Gostava de rosas amarelas, talvez porque lhe lembravam o desespero dos doentes—o sombreado da pele humana quando esmorece. O Avô Reynaldo—Abuito, como era chamado em família—tinha mandado construir a sua casa em Lisboa, perto do parque, onde hoje fica a Fundação Gulbenkian. Nesses anos quarenta, não longe da casa onde nasci e convivi com o Abuito, havia uma colina coberta de erva fresca, que servia de pasto a gado com pastor. Lembro-me de pensar que vivia no campo, pois a Mãe dizia-me, “Menina, vá brincar para as terras”.
O Abuito—um avô distante, que nunca se ajoelhou para brincar comigo—vivia no andar térreo com a Avó—a Abuita. Eu morava por cima com os Pais, o meu irmão Bartolomeu e a minha irmã Helena. Felizmente, o Abuito enveredou por uma carreira médica, fazendo também pesquisa sobre o nosso património artístico, sobretudo o Manuelino e o Barroco. Mas sempre ouvi dizer que, em tempos, tinha pensado tocar violino, como profissional, tendo chegado a afinar com o arco para os amigos. Foi mais uma teimosia do que uma melodia, e acabou por desistir.
A casa onde todos vivíamos era um local onde as paredes falavam connosco, como um piano tocado a quatro mãos. Só quando a Abuita morreu ouvi os acordes tristes esvaírem-se em silêncios pesados, abafados pelos enormes cortinados de veludo que separavam as salas do hall central onde se encontrava um piano Gaveau, que nós assassinávamos com grande horror da professora.
As mãos fortes e bem articuladas do Abuito definiam-no como o artista que sabia manejar o bisturi com mestria e fazia curas que roçavam o milagre. A sua voz clara e o discurso conciso eram instrumentos valiosos no ensino, nas conferências, e no convívio com a família. Os seus olhos azuis e penetrantes tornavam-se por vezes sonhadores e vagos, quando lançava uma ideia e a deixava incompleta, para ver quem na assistência a desenvolvia como um tema para discussão.
O almoço na salinha era simples, frango com batatas salteadas e ervilhas, uma sobremesa e fruta. Não variava muito, mas servia para compensar os grandes jantares e banquetes onde o Abuito tinha de ir, e onde quase não comia. Não gostava de complicações. Só as da cirurgia.
Foi na casa dos Abuitos que conheci os grandes da medicina, como René Leriche, e me encostei a Madame Leriche—uma senhora grande de corpo e coração. Passei com eles verões na propriedade que tinham em Cassis, no sul de França. Tanto o Professor Leriche como o Abuito tinham feito a cirurgia da guerra de 1914-18 em França. As marcas dessa carnificina viam-se no cuidado com que tratavam e falavam com os doentes. Era uma humanidade para apagar a desumanidade dessa guerra de trincheiras.
Amava as artes plásticas, a música, as viagens ao estrangeiro e pelo nosso país de automóvel—um DeSoto azul claro, guiado pelo motorista Bento. Levava consigo uma manta de lã sobre os joelhos, e partia em busca das igrejas e capelas Românicas e Góticas, onde se acolhiam as imagens religiosas, os capitéis, as naves enfeitadas com talhas coloridas que documentava para os seus escritos. Tinha uma predileção pelas touradas em Espanha—os touros de morte—e viu morrer o célebre Manolete duma cornada de um Miura em 1947.
Esses mundos fascinantes ficaram-me na memória pelas palavras do Abuito e o carinho da Abuita. Só muito mais tarde percebi que os nomes familiares do Avô Reynaldo e da Avó Suzana eram uma transgressão de Abuelito e Abuelita—o Castelhano que ele dominava na perfeição. Depois do almoço, que era sempre numa salinha e na companhia de um dos netos, sobretudo depois da Abuita morrer, o Abuito ligava a telefonia e ouvia as notícias de Espanha, enquanto argumentava consigo mesmo ao fazer paciências num tabuleiro de madeira, que colocava sobre as pernas. Não nos deixava falar. Era o momento do seu descanso, enquanto revolvia na mente alguma ideia. Depois fazia uma pequena sesta, antes de partir para o consultório nos Restauradores, onde a empregada Maria José fervia seringas e ajudava nas ligaduras dos doentes. A Maria José limpava tudo a preceito, sempre seguida duma pequena cadela Pekinois—a Boneca— com quem eu embirrava. Havia também um papagaio grande e cinzento no seu poleiro, que espalhava sementes de cânhamo pela saleta. O papagaio falava, mas só me lembro que dizia, “Reynaldo”.
Na casa da Av. António Augusto de Aguiar, onde todos vivemos, mas que já não existe, os jantares formais eram na sala grande que dava para o jardim. Ali se juntava uma elite médica, literária e artística, que me fascinava. Lembro-me do escultor Francisco Franco, do então jovem Joaquim Correia, do médico Gregorio Marañon, do Mestre Almada Negreiros e da Sara Afonso, e sobretudo do Afonso—o poeta Lopes Vieira, casado com a D. Helena, com quem partilhávamos férias de Verão na pequena vila piscatória de São Pedro de Moel. Os homens usavam chapéu nessa época, onde a mulher, com raras exceções, assumia uma atitude recatada, como convinha a uma dona de casa.
A sala de jantar do Abuito e da Abuita lembra-me sempre um conto de fadas, com a sua enorme chaminé, a longa mesa polida, os cadeirões com garras, e a tapeçaria do David a atirar com a fisga ao gigante Golias. Estava pendurada numa das paredes, que ocupava de alto a baixo. O pequeno David tinha fé que iria derrubar Golias, pois o gigante representava apenas a força e não a razão. O Avô Reynaldo era um homem de razão que sabia contornar os problemas com mão de mestre, ciência e arte. Era um avô que nunca esquecerei e que lembro com toda a sua pujança.
Luz Rezende
(Maria da Luz Vilhena dos Santos Rezende)
Carta escrita sobre o avô, 9 de Dezembro de 2019