de conceptualizar o género como algo fluido, liberta o género dos imperativos do corpo. E são este tipo de desconstruções que as geógrafas feministas começaram a debater nos anos 80 do séc. passado. As questões geográficas, como o lugar e a posição da pessoa, sobretudo aquelas que têm sido marginalizadas e ignoradas, começaram a ser escutadas e interpretadas. Estas pessoas, sobretudo, mulheres diversas, vivem nas cidades, nas áreas urbanas e suburbanas, vidas quotidianas com mais ou menos oportunidades - para encontros e atividades diárias, onde contactam com outras pessoas, em espaços públicos ou nas áreas residenciais, experienciando a vida urbana.
De que forma é que o atual desenho das cidades condiciona a liberdade das pessoas, mais concretamente de algumas minorias (mulheres, homossexuais, pessoas com limitações cognitivas ou motoras)?
MQ: Como referi, as relações de género são constitutivas de espaços materiais e físicos, assim como de espaços simbólicos e discursivos. Por outras palavras, onde vamos, como lá chegamos e a nossa presença em certos lugares, tudo isto é influenciado e tem impacto na nossa identidade social. As dimensões (marcadores) da identidade social, tais como o género, estatuto social, sexualidade, idade, e raça estão enraizadas em relações de poder desiguais e historicamente construídas, e que privilegiam umas pessoas e marginalizam outras.
Estas identidades levantam importantes questões acerca de como a sexualidade, a raça, a classe e outros eixos de poder, são aspetos formativos de quem somos, no que acreditamos e valorizamos. Além do mais, certas identidades sociais garantem às pessoas posições de privilégio nos lugares que ocupam, por exemplo, no trabalho, na educação, em atividades políticas, ou nos locais que habitam e que frequentam. A vida urbana está repleta de desigualdades, sobretudo para as mulheres (e estas nem sequer são um grupo homogéneo), mas também o são para os homens que não encaixam no modelo hétero. Por exemplo, os homens homossexuais experienciam os bairros urbanos de uma forma diferente dos homens hétero, experiências baseadas na sua sexualidade e na predominância de espaços heteronormativos da cidade. Nestas situações, as normas sociais dominantes excluem aquelas pessoas que não se identificam como heterossexuais. Em contraste, certos espaços urbanos são descritos e representados enquanto espaços gay, tal como o Bairro Castro em S. Francisco (EUA). Estes bairros são inclusivos e disponibilizam espaços de atividade comercial, cultural e residencial para a comunidade LGBT.
As áreas residenciais e os espaços domésticos são também tradicionalmente baseados no equilíbrio binário homem-mulher, das relações de género. As normas patriarcais ou convenções associadas à casa, rotulam os espaços domésticos como feminizados. Em resultado, as relações de género contribuíram para a construção social da casa como “o lugar da mulher”. As críticas a esta classificação, interpretam a casa como o lugar da restrição e da repressão, precisamente porque reproduzem as normas patriarcais e as relações sociais.
Estas são algumas razões que nos levam a estudar a complexidade da casa como um lugar de múltiplas experiências e expressões, desde o lugar seguro, da família e do conforto, mas também de insegurança, opressão e violência.
Em sociedades democráticas, espera-se que os espaços públicos (conjunto de áreas múltiplas e diferenciadas onde ocorre a vida pública) sejam importantes porque, em teoria, providenciam espaço para se “estar e ser”. Na prática, porém, têm sido espaços de exclusão, que limitam a presença de mulheres, minorias étnicas, pessoas de cor, LGBT, pobres, idosas e crianças e pessoas com deficiência. Na prática estes espaços são masculinos e heteronormativos, impedindo o pleno acesso, participação e sentido de pertença de mulheres e minorias.
As discussões sobre o espaço, o território e o lugar levantam importantes questões no que diz respeito ao espaço público e privado. As divisões entre ambos, são o resultado de construções e experiências e são mais fluidas e contestadas do que supomos. Neles algumas pessoas e suas práticas encaixam e outras não. No que concerne às pessoas com determinadas incapacidades: é todo um mundo de quase exclusão. O tema é tão vasto que não vai ter páginas para o que teria para dizer…
Como deveria ser a cidade ideal – aquela que evitasse estas minorias de se sentirem marginalizadas?
M.Q: Começo por fazer um esclarecimento: o grupo (diverso) das mulheres não é uma minoria, embora seja tratado enquanto tal.
A cidade ideal não existe, apesar das múltiplas tentativas para a sua construção. E que eu tenha conhecimento, não existem muitas propostas de cidade que tenham a igualdade de género na sua génese. Lembro, muito em particular, uma visão, da autoria de Dolores Hayden que escreveu, em 1980, o ensaio What Would a Non-Sexist City Be Like?
Hayden sugere que os planeadores urbanos entenderam como implícito que o lugar da mulher seria em casa. Argumenta que a casa familiar isolada e suburbana havia sido projetada para a mulher no papel de dona de casa e cuidadora e um retiro para o ganha-pão, do sexo masculino, cujo trabalho se localizava na cidade (a série Mad Men ilustra bem esta realidade das cidades norte americanas para os homens, e subúrbios para as mulheres e família). Isto gerou um ambiente construído que por sua vez moldou a ideia de como uma “família normal” deveria usar o espaço. Com um número crescente de mulheres a incorporar o mercado de trabalho (remunerado) e o tamanho das famílias a diminuir, Hayden viu o projeto da cidade - e da casa da família - como tendo potencial para criar relações mais igualitárias.
Cerca de 40 anos depois, estamos com esta realidade: cada vez menos crianças, mais pessoas moram sozinhas, e entre estas estão as mulheres, mães solteiras, e em número cada vez maior as mulheres têm empregos remunerados…
Além das diferenças óbvias entre os Estados Unidos e a Europa, o projeto de cidade ainda prende as mulheres nos subúrbios e espera que elas façam a maior parte dos trabalhos domésticos e de cuidado? Obviamente que não, e muita coisa se foi fazendo, estamos muito mais próximo da igualdade de género nas cidades, mas ainda bem longe de a ter atingido.
Para começar, as caras e os nomes das pessoas que lideram o planeamento urbano têm de mudar, pois as mulheres neste domínio são cada vez mais numerosas e reivindicam o seu reconhecimento na profissão. As experiências da vida quotidiana têm de estar representadas entre as pessoas que tomam as decisões para que mudanças reais no tecido urbano melhorem a sua qualidade de vida. Onde localizar uma creche, quais as distâncias da residência às paragens de transportes públicos, rendas de habitação mais baixas, mais iluminação, mais espaços públicos partilhados, espaços de inclusão comunitários, etc. Existem ainda muitos movimentos de reivindicação do direito à cidade.
Em Barcelona, o Colletiu Punt 6 tem desenvolvido um trabalho notável, assente no urbanismo feminista que critica a falsa ideia de que a cidade é neutra, contribuindo amplamente para repensar a cidade alternativa à cidade desenhada com base no binário casa-trabalho.
Como será a cidade a partir de quem realmente a vive no seu quotidiano, das pessoas que caminham pela cidade, que pensam em alternativas para organizar o cuidado e o trabalho pago, numa perspetiva transformativa? Não têm de ser todas planeadoras, muito pelo contrário, experiências de migrantes, comunidades racializadas, pessoas idosas, entre tantas outras que experienciam a cidade injusta, devem estar no centro das propostas, ser intervenientes ativas no fazer cidade. A cidade de hoje não pode mais ser pensada com base numa tipologia familiar e de divisão do trabalho como o foi no passado. A amizade, a irmandade (“sororidade”), a proteção física, o contacto, e o movimento, mas também a permanência, devem nortear a “cidade das possibilidades”.
Desculpe, mas uma dúvida persiste: Se observarmos as cidades de hoje, podemos afirmar que todas elas são patriarcais (machistas) e heteronormativas? Existe alguma cidade que não siga esta tendência?
MQ: Não creio. Mas podemos assinalar partes das cidades de hoje que procuram fugir à heteronormatividade, vejam-se alguns dos bairros mais conhecidos: Soho em Londres, Castro em São Francisco, West Village em Nova Iorque, Amstel em Amesterdão, Le Marais em Paris, Bairro Alto em Lisboa, são exemplos. E há outros bons exemplos. Veja-se o caso de Viena, onde três conjuntos de habitação de interesse social, promovidos pelo Departamento de Género da cidade (Women’s Office), os chamados Frauen-Werk-Stadt I, II e III e In der Wiesen Generation Housing, foram concebidos com base na ideia de que a casa deve mais do que um abrigo físico (uma crítica à abordagem monofuncional), a partir da seguinte pergunta: como seria um distrito planeado a partir da perspetiva das mulheres?
“O medo foi naturalizado pela mulher” – Disse-o durante a sua apresentação na conferência I AM…ME. Alguma vez, por ser mulher, sentiu a sua segurança ameaçada na rua?
MQ: Nas mulheres, o medo instala-se desde a mais tenra idade. Os espaços associados à nossa casa são tradicionalmente tidos como seguros. Mas está demonstrado estatisticamente que a maior parte da violência contra as mulheres, ocorre em casa e são crimes perpetrados por pessoas que elas conhecem. Durante o nosso período vida, 1 em 3 mulheres e 1 em 4 homens foram ou serão vítimas de violência física de um parceiro íntimo.
Por outro lado, os espaços públicos são frequentemente percebidos como abertos, acessíveis e desregulados. Porém, muitas áreas públicas, têm vigilância e policiamento que restringe a mobilidade e a liberdade de expressão. Neste caso, algumas pessoas e suas práticas encaixam e outras não.
Vamos equacionar a cidade do medo. Desde criança que me recordo de ensinamentos relacionados com o espectro do “stranger danger” (perigo desconhecido): nunca fales com um estranho, nunca digas que estás sozinha em casa, não aceites presentes de um estranho - a figura do predador assola as mulheres desde crianças.
Na realidade, apesar destes ensinamentos, fiquei consciente da minha vulnerabilidade não quando era criança, mas quando me tornei uma adolescente e sofri diversos episódios de assédio. Vivi toda a minha infância e juventude numa cidade média (Coimbra), e fazia o percurso diário de casa para a escola sozinha, ou acompanhada dos meus irmãos mais velhos. E recordo que o meu sentido de liberdade era total junto deles que, segundo os meus pais, me protegiam, menor quando acompanhada de amigas, e nulo, quando estava sozinha. Neste caso, o meu cuidado era muito maior nas minhas deslocações, sobretudo sempre que começava a escurecer. Quando estava com as minhas amigas, já nos tempos da faculdade, tínhamos estratégias para combater os perigos que então sabíamos reais e não abstratos: não ficar sozinha a altas horas da noite com colegas homens, sobretudo nas noites de festas académicas, e ter um plano para a segurança individual. Claro que, alguns deles, ainda hoje meus amigos, substituíam os meus irmãos no papel de “meus protetores”.
E não tenho palavras para descrever as mensagens que as raparigas e mulheres recebem sobre os seus corpos, roupas, cabelo, maquilhagem, peso, higiene e comportamento apropriado (como nos sentamos, falamos, caminhamos, etc.).
Quando realmente compreendemos todos estes códigos, percebemos que as meninas, raparigas e mulheres são vulneráveis devido ao género, e o desenvolvimento sexual vai-nos mostrar como esse perigo se torna real.
A socialização é tão poderosa e profunda que o medo das mulheres em si tem uma atribuição “inata”, é naturalizado. E este medo tem sido estudado por muitas áreas científicas, da antropologia à biologia. Diversos inquéritos mostram que as mulheres identificam a cidade, a noite e homens estranhos como as maiores fontes de ameaça. Eu fiz e ainda faço parte desse número. Todavia, existem dados suficientes para demonstrar que as mulheres são muito mais vulneráveis e sofreram violência nas mãos de homens conhecidos e em espaços privados, como a casa e o local de trabalho. Esta contradição é conhecida como o “paradoxo do medo da mulher”, identificado com um medo irracional porque não explicado por evidências científicas.
Isto leva-nos a pensar no estereotipo: o que têm elas de errado? São irracionais, não se entendem! Uma investigação mais ampla mostra, porém, que o poder, o patriarcado e o trauma do “paradoxo do medo das mulheres” é apenas paradoxal através das lentes (da má ciência) que ignoram os processos de socialização e as relações de poder genderizadas. A família, a escola e também os media, reportam muito mais os crimes violentos de estranhos e muito menos a violência perpetrada por um parceiro íntimo. O cinema, livros e a televisão também. Portanto o paradoxo explica-se através de um conjunto de variáveis complexo (designado por patriarcado, que é estrutural), e a ideia de que “a minha violação está atrás de mim algures numa sombra na rua” tem perseguido as mulheres. Em contraste, a violência doméstica, o assalto sexual por conhecidos, e o abuso de crianças e outros crimes em privado, são mais prevalentes e têm historicamente tido menos atenção. Em vez de procurarmos a causa interna do paradoxo é muito mais satisfatório procurarmos as causas externas que são estruturais, e se traduzem em sistemas e instituições, que reproduzem o status quo, isto é, beneficiam os homens enquanto grupo.
E onde entra o espaço e a cidade em tudo isto? O controlo social acontece na cidade. Podemos mapear a cidade do medo, os bairros e as ruas, jardins e os sítios públicos: os locais a evitar. Esta ideia é real, experienciada e também contruída, porque exerce controlo sobre o espaço público, sendo que o privado pode ser bem mais perigoso. Os tempos da pandemia parecem confirmar esta constatação.
O medo tem custos: impede as mulheres do livre acesso à cidade, ao que ela pode oferecer, enquanto opção e oportunidades e, portanto, de vidas independentes e livres. Estes custos são também económicos, porque as impede de ter as mesmas oportunidades, acesso a cursos noturnos ou a certas profissões, e restringe a mobilidade, pois as mulheres (emigrantes, negras, jovens, etc.) caminham mais que os homens e são as maiores utilizadoras de transporte publico.
Acredito que o lugar da mulher é na cidade, porque a cidade é também criatividade, anonimidade, liberdade. Acredito e espero que esta nossa conversa possa trazer para a discussão mais ampla, o que é a vida na cidade na perspetiva de género, para que encontremos formas de entrar em ação e fazer cidade de uma forma diferente.
***
Não obstante de a termos encontrado na conferência I AM...ME, quis uma feliz coincidência que ficássemos a saber que Margarida Queirós integra também a equipa do Projeto eMOTIONAL Cities, outro destaque nesta edição da News@FMUL, e é PI do Projeto ViViDo - Plataforma de Gestão da Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica.
Nota: as reflexões da Professora Margarida Queirós são inspiradas em Linda Mc Dowell, Leslie Kern, Ann Oberhauser, Zaida Muxí, Inés de Madariaga, Gilian Rose, Doreen Massey, entre outras académicas que tanto contribuíram para o desenvolvimento dos estudos feministas.
Isabel Varela
Equipa Editorial