O momento não é fácil para nenhum deles. É como um dia D que decide o rumo das suas vidas profissionais, eventualmente, o rumo de toda a vida.
Depois de 6 anos inteiros a estudar, chega o dia da derradeira prova de fogo, chamado até então de Harrison e assim durante 40 anos, agora a Prova Nacional de Acesso à Formação Especializada é diferente. Este foi o primeiro ano da nova Prova, que fez com que a 18 de novembro os estudantes fossem à procura da melhor colocação para a especialidade médica. O novo exame que reúne matérias de 8 manuais diferentes junta agora mais áreas médicas: Cirurgia (15%), Pediatria (15%), Ginecologia/Obstetrícia (10%), Psiquiatria (10%), continuando a manter como predominante a Medicina (50%). O objetivo é que se decore menos matéria e se saiba aplicar mais pensamento lógico nos casos clínicos apresentados. São 150 perguntas, num exame que dura 4 horas, dividido em duas partes de 2h20 cada, com um intervalo de pouco mais de 1 hora. Este é o tempo que têm para competir pelo melhor resultado, posicionando-se assim para a especialidade que querem escolher. No ranking das especialidades encontramos a Dermatologia (96%), Cirurgia Plástica (96%), Oftalmologia (95%), Gastroenterologia (92%) e Otorrinolaringologia (92%) no top 5 das mais procuradas.
Pelo caminho ficam sempre centenas de estudantes que só podem ser designados como médicos “tarefeiros”, aqueles que recebem à hora e são indiferenciados, uma vez que ficam sem especialidade. Só em 2018, foram cerca de 600 os que ficaram nesta situação. Se quiserem mudar o quadro têm duas hipóteses, ou vão para fora do país, ou tentam fazer nova Prova e refazer o rumo profissional.
"Aquilo que fomos sentindo, à medida que víamos colegas nossos a não entrar para a especialidade, é que era útil para o próprio sistema de Saúde, que sobrassem estes médicos indiferenciados, para fazer tarefas mais simples nos serviços de urgência (ex. podem receber os doentes que têm a pulseira verde), equilibrando um SNS já em declínio. O que eu questiono é que qualidade estamos a dar ao Serviço, porque saímos das faculdades com uma preparação teórica boa, só com alguma prática, mas que tem de ser apurada. Continua a ser necessário termos uma aprendizagem tutorada e que dura mais uns 5 anos em média. Ora, estes colegas diferenciados vão praticar uma Medicina completamente livre e sem ser tutorada. A qualidade passou de um patamar de topo para um intermédio". Confidenciou-nos Tomás d’Elvas Leitão, antigo aluno do MIM e apresentado mais adiante.
Apesar do número de vagas de acesso à especialidade ter vindo a aumentar nos últimos anos, facto é que, em cada ano, centenas de alunos continuam a ficar sem solução. Por outro lado, as notícias sucedem-se a relatar que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) não tem o número suficiente de médicos para dar resposta às longas listas de espera, ou ficam por preencher os quadros mínimos de todas as áreas hospitalares espalhadas pelo país. Foi precisamente este cenário que levou a que a maioria dos estudantes que fizeram a PNA, assim como outros tantos de outros anos de Medicina, assinassem um documento proposto pela Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM). Nessa carta reivindica-se um novo olhar para os recursos humanos na Saúde, tentando impedir que o SNS fique sem meios humanos para dar resposta aos doentes. Entregue no dia 19 de novembro no ministério da Saúde, a carta pedia ainda “a criação de um Observatório para o planeamento dos recursos humanos, que não inclua apenas o ministério da Saúde, mas também o ministério do Ensino Superior (por causa da formação pré-graduada), a Ordem dos Médicos, reitores, diretores de escolas médicas e os próprios estudantes", como referiu Vasco Mendes, Presidente da ANEM, ao Diário de Notícias.
José Rodrigues, Presidente da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa e outros dirigentes da AEFML juntaram-se a Vasco Mendes, entregando as cerca de 3000 cartas assinadas. "A ANEM foi recebida de forma impactante, nunca o tinha sido antes. Foi um momento simbólico e muito importante porque, a entregar as cartas, estavam representantes de quase todas as faculdades de Medicina do país. Falou-se a uma voz só".
Às sucessivas notícias que informam a existência insuficiente de médicos no público, grande parte destes estudantes rebatem-nas, explicando que não há falta de médicos, estão é mal distribuídos. A esta afirmação acrescentam-se argumentos fundamentados por José Rodrigues. "A entrada de muitos alunos em Medicina afeta a própria qualidade do ensino e das Escolas Médicas. Há dados que já referem que o número de estudantes de Medicina que entra é relativamente superior ao número de médicos que é preciso formar por ano, para garantir a assistência aos doentes. Por outro lado, para garantir internatos de qualidade é preciso estabelecer limites, ora isto não só é um paradoxo como cria desarmonia. Os problemas estão identificados há alguns anos, falta tomar a decisão por que parte se quer começar. Mas essa decisão já não é nossa, é uma decisão política".
Fez a Prova no ano passado, o último Harrison, não ficou apurado por 1%. Este ano, José Durão repetiu o exame, passando por um novo processo de estudo, já que a fórmula mudou por completo. Teve a oportunidade de vivenciar as diferenças de um ano para o outro.
“O método de estudo para o Harrison refinou-se cada vez mais, as escolas de preparação serviam essencialmente para dar as melhores dicas de memorização e sistematização de mantras e mnemónicas que permitiam absorver a imensidão de factos que poderiam ser perguntados e as pessoas, no geral, já sabiam como estudar para o exame, tanto que as classificações altas foram-se tornado cada vez mais comuns. Tudo isso mudou com a nova prova. Os temas abordados expandiram, a bibliografia aumentou de um para oito e o modelo de perguntas passou a envolver muito mais raciocínio clínico no momento e não tanto evocação de texto decorado. Os casos são-nos apresentados em modo de vinheta clínica com um resumo da história do doente e pode-nos ser pedido uma abordagem, um exame complementar de diagnóstico, um diagnóstico, uma terapêutica, por aí fora. Se no Harrison nos poderiam perguntar qual dos genes, de uma lista de cinco, está mutado numa determinada doença genética, na nova prova descrevem-nos os sinais e sintomas de um doente, bem como o resultado de testes genéticos que terá feito, e perguntam-nos qual o diagnóstico mais provável. Pode parecer que, no fundo, o resultado é o mesmo - saber que àquela doença está associado aquele gene mutado - mas o tipo de raciocínio é radicalmente diferente, é muito mais aproximado ao que nos procuram passar ao longo do curso e que iremos utilizar mais tarde na prática clínica. Acho importante acrescentar que, apesar de a nova prova pretender ser mais dirigida e se assemelhar mais ao modelo americano de formulação de questões, a verdade é que fiquei (tal como vários colegas com quem falei) um pouco desiludido com o exame de dia 18. A julgar pela prova piloto, fiquei algo entusiasmado com a possibilidade de fazer um exame realmente baseado na prática clínica, direcionado a uma matriz de conteúdos bem estabelecida, mas a prova apresentava várias questões um tanto ou quanto dúbias, que não refletiam inteiramente os conteúdos descritos na matriz, para além de enunciados excessivamente longos, principalmente na primeira parte, o que tornou a prova globalmente pouco equilibrada. Ainda assim, foi e será sempre preferível ao antigo exame. Resta esperar que o Gabinete da PNA consiga aprender com a experiência e aperfeiçoar a prova para os anos vindouros”.
Voltemos a Tomás d’Elvas Leitão, agora médico interno, estudou Medicina na FMUL e é lá que dá aulas de Microbiologia. Manteve-se no Campus por plena convicção e amor à casa. Em 2018 fez a Prova de acesso, escolheu como especialidade Anestesiologia, uma das áreas cujos recursos humanos são dos mais escassos no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte. “No meu ano foi particularmente mau porque era a última Prova que se fazia naquele formato (Harrison). Isto fez diferença porque estávamos habituados a estudar 5 grandes áreas: Cardiologia, Pneumologia, Hematologia, Nefrologia e Gastroenterologia. Mudando o tipo de Prova, quem estava habituado a estudar aquelas matérias, se quisesse repetir no ano seguinte, já não ia apenas recapitular todo o seu estudo. Teria de aprofundar tudo de raiz. O que pensámos foi, que se corresse mal, nada seria igual no ano seguinte. A pressão foi horrível". Diz-se particularmente descontraído e não fica ansioso com facilidade, mas no momento em que se sentou para fazer a Prova, ficou particularmente angustiado. "Respirei fundo e concentrei-me. As primeiras perguntas correram muito mal. Mas continuei a fazer o exame e até acabei depressa, o que me permitiu reler tudo. Saí com uma ideia concreta daquilo que ia ter. Depois de terminar a prova senti-me perplexo, como se não reagisse a nada. Dei por mim a pensar "e agora, não tenho nada para estudar". Porque durante um ano não soube fazer mais nada."
Um dia depois do exame, são publicadas oficialmente as correções, o que permite que cada aluno consiga prever aproximadamente quanto vai ter. O que os deixa na expectativa é em que lugar ficam posicionados no ranking e se dará para escolher a especialidade pretendida. Por isso, criam grupos de Facebook onde vão trocando informações, tentando ter uma previsão global dessas colocações.
De acordo com a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) em 2020 pretende-se aumentar ainda mais o número de vagas para a especialidade, 2110 é o número previsto. Em declarações à Lusa, o Bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, referiu que o aumento de vagas deve ser explicado caso a caso, ainda assim enumerou alguns exemplos: “Nalgumas situações tem a ver com a reposição de capacidade formativa nos serviços, noutros pode estar ligado à reorganização de unidades, havendo também um aumento de vagas nos hospitais privados”.
Mesmo assistindo a este aumento das vagas, elas continuam a não acompanhar a procura, como tal, o problema persiste para os estudantes de Medicina.
Por agora, os cerca de 2500 estudantes inscritos aguardam os resultados desta nova Prova Nacional de Acesso à Formação Especializada. Resultados que sairão até 30 de abril do próximo ano.
Recentes notícias apontam que alguns dos novos médicos internos possam ficar obrigatoriamente vinculados por determinado tempo aos Serviços, depois do Internato, seria uma boa notícia se as condições estivessem reunidas, relatam-nos alguns internos e estudantes. Não havendo progressão na carreira, nem aumento salarial, acumulando excesso de horas de banco em urgências e lidando com a escassez de materiais e recursos técnicos, seguir para o privado é um caminho, no mínimo, tentador, afirmam.
Ainda assim, persistem os que maioritariamente querem lutar por causas, manter o país ativo, tentando, muitos deles, honrar a camisola que vestiram de um Campus para onde olham com especial afeto.
Quer conhecer algumas das pessoas que passarão pela Prova Nacional de acesso para o próximo ano e o que os motiva ou desmoraliza?
Conheça-os, num artigo onde falam na primeira pessoa.
Joana Sousa
Equipa Editorial