"Eu só quero que não se apercebam que eu também cá estou ", referia-se a ele próprio a respeito de ter integrado o grupo que fez nascer o Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (iMM). A frase traduz bem o seu low profile que podia facilmente justificar que fosse anglo-saxónico, mas não é, de Inglaterra traz boa parte da herança intelectual e científica que já retomaremos como tema.
Sentido de humor acutilante, intervala os assuntos mais sérios, desbloqueando-os com anedotas, ou pequenas ironias para quem estiver mais atento. É generoso na consideração que deposita nos outros, o que lhe realça firmeza de personalidade.
Procurei o Domingos Henrique porque é um dos elementos que integra a Comissão Científica do PD-CAML, acompanhando por isso os estudantes de Doutoramento que vão chegando à Faculdade.
Eu fui logo marcante no primeiro contacto, “Boa tarde Professor Domingues Henrique”, e ele mostrou de imediato o seu senso de humor que desbloqueia qualquer entrave comunicacional, “Isto começa mal... nem sou Domingues, nem Professor... sou Domingos, apenas. Todos os dias, mesmo aos Domingos (piada para desanuviar...)”.
Ficámos apresentados, igualmente conquistados para falar abertamente.
Cientista por natureza, atualmente observa a espécie humana enquanto seu tutor, mas o Laboratório já não o seduz tanto, não ao ponto de o agarrar de novo ao microscópio. Ao longo da conversa entender-se-á o porquê.
Estudou na Faculdade de Farmácia, o sucesso das notas permitiu-lhe ser convidado para o Instituto Gulbenkian (IGC) para um estágio de verão, em 1984. Começa a rir e diz-me que olhando agora em retrospetiva, "já é velho, mas não tinha ainda notado".
Foi no IGC que fez o Doutoramento em Biologia Molecular, e é desde esse tempo que se lhe aplica bem o poema de Régio, "Não sei para onde vou, mas sei que não vou por aí". Optou por experimentar um caminho diferente, sem estar ligado à Universidade, através de bolsas, para não se sentir demasiado preso a nada, o que ao longo do doutoramento lhe foi mostrando quão desafiante era viver sem rede financeira, realidade tão percetível a qualquer Cientista atual.
Viveu depois 6 anos em Inglaterra, altura da governação de Tony Blair. Foi lá que chegou em 1991 e se abriu ao mundo. Aí conheceu várias mochilas em diferentes pessoas. Principalmente as mochilas da experiência e da sabedoria. Foi também um dos períodos que mais viajou, quer entre o saber, quer entre países da Europa. Assim ia fazendo estágios e trocando experiências, algo que recorda ainda agora a brilhar o olhar. "Aquilo era outro mundo, nesse tempo havia apenas 3 ou 4 grandes seminários anuais e com a presença de todos os grandes nomes da Ciência, agora há seminários quase todos os dias".
Foi em Inglaterra que se dedicou à embriologia e resume facilmente a magia da Ciência no que toca ao tema em concreto, "se colocar um ovo de galinha, daqueles que compramos no mercado, numa estufa a 37-38ºC, durante 21 dias e sem qualquer outra intervenção externa, veremos emergir dele um pintainho. Está lá tudo, é como a mão que se desenha a ela própria!". “O embrião faz-se a ele mesmo”, continua, e entender as peças todas e como elas se montam, é na verdade falar da descodificação do código do DNA e de como se põe ele em prática. Entender a embriologia do sistema nervoso pode por exemplo revelar pistas para entender melhor o próprio cérebro humano. Sempre viu beleza no embrião, por considerar que nele nada havia de artefacto de laboratório, apenas uma “máquina perfeita a funcionar naturalmente”. A ética não nos atravessa aqui porque os embriões que espreitou, vezes sem conta ao microscópio, eram de galinha. Nesses momentos de visão microscópica, com os seus estudantes, Domingos sabe qual deles será um futuro cientista, "é o olhar que é logo diferente de todos os outros". Fala com magia, apesar de me recordar que “a magia é a grande capacidade de apanhar o outro distraído”, nada mais que isso. No que toca à magia do borbulhar de respostas, sim admite que há magia na Ciência, porque "o Cientista tem momentos de revelação em que se consagra tudo o que andou a fazer durante anos".
Voltemos a Portugal, onde regressaria em 1997, para integrar a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Juntou-se a um grupo de cientistas que constituíam uma das Unidades científicas da FMUL, liderada pelo Prof David Ferreira, e participou ativamente na gestação do iMM, processo liderado pelo Prof João Lobo Antunes. Da estrutura inicial que cabia ainda na Faculdade, dentro do Hospital de Santa Maria, o seu laboratório de investigação mudava-se para a ala mais nova Faculdade, o Edifício Egas Moniz. O piso 3, como atualmente o conhecemos, teve o dedo organizacional de Domingos, em estreito trabalho com os arquitetos do edifício.
Entre as diversas ideias que lhe fluem na mente, conta pedaços revestidos a um humor inteligente, subtil, eu dou gargalhadas durante as quase duas horas de conversa, mas não me atrevo a cometer mais inconfidencialidades desse humor.
Domingos Henrique orgulha-se hoje em dia de ver os números de sucesso do Programa de Doutoramento do CAML (PD-CAML), vincando sempre o prestígio dos trabalhos de Doutoramento, admite, contudo, que querem consolidar a capacidade do apoio aos estudantes. “São responsáveis por muita da atividade dos laboratórios de investigação e sem eles os projetos não evoluiriam”, reforça.
A conversa é fraturante em temas, jogo ágil de ping pong que salta de reflexão em reflexão. Pouco depois de começarmos de nos apresentarmos na entrevista, falamos sobre as publicações científicas e o que se paga para publicar na revista Nature, ou na Science. Pergunto em forma de retórica se todos teremos então um preço. Nenhum de nós responde, mas à medida que se conquista o espaço na conversa, percebemos que sim, todos temos um preço e o preço pode ser moral, mas esse também traz consequências.
Fala muito a sério sobre vários temas, mas aborda-os com um sentido refinado, quase distraído. A democratização da Ciência talvez seja um dos temas que mais o faz rir, mas de sarcasmo.
Em 1995 também ele publicou papers na Nature. Continuamos a falar da perversão dos grandes mercados globais, que fez com que o lucro se sobrepusesse ao mérito puro e duro. Análise do meu interlocutor? Não. Análise minha, depois de o ter ouvido e de ter ido investigar sobre o tema. A explicação tem tanto de interessante quanto de diabólica e deve-se talvez a Robert Maxwell. Fundador da Pergamon Press, entidade responsável pela publicação de artigos científicos, Maxwell criava um dos negócios mais rentáveis de todos os tempos. Publica-se, mas paga-se para ter o paper publicado. E se o autor quiser rever o seu artigo, também o paga por cada novo acesso ao seu original. Já as Universidades pagam a peso de ouro as assinaturas anuais para promoverem os autores dos artigos, que darão às Instituições o carimbo de prestígio que alcançam.
Os atuais tempos parecem ditar que para ser um grande cientista importa mais a revista onde se publicou, do que o conteúdo exato que se compôs.
A Ciência, bem como a sociedade vivem por ciclos que algures no tempo serão sempre disruptivos, comenta, precisam de o ser para se refrescarem, "é como o rock da época dos Génesis e que com o tempo passou a clássico demais, e precisou do punk para rasgar tudo de novo".
Apaixonado pela fotografia, admite que adaptou em família a moda das selfies, protagonismo que diz ser cada vez mais estimulado a cada um de nós. "Durante anos fiz fotografia e nunca me lembrei de virar a câmara para mim", encolhe os ombros e segue a contar-me outro truque que fazia, no tempo das “rollex” quando ia comer pastéis (de nata) a Belém. "Os turistas pediam fotografias e eu pegava na máquina ao contrário para tirar a fotografia; eles ficavam aflitos por eu virar a câmara e ficavam muito desapontados por se imaginarem numa fotografia com o mundo invertido. (ri), eu dizia-lhes que bastava virar depois a fotografia impressa. Era a minha diversão favorita e devo ter captado imensas caras aflitas por lhes virarem o mundo às avessas... ".
Outro dos seus grandes escapes é a corrida, que equilibra com uma alimentação sem carne. E corre a sério. A cultura inspira-o até nesse momento, quando me diz da sua filosofia perante o desporto, "Pain is inevitable, suffering is optional", frase citada por Murakami. Eu volto a ir mais longe ao observar a filosofia que me parece que o Domingos aprendeu a aplicar para tudo na sua vida, dor mas sem sofrimento. O que lhe causar sofrimento de alma, ele afasta-se.
Para alguém que esteve na criação das estruturas do iMM, como é que o vê 20 anos depois?
Domingos Henrique: A ideia de criar o iMM tinha como objetivo a investigação científica que se faz na FMUL, criando um dinamismo que não era possível com as estruturas rígidas que havia dentro do Estado português. Há 20 anos atrás algo como comprar reagentes para a investigação, era por vezes de uma dificuldade enorme. A investigação biomédica da Faculdade seria assim integrada no iMM, que seria o braço da investigação da Faculdade. Assim se atrairiam pessoas da investigação para um só Centro na FMUL. Após a criação dos estatutos e com o anúncio formal, o iMM tornava-se Laboratório Associado. Abriram-se concursos para novos investigadores e começaram a chegar pessoas de vários pontos do mundo. Algumas atualmente já não estão cá. Olhando para este trajeto percorrido podemos dizer, com garantia, que o iMM é uma das Instituições científicas de liderança em Portugal.
Como é que se faz um bom Cientista?
Domingos Henrique: Com curiosidade e muito amor pelo que se faz. O que é uma desvantagem, porque são das "espécies" mais maltratadas por terem esse amor à camisola.
Maltratada porque são pouco reconhecidas e mal pagas?
Domingos Henrique: Há muitos bons estudantes de Doutoramento, este grupo é uma elite que em geral tiveram percursos académicos de excelência. Com este perfil, qualquer um deles se escolhesse não ser cientista e se fosse trabalhar para uma empresa de consultoria, por exemplo, ganharia muito mais, provavelmente a trabalhar o mesmo, ou talvez menos. Os cientistas não, boa parte trabalha com bolsas de valor médio, sem nenhum contrato e benefícios associados, até pelo menos aos 30 e tal anos. E há um pensamento subjacente ao doutorando que é errado, que pressupõe que "se gosta tanto de estudar, então no limite nem precisa de ser pago, não precisa de ajuda". Este é um dos pontos mais frágeis na vida de todos os doutorandos. É como se por fazerem o que tanto gostam (estudar), o prazer ser a recompensa suficiente. No entanto, acho que poucos imaginam o que se pode sofrer durante o doutoramento; e felizmente que se começa a falar em problemas de saúde mental nestes “privilegiados” que afinal não o são.
Pode materializar essa dificuldade sofrida?
Domingos Henrique: Começa por um embate com a realidade da investigação e pela dificuldade em superar uma das primeiras lições de quem começa: investigar é falhar mais do que acertar. Investigar é formular e testar hipóteses e é natural que muitas destas estejam erradas e/ou que os métodos usados não sejam os apropriados e não permitem uma resposta clara. Falhar tem, pois, uma probabilidade elevada. Mas temos que aprender a encarar estes “falhanços” como passos na direção certa, que é afinal testar a hipótese e concluir da sua validade. E se concluirmos que a hipótese inicial era falsa, isso é um avanço, permite-nos construir outras hipóteses e avançar na investigação. Se estiver certa, é um avanço se calhar mais rápido, mas não menos significativo.
Na minha experiência, este embate é mais doloroso no caso dos médicos que se iniciam na investigação. Os médicos não estão treinados para errar, têm uma tolerância ao erro muito baixa e ainda bem, significa que tiveram um bom treino médico. Mas quando chegam ao laboratório e começam a experimentar e a investigar, seguindo um artigo científico e tentando replicar passos e métodos, começam a falhar, naturalmente. E enquanto aprendem a analisar e a controlar todas as variáveis, aprendem igualmente que, ainda assim, podem falhar e errar de novo. E aí é quando sofrem muito, porque questionam as suas capacidades, as competências. Ora, se aquele artigo nos dá determinado caminho, então por que razão falha depois connosco? Diante deste pensamento ou ganham tolerância ao erro, ou abandonam.
Há muitos abandonos de doutoramento?
Domingos Henrique: Não aqui no CAML. Uma das razões é que a nossa Faculdade tem uma estrutura muito boa que é o GAPIC (Gabinete de Apoio à Investigação Científica e Tecnológica), que permite aos estudantes de Medicina ir para os Laboratórios e contactar com a realidade da investigação, fazendo estágios e desenvolvendo projetos onde “aprendem a errar” e a adquirir uma visão do que é fazer ciência,
Falhar, pensamento terrível para estudantes que estão formatados a não falhar, por exigência do trabalho…
Domingos Henrique: Mas ajuda-os muito, faz entender que há perfeição sim, mas demora-se muito a atingi-la. Criar a dúvida permanente, questionar se estamos a fazer bem e se é assim que se faz, é a melhor forma de aprender. Popper dizia que a Ciência é a destruição sucessiva de verdades, e embora ache esta visão demasiado negativista, facto é que temos que ir criando e destruindo as falsas verdades. Transpondo esta lógica ao estudante de doutoramento, não diverge muito, é a forma de construir a resiliência necessária. A capacidade da crítica e da autocrítica é fundamental e não sendo um comportamento humano muito praticado, é útil. Nós não simplificamos. Li ainda há poucos dias num artigo na Nature como é que o cérebro humano funciona quando tem uma dificuldade. E a pergunta que faziam era a seguinte, diante de uma dificuldade, as pessoas complicam, ou simplificam?
Complicam, não é?
Domingos Henrique: Porque adicionam mais problemas, em vez de retirar elementos. E isto é que o Cientista aprende, a simplificar.
Aprende-se a relativizar?
Domingos Henrique: Há sempre coisas que não vão estar de acordo com a teoria, mas isso não invalida a teoria, será apenas um estímulo para novas experiências para destruir ou não destruir a teoria. Este estímulo vem muito de uma energia interior. (Pára ligeiramente, como se encaixasse algumas peças na sua rápida dissertação) Nós temos uma cultura católica muito intrínseca, não sei se isso não influenciará.
O que justifica que se sinta culpa diante da falha. Somos assim, não é?
Domingos Henrique: É. Nisso os protestantes são muito mais práticos, porque não confessam e não expiam as culpas, expiam os seus pecados contribuindo para a sociedade. É por isso que a Filantropia é tão comum nos países protestantes e em Portugal não. Em Portugal, confessamo-nos. E a expiação traduz-se em oração. (Sorri)
Foram financeiramente difíceis os seus tempos em Inglaterra?
Domingos Henrique: Não. Quando comecei, ainda não tinha apresentado em provas publicas o meu doutoramento aqui na UL, mas pagaram-me logo a nível de pós-doutoramento. Acredita que nem um certificado me pediram de comprovativo sobre a minha formação até ali? Era uma questão de confiança, de palavra. Claro que havia cartas de referência e trabalhos desenvolvidas por mim, mas nunca me pediram mais nada. E ainda hoje em Portugal, se quisermos ter um financiamento da FCT precisamos de nos munir de todos os certificados (até de residência...); os estudantes estrangeiros têm de registar o mestrado, ou licenciatura na universidade portuguesa, e se não for europeu, tem de ser ratificado por uma universidade portuguesa.
A sociedade britânica tem-se fechado mais ao mundo nos últimos tempos?
Domingos Henrique: Continua muito mais aberta, mas a parte da competitividade extrema da Ciência e esta ideia errada daquilo a que se chama meritocracia, acabou por afetar o sistema globalmente, fazendo com que ele gire nele próprio.
Notei que subtilmente e ainda há pouco questionou o conceito atual de meritocracia na Ciência.
Domingos Henrique: O problema é este: nem todos temos um caminho aberto e direto para chegar à tal meritocracia. Na Ciência também. É muito importante o que já se fez, por onde se passou e as ligações de trabalho e rede de contactos. E a questão é como é que vamos explicar isto a quem tem sonhos, como as pessoas que estão a iniciar os seus doutoramentos.
É uma abordagem demasiado crua.
Domingos Henrique: É um dos maiores problemas. Mas é importante referir, que temos dados que traduzem a elevada taxa de sucesso de doutoramentos no PD-CAML. Isso deve-se a fatores implementados já no passado com o Prof. Ruy Vitorino e que têm tido continuidade com o Prof. João Eurico. Por exemplo, a análise rigorosa e avaliação dos projetos de doutoramento permite à Comissão Científica do PD-CAML exigir muitas vezes a reformulação dos projetos iniciais, e pensamos que este processo tem como resultado aumentar a qualidade do projeto e as suas probabilidades de sucesso no final, ou seja, o trabalho de revisão prévia é uma mais-valia.
O Comité de tese tem também ajudado muito na taxa final de sucesso das teses, porque permite um acompanhamento do trabalho e a intervenção atempada na resolução de problemas científicos. Posso dizer que temos praticamente uma taxa de 100% de sucesso no PD-CAML. Os projetos que não chegam ao fim são geralmente por outros problemas, como casos de esgotamento ou problemas de saúde.
Problemas de saúde mental, também acontecem a este grupo de trabalho?
Domingos Henrique: É sempre difícil confrontarmo-nos com as questões de saúde mental. Estamos prestes a lançar um inquérito geral a todos os doutorandos atuais do PD-CAML onde pretendemos auscultar também a existência de problemas relacionados com a saúde mental dos nossos doutorandos. Mas alguns resultados dum inquérito mais restrito realizado recentemente pela comissão de estudantes sugerem que cerca de 40% dos nossos doutorandos declaram ter já sofrido de problemas de saúde mental durante o doutoramento. Este valor surpreendeu-me, mas os dados são semelhantes aos que conheço a nível global.
Como podemos lidar com a o problema?
Domingos Henrique: À inglesa. Tendo um tutor, ou um grupo de pessoas que possam ser conselheiros, que ajudem, encaminhem. Depois deve haver apoio clínico se necessário, com atendimento de psicologia ou psiquiatria. Estes apoios são fundamentais para reduzir as poucas desistências que temos. Temos depois outro cenário que me preocupa, que são as poucas pessoas que, depois do Doutoramento, querem ficar na Ciência.
E porquê?
Domingos Henrique: Na minha interpretação, há vários problemas que podem estar a contribuir para este facto. Por um lado, as perspetivas para desenvolver uma carreira científica autónoma parecem pouco sólidas e existe um sentimento geral de que é uma carreira muito difícil, com muitos obstáculos que não dependem só do cientista. E os aspetos financeiros podem também não ser estimulantes, admito. Mas para lá destes, outro problema me preocupa mais e que está a ser muito debatido na comunidade científica internacional. Tem a ver com a imagem que se está a formar de “fake science”, quer por questões de reprodutibilidade da ciência publicada, quer por questões de seriedade intelectual. Eu penso que os doutorandos são muito sensíveis (e ainda bem!) a esta questão da seriedade intelectual, para eles a ciência tem associado um valor de verdade, inerente ao conceito de descoberta. E se este valor é posto em causa durante o doutoramento, o encanto da ciência pode desvanecer-se. Não confundir com a frustração das experiências “falhadas”, por razões técnicas ou mesmo conceptuais, nem com a “falsificação” de hipóteses, um processo de destruição de “verdades” que é parte da aprendizagem em ciência. Penso que os doutorandos aprendem bem a lidar com a ansiedade destes falhanços, com a ajuda dos seus mentores. Mais difícil e destrutivo é encarar a falta de seriedade científica, e suspeito que este pode ser uma das razões que pode levar-nos ao desencanto com a ciência. Um problema ético, não é?
Muito bem, e qual é o preço que se paga por assumir essa ética?
Domingos Henrique: (Ri) Começámos a conversa assim, não foi? Perguntámos se teríamos um preço. Acho que os Cientistas também têm o seu. Corromper o tecido mental de alguém, custa imenso… Mas acontece.
Já percebi por que razão eles dizem muitas vezes que no 1º (dos 4 anos totais de Doutoramento) começam com a visão romântica da Ciência e acabam com algum desencanto.
Domingos Henrique: É normal começar com uma certa visão naïf da Ciência. Este desencanto é um processo que experimentamos a um nível mais geral hoje, com a eclosão da ciência na esfera pública durante esta pandemia. Observadores menos familiares com o processo científico podem ficar surpreendidos com a variedade de visões e opiniões de cientistas sobre o assunto. Até parece que existem múltiplas verdades científicas sobre questões que deviam ter apenas uma resposta. Mas este é o processo normal, leva tempo e muito esforço coletivo para se chegar a uma conclusão que ofereça uma explicação sólida, e baseada em factos, de cada problema que a ciência aborda. Muitos cientistas colocam e testam hipóteses que se verifica mais tarde estarem erradas, mas isso é normal, é assim que nos aproximamos duma explicação convincente. Temos é que identificar bem o que são hipóteses, o que são dados e o que são factos. Isto é o problema de comunicar ciência, que implica distinguir bem estes conceitos e evitar trocar “alhos por bugalhos”.
Há também vários casos em que estes doutorandos desistem duma carreira científica porque sentem que não estão a ser úteis à sociedade. Este conceito de “utilidade” permeia a ambição de muitos jovens cientistas e pode ser contraproducente, na minha opinião. Há uma coisa curiosa que me tem alertado para esta reflexão, ao analisar as candidaturas de estudantes às bolsas de doutoramento da FCT (e outras), num processo que implementámos no iMM para os ajudar a ter uma candidatura competitiva. Ao ler as cartas de motivação, é quase uma norma a afirmação de querer curar alguma doença, diminuir algum sofrimento, ou até mudar algo na humanidade. Mas muito poucas cartas referem que querem descobrir coisas, acrescentar conhecimento tendo como motivação principal a sua curiosidade.
Eu penso que o valor maior da ciência é o conhecimento e o que nos permite de explicação da realidade. E nem todo o conhecimento é de aplicação ou utilidade social imediata. Pode parecer utópico e desligado da realidade atual, mas acho que a produção de conhecimento deve ser a preocupação primária do cientista, para lá da questão válida do “para que é que isto serve?”. E já agora, seria bom também, na minha opinião, que a Universidade assuma também que a sua função não é só transmitir conhecimento, mas também produzi-lo.
O Domingos também se desencantou com a Ciência?
Domingos Henrique: Nesta altura, admito que sim, um pouco. Mas acho que existe sempre um processo de regeneração, muitas vezes apenas subterrâneo, e que o valor do conhecimento científico estará sempre presente. Mas a ciência não é separada do resto da sociedade, e nesta era de “fake news”, esta cultura acaba por alastrar a todos os domínios da sociedade. Acredito, no entanto, que os cientistas podem resistir a esta onda, com a prática diária da discussão e da dúvida, semeando perguntas e criticando respostas insuficientes.
Os doutorandos inspiram-no?
Domingos Henrique: É fabuloso, há mentes fabulosas, que borbulham ideias, sabedoria. Aprender o que não se deve fazer é muito fácil, mas aprender com as pessoas inteligentes como se faz, é mais difícil, leva tempo, mas é o caminho que sugiro sempre aos jovens doutorandos. Entendo que a Ciência só por si deveria ser estimulante para todos, colocando sempre novas perguntas e novas dúvidas. Mas este processo de destruição deixa marcas e não é fácil. Esse é talvez o desafio mais interessante de todo o Doutoramento, aprender a semear as dúvidas sem queimar o terreno fértil.
Domingos Henrique pertence ao grupo dos curiosos que olham com sabedoria para os tempos atuais, onde cientistas passaram a protagonistas de primeira linha. Olha igualmente para uma sociedade civil sedenta de curas, dando o protagonismo à Ciência, mas só enquanto ela resolver rapidamente os seus problemas, senão deixa de ser visivelmente útil. O self centred que me foi falando e que foi destruindo as rotinas do tempo, e dos rituais da Ciência.
A começar um novo curso para os estudantes que iniciaram o Doutoramento, o Domingos tem pensado como vai motivar os novos doutorandos, mas igualmente dar-lhes alertas sem quebrar o encanto. Sorri e diz que quer fomentar a vontade de quem sonha. Os que sonham são aqueles que ainda espreitam curiosos o Laboratório e que não cedem ao medo do tempo, ou da compreensível sustentabilidade.
Não fosse ele corredor e acharia mera expressão final aquela que deixa ao novo grupo de doutorandos e que lhe serve de mantra de vida.
“Don't Stop. Keep going”.
Joana Sousa
Equipa Editorial