O novo projeto com financiamento europeu e coordenado por duas das Faculdades da Universidade de Lisboa, o Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) e a Faculdade de Medicina (FMUL) viu o seu Kick-off realizar-se no passado dia 13 de abril. Os pais deste novo consórcio são Professores e Investigadores, Paulo Morgado, do IGOT e Centro de Estudos Geográficos e Bruno Miranda, da FMUL e médico Neurologista de Santa Maria.
Diante da necessidade de acompanhar o crescimento das cidades de hoje e de construi-las à medida de quem as habita urge compreender que influências pode um plano de urbanização ter na sua população ou que efeitos biológicos e cognitivos podem as pessoas apresentar no meio-ambiente em que estão inseridos. São estas as linhas orientadoras do mais recente estudo “ eMOTIONAL Cities - Mapping the cities through the senses of those who make them”
Fomos conhecer um dos investigadores que aperfilha o projeto e o real contributo que a nossa Escola Médica pode dar a um projeto que se revela ambicioso e que exige uma multidisciplinaridade sem precedentes. Com 39 anos de idade, Bruno Miranda é mais do que um neurocientista, é também pai de 3 miúdos, e di-lo com um sorriso estampado no rosto. Na vertente profissional, assume-se como caminhante entre dois mundos: a prática clínica (neurologia) e a investigação básica (neurociências). A sua atenção é dividida pelo tempo que dedica à família e as horas que destina à sua carreira. Entre a docência e a investigação, Bruno Miranda tem sempre um denominador comum: o estudo do cérebro, a sua área de eleição.
O percurso académico saiu sempre do registo comum, fez erasmus em Paris, o internato geral em Inglaterra, e foi durante o Programa Doutoral de Neurociências da Fundação Champalimaud, mais precisamente no Instituto de Neurologia de Londres na University College of London, que o interesse pela a área computacional e os modelos matemáticos associados à análise do comportamento humano despertou.
Foi com base nessa sua experiência mais computacional que decidiu abraçar este projeto do eMOTIONAL Cities?
BM: Na verdade, não. Esta oportunidade surgiu quase do nada. Tudo começou quando o Professor Paulo Morgado (IGOT) abordou a Faculdade de Medicina, por intermédio do Prof. José Ferro, do Serviço de Neurologia, que por sua vez me convidou para estar presente numa reunião com representantes do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT). Apesar de considerar a minha participação como um feliz acaso, cedo identifiquei muitas interligações e a oportunidade de levar a ciência para um outro nível, mais humano. Depois, a relação com o Prof. Paulo Morgado também fluiu de forma muito natural. Quase de imediato, começámos a trocar imensas impressões sobre o potencial das neurociências enquadradas na visão deste projeto.
Podemos concluir que o que o move neste projeto é o contributo das neurociências, como uma área a ser explorada, e que poderá servir como base de apoio ao EMOTIONAL Cities?
BM: Sim. É curioso, porque o principal alerta para a relevância das neurociências aconteceu em conversa com a minha mulher. Quando partilhei com ela a génese do projeto, ela disse: “Olha, isso é capaz de ser uma ideia muito engraçada!”, até então todas as minhas conversas sobre investigação, com ela, terminavam em silêncio (Risos). Esta reação por parte dela fez-me compreender que o meu contributo para este projeto poderia trazer algum aporte para a sociedade. Na verdade, eu sinto que não me enquadro nem na investigação puramente básica, nem puramente clínica (com todas as vantagens e desvantagens inerentes). E a associação ao tema do urbanismo permite-me fazer algo que se enquadra no meu modus operandi: estabelecer pontes. E, claro, poderá ser também uma preciosa ajuda para me orientar a navegar na cidade de Lisboa, já que habitualmente me perco um pouco (Risos).
Qual é o maior contributo da Faculdade de Medicina para este projeto?
BM: Enquanto Instituição, temos um potencial interessante na medida em que temos uma comunidade médica, na área da neurologia, e um grupo de neurociências básico, no iMM, muito fortes, com grande capacidade e know-how, perfeitamente capazes de adequar a prática clínica e a investigação às necessidades dos nossos parceiros. Hoje em dia, fala-se muito sobre Machine Learning e Inteligência Artificial, mas na verdade o mais importante é o uso que se dá a essas ferramentas – elas devem ser realmente úteis para quem as utiliza.
E que ferramentas são essas?
BM: Basicamente, ferramentas de análise que nos permitam alavancar fatores de bem-estar, como a mobilidade, os transportes, entre outros às questões de Saúde e assim apoiar as populações mais vulneráveis.
Teria o nosso país, e os outros países inseridos neste estudo, a iniciativa de mapear as cidades consoante os sentidos dos seus moradores, se não fosse o estímulo das diretrizes internacionais? Na sua opinião andamos à boleia da União Europeia?
BM: (Faz uma pausa) É uma boa pergunta! Estes Clusters são uma nova abordagem da Comissão Europeia e que servem para agrupar temas-chave. Havia, no passado, muitos projetos semelhantes entre si e que acabavam por não se relacionar. Portanto, a ideia do Cluster é bastante positiva a partir do momento em que reúne toda a informação existente sobre determinados temas num só local. No que diz respeito aos consórcios, é uma forma de criar sinergias entre os países. Enquanto grupo de trabalho, interessa-nos ter novas e diferentes perspetivas. Trata-se de uma forma que a Comissão Europeia arranjou de estender várias temáticas a todos os países, mas sem esquecer as necessidades particulares de cada um. Vejamos o caso da Dinamarca, em termos de mobilidade, é um país que neste momento necessita de expandir as suas ciclovias para um formato de autoestradas. Enquanto nós, só agora estamos a dar os primeiros passos na construção de ciclovias. Estamos claramente num estágio de necessidade inferior, ainda assim, a questão da mobilidade e circulação pelas cidades é um tema comum. Não diria que andamos à boleia. É importante termos visão estratégica e ter alguém que nos indique o caminho não é obrigatoriamente mau. A Comissão Europeia está muito focada em conhecer as necessidades e interesses de cada país. Se é algo forçado? Sim, mas no bom sentido.
Como é que as emoções dos moradores são a centralina deste projeto?
BM: Na maior parte das vezes, a construção das cidades não tem em consideração os interesses/necessidades dos seus moradores, pelo menos, de acordo com os especialistas do mapeamento e estruturação das cidades. Este alerta veio remetido da área do urbanismo. Foi com base nos contatos que tive que me comecei a aperceber que há muitas cidades, cuja construção e crescimento se centra nos serviços, na adequação de mobilidade. Fazer com que o trânsito circule com maior fluidez em direção ao centro, onde se situam os locais de trabalho ou depois para as zonas residenciais. Aquilo que realmente parece falhar é a apreciação humana sobre o espaço. O fato de facilitarmos o acesso aos serviços não significa que a pessoa ande mais contente pela cidade. Para muitos autores, este tem sido um aspeto de relevo. Para conseguirmos apoiar os decisores políticos em medidas intuitivas, sustentáveis e inteligentes para as pessoas, é importante compreender como reage o cérebro, que nos proporciona ter emoções e tomar decisões. Se conseguirmos compreender como a máquina se comporta, ser-nos-á mais fácil compreender as relações causais. Há muitíssimo trabalho feito na área de epidemiologia, mas sempre centrado numa vertente muito populacional, social, de relação entre indicadores de Saúde, mas pouco ligada à biologia do ser humano.
Nesta fase que atravessamos, a prática de exercício físico na rua tornou-se viral. No caso de Lisboa, somos bastante privilegiados por termos espaços verdes que nos permitem fazer exercício ao ar livre, mas e relativamente às questões de segurança? Há, na sua opinião, muito a ser feito?
BM: Há muito por otimizar, é precisamente isso que queremos explorar: o que há a melhorar? Esta é uma área que capta muito a atenção da União Europeia, razão para a criação deste Cluster muito ligado ao tema da Saúde Ambiental. Quanto à cidade de Lisboa, a título mais pessoal, é uma cidade que reúne condições muito boas, não só por ter alguns espaços verdes, como pela proximidade com o mar. A pandemia só veio reforçar a necessidade de bem-estar quando em contato com a natureza. Aqui, o nosso papel passará por vermos de que forma é que dentro de toda a dinâmica complexa da vida quotidiana conseguimos melhorar todos os aspetos da vida dos residentes nas cidades: o exercício físico, a mobilidade, a iluminação, a segurança, a todos os níveis. Temos aqui um grande desafio.
![Pobre sentado num banco de jardim](/sites/default/files/inline-images/Desiguladades_cidade_sicnoticias.jpg)
Ao ler o Press-Release da sessão de lançamento do projeto, compreendi que o EMOTIONAL Cities também se propõe a diminuir as desigualdades urbanas. Existem certamente alguns grupos que se sentem marginalizados nas cidades ou não tão incluídos, nomeadamente mulheres, homossexuais ou doentes com dificuldades motoras e cognitivas. Serão todos eles considerados no estudo?
BM: Sim. Julgo que há muito a fazer, sobretudo, de que forma é que a investigação das neurociências mais básicas, onde eu me sinto mais confortável, podem contribuir para alavancar temas como segurança e mobilidade. E, de fato, não há muito trabalho feito em termos de perceção de diferenças de género. Não sou especialista, mas diria que as cidades sempre tiveram uma construção que privilegia o sexo masculino. O meu objetivo é conseguir aferir de que forma é que um homem reage a um determinado local comparativamente a uma mulher e tentar identificar os locais que desencadeiam um estímulo de ansiedade ou medo nas pessoas com vista a melhorar essas zonas com recurso a mais iluminação, alargamento dos passeios, etc... Portanto, se conseguirmos obter esses estímulos já é um dado acrescido.
Em relação a outros grupos vulneráveis, nós utilizámos o grupo de doentes com defeito cognitivo ligeiro, porque achamos que é um grupo interessante, porque se por um lado não perdeu a capacidade de autonomia funcional, por outro já revela algumas queixas que podem ser enquadradas no estágio de pré-doença, neste caso pré-demência. O projeto desafia as cidades a ir ao encontro de uma das necessidades futuras: o envelhecimento. De que forma é que as cidades futuras poderão proporcionar a um grupo etário, cada vez mais prevalente na nossa sociedade, um bem-estar que pode ser diferente de grupos mais jovens e saudáveis.
É isto que torna esta associação ao urbanismo tão interessante, porque os resultados podem dizer-nos que não precisamos de atuar em todos os níveis da cidade de forma igual, e ter tudo georreferenciado permite-nos adequar às necessidades de cada nicho da população, e apoiar os stakeholders a tomar decisões sobre temas mais prioritários.
E o cérebro aqui assume-se como uma ferramenta incrível…
BM: Completamente. O Cérebro, na qualidade de processador desta informação, vai nos permitir construir modelos. Admitindo que existe sempre diferenças entre cérebros, mas que temos todos uma raiz biológica relativamente próxima, vai-nos permitir usar esses modelos para simular o que poderá acontecer quando tivermos cenários futuros. Ao contrário dos estudos epidemiológicos vai-nos permitir construir perspetivas futuras. Imagine ter 1000 ou 10.000 cérebros a avaliar uma mudança, imagine a variabilidade de emoções, quais seriam os resultados dessa mudança? Uma das nossas tarefas é precisamente reunir toda essa informação para prever o que pode vir a acontecer. Queremos entender as reações das pessoas analisadas, mediante a observação de diferentes cenários, com o objetivo de apoiar sempre a população mais vulnerável.
Como é que a equipa vai fazer isso? Será através de voluntários? Questionários? Qual é a metodologia de investigação?
BM: É uma pergunta difícil, porque a metodologia vai variando ao longo das várias fases do trabalho e de foco adotado por cada grupo. Inicialmente, vamos fazer uma revisão da literatura, utilizaremos revisões sistemáticas e meta-análises. De seguida, numa componente de avaliação do espaço urbano, mais a cargo dos especialistas da área do urbanismo, iremos recorrer à realização de inquéritos e focus group. Vamos também, recrutar voluntários para instalarem e usarem uma aplicação para o telemóvel, que pretende monitorizar os modos de transporte que o voluntario faz uso. Através da mesma aplicação vamos interpelar o utilizador da app com perguntas de avaliação do espaço onde se encontra.
Esta é precisamente uma das razões porque a disseminação do projeto é tão importante. Queremos apostar num grande movimento de Citizen based research - investigação baseada na opinião do cidadão e com metodologias muito próprias.
No que diz respeito à área de neurociências, um dos maiores contributos da nossa parte, será mesmo o uso de tecnologia que nos ajude a estudar o cérebro humano. Com o apoio, em particular, da Ressonância Magnética Funcional. Muito provavelmente vamos conseguir aproveitar o investimento que a FMUL fez neste tipo de tecnologia. Para além da RM, vamos também utilizar o eletroencefalograma, porque a RM é muito boa no que toca à resolução espacial, mas precisamos de recolher dados sobre sequências temporais. Necessitamos de compreender as emoções dos voluntários em todos os momentos, ao deslocarem-se pelas várias zonas da cidade. Neste sentido o eletroencefalograma é melhor, pois dá-nos uma visão temporal e local mais exata. Por fim, vamos tentar usar ainda sensores fisiológicos, que avaliem a variabilidade da frequência cardíaca, porque o cérebro não é uma entidade isolada, sendo o nosso corpo uma entidade global e sistémica, todas estas respostas nos ajudam a compreender quais as emoções do utilizador no momento.
Qual é o número mínimo de voluntários que precisam?
BM: Isso depende muito. Não existe um número mágico. Em termos de participantes em experiências de rua, estamos a apontar para 80 a 100 participantes, talvez até mais se conseguirmos. Estas experiências acontecem em vários espaços urbanos, em quatro cidades diferentes, logo em termos logísticos, terá de haver aqui alguma ginástica de combinar fatores ambientais como a neve, nos países nórdicos, ou períodos de chuva, em que seja difícil realizar estas experiências. Temos de considerar todos estes fatores quando pensamos em traçar determinado tipo de metas. Para experiências laboratoriais, não precisamos de tantas pessoas, podemos precisar apenas de 20 a 30 pessoas, dependendo muito daquilo que sejam as nossas perguntas. As perguntas da experiência não estão ainda fechadas. Possuímos, claro, linhas orientadoras, que têm vindo a ser discutidas com os nossos parceiros, mas os detalhes terão ainda de ser mais afinados.
![Homem de pé perto de um póster](/sites/default/files/inline-images/Bruno%20Miranda2.jpg)
Ambicioso, criterioso e multidisciplinar, o EMOTIONAL Cities promete desafiar os sentidos não só das pessoas que nas cidades residem e circulam, mas também dos seus decisores políticos, para não falar na vasta equipa que abraça todo este desafio com conhecimentos tão distintos entre si, mas ao mesmo tempo tão complementares. O contributo das neurociências está a cargo do Prof. Bruno Miranda, uma nova abordagem científica que lhe concede aquilo que mais gosta: Permitir-se a abrir novos horizontes!
Isabel Varela
Equipa Editorial
![Share](https://www.medicina.ulisboa.pt/sites/default/files/media-icons/share.png)