Reportagem / Perfil
"Quanto tempo - Uma criança no Olhar"
O título não é meu, mas durante o tempo em que quase me limitei a escutar e que o observei, não me saía do pensamento que tinha de o usar. Tomo-o emprestado ao jornalista Luís Osório sobre o livro que escreveu para o pai que perdeu cedo demais.
Em cima da mesa tem as fichas clínicas dos 5 pacientes, bons conhecidos seus, que vai receber durante a tarde. Aos 93 anos Carlos Ribeiro continua a dar consultas no seu consultório privado em pleno centro de Lisboa, no Saldanha. Recebe-os todas as sextas, mantendo assim o elo de ligação aos pacientes que tem desde há décadas.
Com cada um deles indica que passará uma hora. "Estes doentes são amigos, não vêm só falar da saúde. Vêm falar das preocupações que têm e que influenciam a saúde". Fala-me da importância de conhecer a fundo o doente, porque com ele absorve-se também a história da família. E se há um doente coronário, então a família está doente também, explica-me, porque “para se tratar a patologia do doente, há muitas vezes que tratar a patologia da família". Doença aguda, “o enfarte do miocárdio deveria passar a ser doença crónica e familiar, partilhada por todos e sem excessos de disciplina ou proteção”, diz-me. Mas conhecer o doente é também saber o histórico do ambiente do trabalho, ou mesmo o seu relacionamento com o clube do coração.
É precisamente o coração que salva e trata, desde 1972.
Se chega sempre o momento na vida em que o excelente aprendiz se torna o mestre, Carlos Ribeiro, o aprendiz de Arsénio Cordeiro, continua a aceitar apenas este rótulo, e não aquele de mestre. Mas contemos a história pela ordem em que ela se sucedeu.
De origens humildes, o pai era operário corticeiro e o avô tinha sido pescador, quanto à família da mãe, estava ligada à agricultura. Carlos Ribeiro sabia que não tinha privilégios e que teria de lutar pela vida para que ela lhe desse de volta alguns benefícios.
Se em pequeno estudou na sua terra natal, o Seixal, rápido veio para Lisboa desenvolver os estudos, fez o curso secundário no Liceu Passos Manuel e terminou o percurso académico na Faculdade de Medicina, à data no Campo Santana.
Numa fase em que teve de cumprir a carreira militar obrigatória, chegou a ponderar concorrer como médico militar, ganhando um ordenado cómodo que o ajudaria a gerir a sua vida e a financiar a pós-graduação.
Foi Arsénio Cordeiro, fundador da UTIC (Unidade de Cuidados Intensivos para Doentes Coronários), Professor e Cardiologista, que o demoveu da ideia da carreira militar, dizendo-lhe que seria enviado para vários pontos do país, perdendo o foco no Hospital de Santa Maria. Sugeriu-lhe então que, se precisava de juntar dinheiro, fosse exercer atividade para a sua terra. Assim, Carlos Ribeiro passava as manhãs em Santa Maria e à noite dava consultas, onde exercia, "clínica rural", como nos diz, "começando por baixo a atividade". Chamado por Dr. Carlos por todos os que o rodeavam, até para os amigos de infância, conheceu e contactou com todas as realidades clínicas, admitindo que ainda hoje é a Pediatria que mais cuidados lhe inspira. Recorda com grande sentido de respeito o esforço que as famílias mais humildes faziam para o receber em casa, privando-se elas próprias do conforto, para o proporcionar ao "senhor doutor". Conta-me que começar sem regalias era uma benesse porque o tinha ensinado a saber fazer tudo e a valorizar as conquistas.
Especializou-se em Cardiologia, observando o mestre Arsénio Cordeiro, enquanto afinava uma técnica apurada. Cedo percebeu que a mesma doença devia ser tratada de diferente forma consoante o doente, mas era importante saber olhá-lo, dedicar-lhe tempo. Diz-me que "a circunstância de cada um do doente é muito difícil de explicar ao outro" e compara-a à ética que também me diz não se explicar, "ensina-se pelo exemplo de uma geração, mas não se transmite, exclusivamente, em cursos".
Recorda os tempos em que foi Bastonário da Ordem dos Médicos e refere essa época como algo sofrida porque a sua ética nunca lhe permitiu aceitar ou perceber o equilíbrio de forças entre médicos e farmacêuticas e as suas hipotéticas relações.
Deixou-me falar com ele sobre quase tudo, só não valorizou quando lhe falei do 20 que tirou na sua tese de Doutoramento, em frente ao seu Professor Arsénio Cordeiro. Nem valorizou a revolução que fez na UTIC, onde facilitou a criação de uma base de dados com 6000 doentes e sistematizou todos os parâmetros clínicos, traçando o perfil exato do enfarte do miocárdio, quer desde o diagnóstico até à aplicação dos seus tratamentos.
Internacionalizou a UTIC graças a um vasto número de artigos de investigação publicados em revistas científicas nacionais e estrangeiras e sugeriu a implementação da Medicina Nuclear, da Hemorreologia, da Eco, das provas Ergométricas, dos registos de Holter, da Hemodinâmica no diagnóstico do enfarte do miocárdio. Mas disso absteve-se de falar pormenorizadamente.
Atento e compassado a falar, com um rigor de vestuário que não descuida um pormenor, falou-me de tantos outros temas que pela primeira vez não me permitiram fixar um único detalhe à sua volta senão o seu olhar e o ainda farto cabelo, agora branco.
Explicou-me que o coração é um órgão estimulado pela eletricidade que vem do sistema nervoso central e que tem uma bateria própria que, mesmo fora do corpo, continua a bater. Órgão superdotado, disse-me a sorrir, “o coração encontrou nos poetas protagonistas que sobrecarregaram a Cardiologia, porque falam dele como o centro dos sentimentos”. Mas também me falou de sentimentos e com emoção e explicou que enquanto médico não se deve mostrar medo ou fragilidade perante um doente, essas emoções guardam-se para a esfera do privado. Mas emociona-se, sim, desde sempre, em tudo o que envolva crianças.
Homem de família isso explica os seus 7 filhos e 16 netos. Adora falar com os netos e diz que sempre procurou ouvir os mais novos.
Aos 93 anos diríamos, calmamente, que o Professor, o mestre, alcançou já o auge da sua sabedoria, mas alerta-me para o perigo de pensar assim, já que “o erro é fundamental para se crescer e é perigoso quem acha que nunca se engana”.
De tantos pontos por onde poderíamos começar, talvez aquele que destaco como mais importante seja a forma como sempre olhou para o doente. Num momento que se debate tanto o tema da inteligência artificial, onde fica a relação com o doente?
Carlos Ribeiro: Tudo aponta para que o diálogo seja cada vez mais curto. O doente anda cada vez mais entusiasmado com os meios auxiliares de diagnóstico. Fica excitadíssimo quando vê uma ecografia ou um estudo isotópico a cores. A complexidade de um registo de Holter também o excita. Aprecia com o mesmo entusiasmo os valores das análises e fica satisfeito se o colesterol se encontra com valores próximos à média indicada na folha dos resultados. Tem tendência a sugerir novos meios auxiliares de diagnóstico e, às vezes, vai à consulta só para que os requisitem. Por outro lado, a vida é cada vez mais rápida e um ato médico clássico leva mais tempo, que pedir exames auxiliares de diagnóstico. O doente sai satisfeito e ele cumpriu as exigências da Administração, encurtando a duração da consulta. Chegam a programar primeiras consultas de 15 minutos… E eu pergunto, “o que se pode fazer em 15 minutos, quando não dá tempo às pessoas de esboçarem sequer uma queixa?”. Muitas vezes recebo pessoas que me trazem resmas de exames e que apenas me pedem a minha opinião sobre os documentos que transportam. Eu pego nesses exames e coloco-os todos aqui atrás. (Aponta para uma pequena estante com gavetas e prateleiras). E respondo sempre, "quem vem à consulta é o senhor(a), não os exames, diga-me qual é o seu problema".
Temos quase uma Medicina de robótica, é isso?
Carlos Ribeiro: Seria até mais vantajoso. O robot não se cansa, nem muda de humor, está sempre nas mesmas condições. Para este tipo de Medicina o robot é mais útil. O médico tem a desvantagem de não ter um computador tão certinho. Sabe que foi por isto que escrevi o livro - Ser Médico - onde defendi que temos de voltar a tratar doentes e não doenças e voltar a olhar para o doente e a circunstância. Não há enfartes do miocárdio pessoais, mas enfartes do miocárdio familiares. Quando o doente tem um enfarte, a família a partir daí passa a reagir com o doente de uma maneira completamente diferente. Passa a ser ultraprotegido e ou ele gosta e aproveita-se da situação, ou sente que o estão a tratar como um velho, ou uma criança e não gosta.
Alguma vez o seu coração o traiu?
Carlos Ribeiro A mim? Nunca! Eu nunca estive doente.
Nunca?
Carlos Ribeiro: Fui operado às amígdalas aos 27 anos e tive algumas gripes. Todavia, mesmo com 40º de febre isso nunca me impediu de trabalhar. Os meus colaboradores achavam-me pouco compreensivo, porque eu nunca acreditava que eles estivessem verdadeiramente doentes. (ri)
E era verdade? Achava mesmo isso?
Carlos Ribeiro: A uma colaboradora absentista pedi que não matasse mais tias, porque ia sempre ao funeral de mais uma tia. (Ri). Nós, médicos apanhamos as viroses muito mais cedo que a população em geral. Temos de contar com isso.
Mas isso é estar doente!
Carlos Ribeiro Não. Estar doente é algo que nos impede de atuar e de sair. Nunca tive nada disso.
Reparei na cerimónia dos 50 anos da UTIC que não havia uma única pessoa que ao entrar não o fosse cumprimentar e sempre em forma de homenagem. O vídeo que foi feito é também uma homenagem ao seu trabalho na UTIC. E basta ler os artigos e ouvir quando se referem ao Professor para sentir que é uma grande referência. Como é que olha para tudo isto?
Carlos Ribeiro: Com sorte. É uma questão de sorte. Eu tive sorte com a família que integrei, com a terra onde nasci e com os amigos que fiz desde a instrução primária, depois vieram os do liceu e da faculdade. Tive sorte na profissão que escolhi. Quando uma pessoa tem uma profissão que até pagaria para a exercer...isso é uma sorte! (sorri de felicidade)
Quando é que percebeu que tinha essa paixão pela Cardiologia?
Carlos Ribeiro: Eu adorava matemática e era onde tinha sempre as notas mais altas. Quando entrei no 7º ano cheguei a hesitar entre seguir Medicina ou Matemática. Mas achei que esta segunda me isolaria muito da comunidade e eu gostava do contacto com as pessoas e isso levou-me para a Medicina. Depois, durante o curso tive a ocasião de ser aluno da turma do Professor Arsénio Cordeiro e segui a carreira dele desde o 4º ano da Faculdade. No 5º ano, cada vez que tinha um tempo livre no Hospital, ia ter com os Assistentes dele e com ele... (Sorri e pensa) Porque ele era de facto um homem extraordinário.
O Professor Arsénio era recetivo aos alunos?
Carlos Ribeiro: Era, era! Ele gostava até que lhe fizessem perguntas e gostava de falar e explicar, de criar...e vibrava com aquilo! Portanto, qualquer aluno que fosse curioso, ele adorava. Era o homem certo numa altura em que não havia internet. Ele era a nossa internet, nós perguntávamos e ele respondia. Por isso não me diga que ter encontrado este homem que não foi uma sorte! Podia ter ido calhar a outra turma e ter ido parar a outro grupo. O Professor Arsénio Cordeiro foi a melhor peça do meu currículo.
Depois tudo o que fiz foi tentando imitá-lo, se é que é possível isso...
E muitas vezes enquanto observava um doente perguntava, "como é que o Professor Arsénio faria?".
Ainda faz essa revisão de memória?
Carlos Ribeiro: Fazia, hoje já não tenho assim essa necessidade, mas durante muitos anos fiz. E perguntava-me como reagiria o Professor diante de determinada situação.
Precisamos de ter exemplos para olhar e saber o rumo que vamos seguir?
Carlos Ribeiro: Essa pergunta faz-me lembrar a história de um Papa italiano que, enquanto ainda era Bispo em Itália, conta-se que, sempre que tinha um grande problema na sua jurisdição, dizia "vou falar com o Papa". Simplesmente em determinada altura ele foi eleito Papa. Um dia, diante de novo grande problema pensou, "vou dormir sobre o assunto e amanhã falo com o Papa". (Ri) Até que de repente disse, "espera, mas o Papa agora sou eu!". É sempre bom pensar que há alguém a quem possamos fazer a grande pergunta, mesmo que essa pessoa já cá não esteja. Essa pessoa é o nosso Papa.
Por falar em exemplos, o Professor foi mandatário do atual Bastonário da Ordem dos Médicos…
Carlos Ribeiro: Este colega é muito ativo e apresentou-me um programa bastante apelativo. Na verdade, ao apoiá-lo, pela primeira vez voltei a imiscuir-me na problemática da Ordem dos Médicos. Porque mal saí da Ordem, e só lá cumpri 3 anos de mandato, nunca mais me quis envolver em algo que fosse relacionado com essa instituição. Mas quando me apresentaram este atual Bastonário decidi, logo, apoia-lo. Sabe que eu acho que quando saímos de um lugar não devemos voltar a ele.
Porquê?
Carlos Ribeiro: Se uma pessoa volta só para aparecer e dar opiniões, só transtorna quem lá está. Porque sabe das competências e dos meandros e pode desmontar ideias do outro e que podem até ser positivas. Se acabou um mandato, então sai-se. Falar por falar e meter-se na política institucional só causa prejuízos. E o que interessa é a Instituição! Assim digo-lhe que não se deve voltar ao lugar onde foi feliz.
Tudo tem o seu tempo… O tempo assusta-o?
Carlos Ribeiro: Há uma coisa que o velho tem, o tempo já não passa da mesma forma. Para nós quase que o tempo é repetitivo e os dias passam a ser quase iguais.
Os dias perdem a magia?
Carlos Ribeiro: Não, são só iguais. Antigamente a segunda era diferente da quinta-feira. O domingo era o único dia em que eu podia dormir. Hoje é quase tudo a mesma coisa, porque posso dormir o mesmo número de horas, posso demorar as mesmas horas para escrever e ler, outras para conversar. Tenho uma ou outra reunião social... Uma coisa que aprendi com a idade é que o tempo, como é homogéneo, não se nota tanto a passar. Eu já fiz alguns cálculos, "o meu pai durou até aos 85 anos, a minha mãe também...", mas depois passei dos 85 e pensei, "bem, vou andando".
Faz esses cálculos, às vezes?
Carlos Ribeiro: Sim. Eu nasci em 1926 e o cálculo era até 2016, bom... já passou. E agora vamos para um número certo, 2020. (Pára com calma e não olha para mim) É muito bom viver. É muito bom viver. Mesmo que seja sentado. Andar já me custa um bocado, mas eu sou feliz mesmo só sentado. Uma pessoa tem tantas coisas culturalmente interessantes para fazer. Desde assistir a programas da Mezzo (canal de música clássica) ou à RTP2. Tanta coisa... De vez em quando posso ir visitar amigos como o Eça ou o Camilo, mas também, entre outros, o Pessoa. (Pensa calmamente). Há tanta coisa que interessa. Depois, aparece um problema com um doente/familiar nosso, o que nos obriga a leituras de atualização científica. Perceber o rumo da ciência é uma bela forma de se passar o tempo sem que se note que passa. Até na Teoria Quântica o tempo já não tem a mesma importância que tem na Matemática Euclidiana, onde se considerava a existência de quatro planos: o superior, inferior e o natural e mais o tempo. Na Teoria Quântica há 12 ou 24 planos e depois há que trabalhar neles. Aqui, o tempo dilui-se. Veja o buraco negro, ele marca o fim do tempo e do espaço. E se estamos a expandir o Universo, então isso influência o tempo. Então afinal o que é isso do tempo? (Faz uma pausa) Depois há outro conceito importante de se perceber. O que é isto da vida? Nós médicos estamos é interessados na matéria, mas na teoria do Einstein a energia é igual à matéria vezes a velocidade da luz ao quadrado (E=mc²), logo a nossa matéria é mínima face à energia que temos. Uma pessoa tem energia suficiente para iluminar uma cidade.
Professor, o que falta dizer a seu respeito que ainda não tenha sido dito?
Carlos Ribeiro: Acho que até já se disse demais mas... (fica em silêncio um tempo, em paz) Eu acho que não se tem insistido muito que sou um individuo com sorte. Só não tenho sorte ao jogo, sou do Sporting. (Ri).
Muitas vezes, ao longo da nossa conversa, emocionei-me a ouvir o Professor Carlos Ribeiro. Como abrir um livro antigo que nos transporta para a história das coisas, ouvir o Professor é como um relato em tempo real do passado que se transporta até mais adiante. É como a injeção de energia que mesmo um dia que deixe a sua matéria continua, como o coração, a pulsar.
Quanto tempo mais se fala com o Papa ou com o mestre que um dia nos falta?
O tempo que a nossa memória quiser.
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Joana Sousa
Equipa Editorial
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Agradecimento - ao Vasco e Lourenço Ribeiro Tamen (netos do Professor) que fizeram um excelente trabalho biográfico do avô acabando por me ajudar, mesmo sem nos conhecermos