Espaço Ciência
STAND4Kids - Há um novo projeto a investir na investigação pediátrica em Portugal
Chama-se STAND4Kids - Supporting Pediatric Trials in Portugal - e é a face nacional do consórcio Conect4children (C4C – European Clinical Trials for Children), uma rede europeia financiada pela Innovative Medicines Initiative que tem como principal objetivo melhorar a infra-estrutura de ensaios clínicos pediátricos, e facilitar o desenvolvimento de novos medicamentos para crianças. O propósito deste hub português, o STAND4Kids, é apoiar a investigação académica e comercial nesta área, trabalhando em conjunto com centros, profissionais de saúde e crianças e famílias.
A escolha da pessoa que encabeça todo o projeto não foi mero acaso: Pediatra do Hospital de Santa Maria que trabalha na área respiratória e alergológica, o Professor Ricardo Fernandes desenvolve ainda investigação em Farmacologia Clínica.
Antigo aluno da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, fez o Internato Geral no Hospital Garcia de Orta, regressando a Santa Maria para se formar e mais tarde exercer na especialidade. Há mais de 10 anos a fazer investigação, diz que as suas casas académicas são a Farmacologia Clínica e Terapêutica, coordenada pelo Professor Joaquim Ferreira, e a Pediatria, atualmente liderada pela Prof.ª Doutora Ana Isabel Lopes. Inicialmente quando pensou nas suas escolhas, ponderou a Neurologia, desafiado na altura por Joaquim Ferreira para um projeto conjunto, acabou por tomar outros rumos. Anos depois os caminhos cruzar-se-iam, teimando que de uma ou de outra forma trabalhariam por interesses comuns, em que se incluíam a metodologia e a Farmacologia Clínica. Foi depois de um interregno entre a Holanda e o Canadá e também por influência da sua mentora clínica, a Prof. Doutora Teresa Bandeira, que Ricardo Fernandes acabou por definir o tema do seu Doutoramento em bronquiolite, uma doença respiratória aguda frequente e com impacto significativo a curto e longo prazo.
Foi também nessa fase da sua vida que ganhou mais proximidade com a investigação em ensaios clínicos pediátricos. O primeiro contacto que fez nesta área foi através da StarChild Health, iniciativa internacional centrada nas particularidades pediátricas destes estudos em crianças, liderado por Martin Offringa, pediatra e investigador holandês, um dos seus orientadores de doutoramento. Reforçaria esse contacto pelo envolvimento na Cochrane Child Health e por vários projectos metodológicos na síntese de evidência. Uma década depois e apesar dos obstáculos serem proporcionais à capacidade de intervenção, decidiu abraçar a coordenação do STAND4Kids e criar condições para simplificar as dinâmicas de investigação. Tornava-se importante perceber como envolver a comunidade pediátrica, já que não existia uma rede estabelecida em Portugal e a tradição de investigação clínica em Pediatria era e é reduzida, particularmente, em ensaios clínicos. A Sociedade Portuguesa de Pediatria conseguia reunir todas as principais figuras da sua área, razão que justifica ser um dos elementos envolvido neste projeto.
Numa fase em que há ainda escassez de evidência científica e limitações na medicação pediátrica, era preciso perceber os riscos e os benefícios dos medicamentos já existentes e, em particular, como poderiam os ensaios clínicos ser o meio certo para se colmatar estas lacunas. O Professor Ricardo Fernandes reforçou qual o ponto de partida para o arranque do projeto, "a Pediatria sabe bem o que está a fazer, mas se formos criteriosos fá-lo com muito pouca informação".
Diante da falta de evidência e dos poucos ensaios clínicos era preciso uma nova abordagem para os desenhar, conduzir e reportar posteriormente à comunidade. Tendo por base o desenho de ensaios com base em adultos, que muitas vezes não têm aplicabilidade direta em crianças, avizinhava-se que esse fosse um dos grandes desafios a enfrentar. Mas o desenho do ensaio tem particularidades específicas, como explica Ricardo Fernandes. Por exemplo, "Em Pediatria temos situações onde é muito reduzido o número de crianças que têm determinada patologia. Isso levanta desafios próprios na forma como desenhamos os ensaios cientificamente, como os implementamos, como selecionamos e analisamos os seus outcomes e resultados, como envolvemos os doentes em todos estes processos, e este é um dos pontos mais fundamentais". E se em alguns países a eficiência na condução de ensaios já se manifesta através de redes pediátricas com boas performances, “Portugal é ainda um dos países que não tem esse tipo de rede a funcionar”.
Foi no somatório de todas estas fragilidades que nasceu o Conect4children, com vista à aplicabilidade real da Ciência, de país em país. Lançado em Maio de 2018, tem a particularidade de ter um financiamento misto pelo Programa de Investigação e Inovação Horizonte 2020 da União Europeia, e pela Indústria Farmacêutica Europeia, e conta ainda com parceiros universitários e redes de investigação. A sua duração será de 6 anos. "A visão é criar uma rede europeia de ensaios clínicos". Uma ideia de "balcão único" que permite a promotores de estudos ou investigadores que queiram desenvolver ou implementar um projeto de ensaio clínico, ter um só “Single Point of Contact/SPoC” (ponto de contacto) coordenado. A partir daí pode ativar-se então o acesso a especialistas da área pediátrica e de metodologia, o envolvimento de grupos de jovens e famílias, e o papel das redes a nível nacional, contribuindo para o desenho do estudo e para a avaliação da exequibilidade do projeto. Sendo exequível, o projeto poderá ser implementado pela rede europeia, suportado pelos seus Hubs nacionais, com processos padronizados e de acordo com as boas práticas clínicas. Por fim o processo de execução será monitorizado de modo a tornar-se eficiente.
O consórcio Conect4children é uma colaboração entre os setores académico e privado, inclui 33 instituições académicas, 10 parceiros da indústria de 20 países europeus, mais de 50 third parties, e tem cerca de 500 parceiros afiliados.
Atualmente coordenado por uma equipa italiana, o consórcio europeu faz depois o ponto de contacto com o Hub nacional STAND4Kids, acolhido pela AIDFM (Associação para a Investigação e Desenvolvimento da Faculdade de Medicina), uma associação sem fins lucrativos e de utilidade pública que promove a investigação biomédica na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e que é o beneficiário português.
Entre reuniões, onde Ricardo Fernandes traça um plano de comunicação e define prioridades com Maria Inês Simões, formada em Enfermagem, com experiência na área Pediátrica e coordenadora do projecto. A equipa na AIDFM-CETERA (o departamento responsável pela gestão do projeto) completa-se com a Doutora Inês Cabrita, Chief Operations Officer, e a Doutora Francisca Figueiras, Scientific Affairs Manager, além de Maria Fátima Casaca, Financial Assistant na AIDFM. Falámos ainda do panorama atual do país e das barreiras que encontram para poder levar um sonho que começa agora a ganhar forma real.
size="20"
Como é que se fazem ensaios clínicos num grupo tão delicado quanto o das crianças? É a mesma forma como se fazem ensaios em adultos?
Ricardo Fernandes: Há várias dimensões a dar resposta, porque dentro do espectro da Pediatria é muito diferente encarar um caso de um prematuro, ou de um recém-nascido, e depois de um adolescente. Depois não falamos apenas de ensaios que venham dar respostas a tratamentos, um bom caso disso são as vacinas que funcionam como prevenção. Os ensaios clínicos não existem apenas para crianças já doentes, e podem ter intervenções muito distintas, desde medicamentos, a dispositivos ou mesmo intervenções neuropsicológicas. Tradicionalmente é fácil ter a linha de pensamento que diz "cuidado com as crianças e cuidado com os lactentes, que são particularmente frágeis”. Mas há muita situações em que fazer ensaios aleatorizando intervenções, é legítimo porque corresponde ao método mais válido para responder à pergunta científica “qual a eficácia e segurança desta intervenção?”, naturalmente respeitando princípios éticos que são basilares. Porque temos o outro lado da moeda, por exemplo diante de um extremo prematuro e onde nos primeiros dias terei de usar uma panóplia de medicamentos, qual é base da ciência para suportar os benefícios e os riscos imediatos e os tardios? Muitas vezes é muito baixa e tomamos as opções off label, ou seja, fora das indicações aprovadas.
size="20"
Isso quer dizer que a experiência impera diante da evidência científica?
Ricardo Fernandes: É a experiência que muitas vezes dita a decisão que se vai tomar quando se observa uma criança, mas precisamos de boa ciência para a suportar. Talvez seja viés de profissão, mas creio que quem trabalha em cuidados pediátricos tem particularidades distintas. Os Pediatras, enfermeiros e tantos profissionais de saúde dedicados a esta área são muito preocupados e disponíveis para acompanhar e entender o que se passa com a criança e a família. E é essa sensibilidade que lhes permite interagir de forma diferente com os mais pequenos, mas também com os pais. Ao contrário de algumas opiniões acho que os pais não são assim tão complicados. A perceção deles face ao problema do filho é tão fulcral quanto a do profissional. Também em investigação precisamos de um trabalho conjunto de profissionais e famílias. Cientificamente há enormes desafios pediátricos para medir e analisar aspectos que nos permitam caracterizar e comparar os efeitos de testes ou terapêuticas. Um profissional menos experiente não tem a mesma perceção da criança do que aquele que atingiu um largo grau de experiência e que lhe dá conclusões mais globais, por vezes difíceis de quantificar cientificamente. Apesar de já haver muito trabalho desenvolvido por exemplo na área dos outcomes pediátricos, ainda há muito por onde melhorar em investigação clínica nesta área.
size="20"
Num país que não tem regulamentação apropriada para o efeito, como é que se concilia a atividade clínica e faz investigação ao mesmo tempo?
Ricardo Fernandes: Há mais de 10 anos entrei no primeiro ano de um Programa Doutoral que houve transitoriamente numa parceria da Fundação Gulbenkian e da Fundação Champalimaud, com outros apoios - o Programa de Formação Médica Avançada. Foi uma iniciativa pioneira, liderada pela Professora Leonor Parreira, e que pretendia contribuir para colmatar a escassez de médicos investigadores. Há sempre um grau de excepção à norma e de risco em alguém que se envolve ao mesmo tempo nestes dois cenários. Fiz o Doutoramento em part-time e só parava a actividade clínica pontualmente. Isto para lhe dizer que não é nada fácil e que há décadas que se discute o tema, com ganhos que são relevantes mas muito progressivos. Inclusivamente fui provavelmente a primeira pessoa no país a beneficiar do Estatuto de Interno Doutorando, que me permitia fazer o Doutoramento ao mesmo tempo que fazia clínica e a vertente assistencial. Muitos dos colegas do Programa Doutoral optaram por ficar fora do país, com carreiras de enorme qualidade. Em iniciativas como o Dia da Investigação do GAPIC temos tentado trazer alguns deles à FMUL. Posso dizer-lhe que 10 anos depois as coisas melhoraram, as oportunidades e condições são maiores, mas há um caminho grande a percorrer para haver mais abertura para trajectórias médico-científicas de qualidade, que permita lidar com cada vez mais pressão do ponto de vista assistencial, mas também ser exigente na produção e impacto da investigação efectuada. Parte do problema é enquadrar e assumir estes percursos num quadro real de consultas que se acumulam, técnicas e intervenções por realizar, escalas de urgência por preencher... E atenção que as necessidades assistenciais são absolutamente legitimas, e a qualidade dos cuidados prestados deve estar no centro da boa investigação clínica. Para este projecto, era fundamental ter tempo. Nem de propósito a Direção da FMUL entrou como a third-party, acolhendo muito bem o projeto. Ao Centro Hospitalar Lisboa Norte tenho de agradecer em particular à actual Directora do Serviço de Pediatria Médica (Dra. Celeste Barreto) e Diretora de Departamento (Prof. Doutora Ana Isabel Lopes), à Direcção Clínica, além de toda a equipa da Unidade de Alergologia (coordenada pela Prof. Ana Neves) e meus colegas, por me terem permitido assumir este percurso nesta fase.
No início do mês de abril os membros-chave do consórcio europeu reuniram-se em Portugal para definir que ensaios clínicos académicos serão financiados. Após essa reunião cada hub do seu país reúne e define estratégias mais locais. Em Portugal pretende-se participar em 2 ou 3 ensaios clínicos académicos e outros tantos com promotores comerciais, apoiados pelo c4c.
Nestes 6 anos a visão é que o STAND4Kids crie uma rede de parceiros e contactos que possibilite uma sustentabilidade a médio e longo prazo. Pretende-se uma estrutura que estimule e sedimente devidamente a investigação pediátrica entre profissionais, e em que um dos pontos primordiais seja o fortalecimento dos laços de confiança com as famílias das crianças, que serão envolvidas neste projecto.
Joana Sousa
Equipa Editorial