Investigação e Formação Avançada
Professor Rui Victorino - refletindo sobre o Programa de Doutoramento do CAML
Habituado a fazer a integração de todas as áreas clínicas, Rui Victorino é o excelente exemplo pessoal disso. Atualmente diretor do Serviço de Medicina II do Hospital de Santa Maria, é de formação Médico Internista, com especialidade em Medicina Interna. Área cada vez mais integradora de cuidados médicos, a Medicina Interna acaba por dar a visão geral do estado de saúde de um doente, em contraponto com outras áreas de especialidade, cujo foco é mais microscópico sobre uma determinada patologia. “Cada doente internado, num Serviço de Medicina Interna, tem uma média de 8 patologias diferentes”, explica-me, “isso justifica uma necessidade cada vez maior de se proteger a área”.
Durante anos deu grande foco à Imunologia Clínica e acompanhou doentes com HIV. Investigou as células -T e conviveu diariamente com esta doença que constituiu nos anos 80 e 90 um desafio particularmente difícil. Como Diretor de Serviço de Medicina Interna gere uma área que tem cerca de 100 camas, mais de 40 médicos e acima de 60 enfermeiros. Ocupa parte do tempo em aspetos formativos, dos seus médicos e dos estudantes de Medicina. Professor Catedrático da Faculdade de Medicina, Rui Victorino, é o Coordenador de Medicina Interna 2 e de Imunologia Clínica, ambas do 5º ano. Aqui, encontra os alunos numa fase já de maior maturidade, onde estão prestes a seguir para os estágios em hospitais. Considera que, para o estudante, a Medicina Interna tem importante peso na sua formação, permitindo uma visão mais ampla do doente.
Foi Subdiretor e Presidente do Conselho Científico da Faculdade de Medicina e esteve envolvido na criação e coordenação do Programa Doutoral do CAML, que teve recentemente o seu Encontro Doutoral de Estudantes e que para além do programa científico organizado pelos próprios estudantes, são atribuídos prémios às melhores apresentações em poster e orais, por ano académico. Atualmente continua a integrar o Comité Científico do Programa, Rui Victorino recebe-me com a premissa que é sobre o Programa Doutoral que vamos falar e não do papel de Professor e de figura incontornável da história desta faculdade. E eu aceito, na esperança de encontrar um pequeno fragmento de espaço que me deixe contar da sua paixão pela arte, ou para falarmos da sua tão vasta carreira e que se encerra com uma jubilação, dentro de um ano.
Diz que é um otimista por natureza, mas preocupa-o o estado do Serviço Nacional de Saúde considerando imperioso melhorar condições de trabalho, condição essencial para que possa crescer em qualidade, integrando a clínica com a ciência, sem esquecer os valores humanos e éticos da prática médica.
Geriu sempre a sua vida profissional com o intuito de prosseguir em simultâneo com a Medicina, a carreira académica e, com igual empenho a investigação de translação entre o laboratório e a clínica. Era o desafio deste caminho com “três estradas cruzadas” que defendeu sempre, mas que foi descrevendo como uma "espécie em risco de extinção" e que contínua ameaçada. Este questionamento da viabilidade da “espécie” foi buscar a James Wyngaarden, médico e professor norte-americano que em 1979, num artigo do New England que refletia sobre os riscos do declínio da investigação desenvolvida por clínicos, nos centros hospitalares. Segundo ele, esta espécie do “Physician Scientist”constituía a garantia da progressão da Medicina científica e de um ensino médico exigente. Havia então que criar locais próprios para a sua preservação, com o ambiente adequado para que não se extinguisse. O habitat natural seria assim, primordialmente, estabelecido nos hospitais, com centros académicos, onde circulam as três áreas em simultâneo.
Criado em 2009, o CAML, Centro Académico Médico de Lisboa, foi composto por uma junção de vontades entre a Faculdade de Medicina, o Instituto de Medicina Molecular (iMM) e o Hospital de Santa Maria (CHULN). Um ano depois o CAML fazia nascer o Programa Doutoral, a sua primeira grande iniciativa que dava corpo ao triângulo de interação entre o ensino, a investigação e a clínica.
Foi na sua ida para Londres em 1977, onde trabalhou no Hammersmith Hospital como médico e onde veio a redigir a sua tese de Doutoramento, que absorveu o espírito deste triângulo, desígnio institucional que não parecia sequer ser contestado na altura, em Inglaterra.
Amante confesso de arte, foi há cerca de 14 anos que propôs à Direção da Faculdade expor algumas da suas obras de arte. Com uma rotatividade de peças, elas foram sendo apresentadas no piso da Imunologia Clínica, do Edifício Egas Moniz. Conta-se que lhe perguntaram se não tinha receio de deixar tão visíveis as suas obras, que coleciona há mais de 20 anos, mas respondeu que não, "porque eram obras conhecidas e publicadas em livros ou catálogos e daí não facilmente transaccionáveis".
Rui Victorino faz parte desta espécie de “Psysician Scientist” e talvez por isso batalhe tanto pela viabilidade deste grupo tão importante para as missões dos Centros Médicos Académicos.
É por esta preocupação da viabilidade da espécie que surge o CAML?
Rui Victorino: Como eu, qualquer pessoa que tivesse trabalho neste triângulo, ser médico num hospital universitário, com ensino e investigação, quereria tentar manter uma atividade nas três áreas, harmonizando todas elas. Esse foi um dos propósitos do CAML.
Foi com o Ministro da Ciência e Ensino Superior, em conjunto com o Ministro da Saúde da altura que se apostou, na via de treino, simultâneo, profissional e de Doutoramento. Defendeu-se que o Internato de Especialidade pudesse ser conciliado com o Doutoramento e isso contínua a existir, possibilitando que um interno possa prolongar o seu treino, como especialista que normalmente é de cinco anos, e estender mais três anos, sem prejudicar o tempo que dedica à formação profissional para fazer o Doutoramento. Ao fim de oito anos terminava assim já com o Doutoramento e o treino como especialista em qualquer área médica ou cirúrgica.
Mas o PhD não tem exatamente estes moldes, pois não Professor?
Rui Victorino: Não, este Programa de Doutoramento é completamente abrangente e os Internos Doutorandos representam apenas uma pequena percentagem entre os perfis de candidatos que integram o programa.
O nosso Programa foi muito baseado no CAML e a ideia era criar um programa novo que incluísse investigadores clínicos e não clínicos, tirando partido da infraestrutura que temos e que reúne o ensino, a investigação e os cuidados de saúde. Discutiram-se, na altura, vários modelos de programas doutorais, uns que defendiam programas mais restritos a áreas mais específicas, mas foi a defesa de um Programa mais integrador, envolvendo a área clínica, Biomedicina, Ciências e as Tecnologias da saúde, que acabou por vingar. A ideia era ter uma estrutura curricular que fosse flexível e o doutorando poder fazer as componentes curriculares de aulas e formações específicas ao longo dos quatro anos. Como estas pessoas já têm uma licenciatura e mestrado, com desempenhos académicos elevados, é possível definir um projeto muito exigente e cuidadoso que garanta taxas de sucesso altas e acomode as componentes curriculares ao longo do tempo.
Este ano sei que o Professor fez uma apresentação com dados estatísticos muito concretos em que mostra as taxas de sucesso do Programa Doutoral. Quer falar-me dos pontos fundamentais que merecem destaque?
Rui Victorino: Começámos por apresentar a Comissão Científica do Programa e descrever a organização e funcionamento da mesma. É constituído por docentes e investigadores com larga experiência de investigações científicas e de orientações de teses para além da grande dedicação a esta missão.
Depois de destacar que é um Programa com muitas salvaguardas de segurança, o escrutínio é rigoroso e depende de um processo de submissão que é analisado por dois revisores e novamente pela própria Comissão Científica, que vai dando aportes à melhoria do Projeto. E se ao início havia até alguma suspeição por não haver o hábito de se ser novamente externamente avaliado, aquando submissão de um projeto já avaliado pelo orientador, penso que se reconhece agora que as sucessivas revisões dão mais garantia de sucesso.
Os resultados do gráfico mostram cerca de 30 a 40 % são submetidos a alterações significativas.
Outro aspeto importante é a distribuição entre três áreas de registo do programa, cerca de 60% dos doutorandos são da área biomédica, e cerca de 25% são médicos e os restantes estão na área das ciências e tecnologias da saúde. Isto quer dizer que, de um total de 218, estamos a falar atualmente de 60 médicos, o que é um crescimento significativo se atendermos ao limitado número de médicos do início do Programa em 2009.
É ainda interessante que quanto ao género, não há dúvida que o sexo feminino domina. O que é semelhante com o que se verifica entre os estudantes de Medicina.
Consegue-se explicar esta mudança de termos mais médicos a fazer o Programa Doutoral?
Rui Victorino: As características deste Programa foram importantes para esse aumento, nomeadamente a flexibilidade da parte letiva. O médico está naturalmente menos disponível para entrar num Programa com parte letiva em full time durante 6 meses ou um ano, depois de ter tido 6 anos de curso e mais 2 de Internato geral e mais 5 de Especialidade. Depois disso, entrar em mais um ano de aulas é problemático. Assim, a possibilidade de entrar logo com o seu projeto de investigação e ir fazendo unidades curriculares em part time, ao longo dos 4 anos de projeto foi um elemento facilitador. Também ajudou neste aspeto o Estatuto de Internato Doutoramento com bolsas para médicos, lançados pelo Ministério da Saúde e da Ciência em 2009 e 2013. Lamentável é que não tenham sido abertos novos concursos desde 2013.
Temos outra informação muito interessante que é o grau de sucesso destas pessoas que fazem este Programa Doutoral.
Rui Victorino: Este sucesso pode ser avaliado de vários modos. Um deles é através da produtividade científica em termos de artigos publicados.
Os números apresentados referem-se a quem acabou o Doutoramento até 2018. São 123 doutorados e o grau de sucesso é grande neste aspeto. O número de publicações, por cada doutorando que terminou a tese, foi de 7.5 e como primeiro autor, houve 3.8 publicações. É muito bom. Estas teses geraram este elevado número médio de publicações, mas mais do que isso geraram um número de citações muito elevadas e as revistas científicas são, em regra, de elevado índice de impacto.
Visualmente é como se criassem "tentáculos" por todo o mundo, em sinal de prestígio. É isso?
Rui Victorino: Exatamente. Causa impacto. E é também interessante constatar o que estão a fazer após completarem o Doutoramento.
Destes 98 casos analisados, os 22 médicos estão quase todos (à exceção de 2), com posições em Instituições de saúde, ligadas a universidades e à investigação, com posições académicas como Professores Auxiliares. Claro que é importante também saber se estes médicos estão a ter as condições necessárias, para poderem prosseguir as suas investigações, já que o Serviço Nacional de Saúde está com graves problemas. Quanto aos doutorados não médicos estão predominantemente como investigadores, metade deles fora do país, o que indica que são competitivos internacionalmente. Depois temos 10 doutorados que estão na indústria farmacêutica e outros são Professores em universidades. Em suma, os dados são muito positivos.
É importante referir ainda, que o dropout rate é muito baixo, nomeadamente de um universo de 295 apenas 7 desistiram. Noutros programas realizados pelo país não é raro haver 40% / 50% de desistências. Para este número baixo de desistências contribuem vários fatores (indicados na figura).
Este Encontro Anual sempre foi organizado pelos estudantes?
Rui Victorino: Sempre. E é uma forma muito interessante de se afirmarem e de se mostrarem empenhados e vestirem a camisola do Programa e da Instituição. Por outro lado, é também um treino extraordinário de organização de reuniões e programação científica e faz parte de toda a experiência, em que têm sido excecionalmente bem-sucedidos. A organização foi toda deles, claro que elementos do Comité foram acompanhando a evolução do processo, bem como o IFA, mas o mérito do sucesso é deles.
Professor, que desafios para o futuro deste Programa Doutoral?
Rui Victorino: É importante desenvolver mais a interação entre a comissão científica e a comissão de estudantes. Depois acho que devemos disseminar melhor os resultados positivos do trabalho dos nossos doutorandos e do nosso Programa. De facto, deveríamos projetar mais o Programa e a sua imagem pública e a comunicação tem de ser mais trabalhada. Isto liga-se ao ponto dos Alumni network, mantendo os antigos alunos conectados à Instituição e seguirmos as suas carreiras profissionais. É necessário melhorar a plataforma para gerir o Programa, de modo mais aperfeiçoado e continuar a estimular os doutoramentos entre médicos. Claro que não é fácil especialmente diante de um SNS a enfrentar muitos problemas. Por outro lado entre os médicos que terminaram é complicado constituir grupos de investigação ativos, isso é outro grande desafio. É o nosso grande desafio, diria. Claro que o nosso CAML ajuda a responder a estes desafios, mas tem de haver ações governamentais que propiciem a investigação nas Unidades de Saúde.
Falta-lhe um ano para sair, para se jubilar. Quer mesmo sair?
Rui Victorino: É a evolução natural.
Como é que sendo tão ativo, em tantas áreas paralelas, se imagina daí em diante?
Rui Victorino: Imagino-me bem. Adoro o que faço e considero-me privilegiado porque desde os 23 anos trabalhei no que gostava, mas é bom haver renovação, de lideranças, mas estarei sempre disponível no futuro para colaborações pontuais com a FMUL, o HSM e o iMM.
De voz branda e com uma personalidade que impõe uma serenidade a quem o ouve, o que ainda mais gosta de fazer ainda hoje, e acima de tudo, é ver doentes com "doenças difíceis". No entanto, foi experimentar os três caminhos que lhe enriqueceu este seu papel de Médico, o Médico, Investigador e Professor que tem profundo respeito pela Medicina e pelos que a continuem a fazer avançar.
Nota - os dados apresentados e analisados em gráfico foram um trabalho do investigador do iMM, Domingos Henrique, acompanhado pela equipa do Instituto de Formação Avançada.
Joana Sousa
Equipa Editorial