Espaço Ciência
Cuidados Paliativos, Qualidade de Vida e Demência
Os Cuidados Paliativos têm como objectivo central a intervenção em contexto de doença crónica, incurável e progressiva, com o objectivo de melhoria da Qualidade de Vida (QdV) dos doentes e suas famílias, através da prevenção e do alívio do sofrimento, pela identificação precoce, avaliação sistemática e tratamento da dor e outros problemas físicos, psicosociais e espirituais (WHO, 2010).
A intervenção curativa e a intervenção paliativa não são mutuamente exclusivas. Nos doentes que apresentam o perfil referido, a paliação deve estar presente precocemente de forma integrada e complementar com a intervenção curativa para maximização da qualidade de cuidados prestados ao doente e à sua família (Murray, Kendall, Boyd, & Sheikh, 2005).
É uma área de intervenção especializada, que exige equipas multidiciplinares, com elevada diferenciação técnica e formação avançada específica (Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos, 2006).
O Mestrado em Cuidados Paliativos organizado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL), surge como pioneiro em Portugal na formação avançada de profissionais de saúde, aliando a orientação prática ao elevado nível científico e valorização da componente de investigação. Apresenta um curricula abrangente, promove a multidisciplinariedade e conta com formadores portugueses e estrangeiros de reconhecido mérito internacional. Foi assim a escolha natural, quando senti necessidade de aprofundar conhecimentos nesta área.
Tive oportunidade de elaborar uma tese de mestrado numa área relevante para a minha prática clínica como médica num hospital geriátrico, com unidade especializada em demência.
Existem inúmeras áreas de potencial melhoria na paliação em demência, sendo o estudo da QdV um aspecto prioritário.
A Organização Mundial de Saúde define QdV como “a percepção que o indivíduo tem da sua posição na vida no contexto da sua cultura e sistema de valores, em relação com os seus objectivos, expectativas, normas e preocupações. É um conceito alargado, influenciado de forma complexa pela saúde física do indivíduo, estado psicológico, nível de independência, relações sociais, crenças pessoais e sua relação com aspectos significativos do seu meio” (WHOQOL Group, 1997).
Dadas as características patológicas da demência, é necessária a adaptação deste constructo teórico, trabalho inicialmente realizado por Lawton (Lawton, 1994), e posteriormente desenvolvido por vários grupos de investigadores. Apesar das perdas cognitivas presentes no doente com demência, todos os modelos valorizam a perspectiva interna do doente sobre a sua própria QdV, a sua capacidade de adaptação, e reconhecem a influência do humor como aspecto central.
Sendo particularmente aliciante pelos desafios colocados nesta doença específica, optei assim por estudar QdV no doente com demência, área ainda pouco desenvolvida em Portugal. Dada a inexistência de uma escala específica para o estudo de QdV relacionada a saúde em doentes com demência em Portugal, propusemo-nos traduzir, adaptar e validar a escala QOL-AD (Logsdon, Gibbons, McCurry, & Teri, 2002) para Portugal. Trata-se de um instrumento particularmente interessante, pois avalia a QdV reportada pelo próprio doente com demência, e independentemente avalia a QdV do doente, interpretada pelo seu cuidador. Realizei este trabalho sob orientação do Prof. Doutor Alexandre de Mendonça, que proporcionou uma sinergia muito fecunda com o Grupo de Demências do Instituto de Medicina Molecular.
O processo de tradução e adaptação seguiu as recomendações nacionais e internacionais (Scientific Advisory Committee of the Medical Outcomes Trust, 2002). Tendo-se obtido uma versão da escala com adequada validade facial e de conteúdo, procedeu-se à avaliação das suas propriedades psicométricas.
Foi realizado um estudo qualitativo envolvendo 104 díades doente/cuidador, em doentes com diagnóstico de défice cognitivo ligeiro, ou demência ligeira a moderada (MMSE=10) por doença de Alzheimer ou demência vascular, e seus cuidadores. A idade média dos doentes da amostra é de 77 anos, 68% são mulheres, 53% vivem em instituição.
Referindo apenas os resultados mais relevantes do estudo realizado, é de salientar que a escala se apresentou de aplicação rápida, e as propriedades psicométricas de aceitabilidade e fiabilidade robustas e sobreponíveis ao estudo original, o que reforça também a convicção de que os doentes com demência têm a capacidade de autoavaliar a sua própria QdV.
Como na generalidade dos estudos internacionais, detectámos que a QdV percepcionada pelo doente é superior à que lhe é atribuida pelo seu cuidador.
Na ausência de um padrão de ouro para QdV em demência, estudámos a validade de critério concorrente com outros constructos. Como descrito na literatura internacional, encontrámos diferentes factores associados a classificação de QdV por parte do doente e por parte do seu cuidador. No caso do doente, surge correlação de menor QdV com presença de depressão, menor satisfação com a vida e de forma menos intensa com funcionalidade e presença de co-morbilidades. A classificação do cuidador surge correlacionada com presença de sintomas neuropsiquiátrico, sobrecarga do cuidador, depressão do cuidador, estado cognitivo do doente (que não está correlacionado com a classificação de QdV reportada pelo doente), e de forma mais ténue, com depressão do doente e actividades instrumentais de vida diária. Estas diferenças reforçam a complexidade do estudo de QdV em demência, e a necessidade de avaliar de forma abrangente o doente e seu cuidador, para instituição de medidas adequadas e eficazes de melhoria de QdV.
Comprovámos ainda, a validade discriminativa com um grupo de doentes sem défice cognitivo e seus cuidadores, apresentando estes valores mais altos de QdV.
A realização do curso de mestrado de 2º ciclo em Cuidados Paliativos, permitiu-me contactar com diferentes experiências na área dos cuidados paliativos, adquirir novos conhecimentos teóricos e práticos, contactar com formadores de elevada competência científica e ser responsável pela elaboração de um trabalho científico em todas as suas fases (desde a elaboração do protocolo à publicação), com uma sólida orientação e integrada num grupo de investigação dinâmico. O resultado final representou uma mais-valia pessoal e profissional, e esperamos que tenha proporcionado um contributo válido para a comunidade clinica e científica portuguesa.
Helena Bárrios
Hospital do Mar
helenabarrios@gmail.com
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Bibliografia
Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos. (2006). Organização de Serviços em Cuidados Paliativos: Recomendações da APCP. Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos.
Lawton, M. P. (1994). Quality of life in Alzheimer´s disease. Alzheimer Dis Assoc Disord, 8(Suppl 3), pp. 138-50.
Logsdon, R., Gibbons, L., McCurry, S., & Teri, L. (2002). Assessing quality of life in older adults with cognitive impairment. Psychosom Med, 64, pp. 510-19.
Murray, S., Kendall, M., Boyd, K., & Sheikh, A. (2005). Illness trajectories and palliative care. BMJ, 330, pp. 1007-11.
Scientific Advisory Committee of the Medical Outcomes Trust. (2002). Assessing health status and quality-of-life instruments: Attributes and review criteria. Qual Life Res, 11, pp. 193-205.
WHO. (2010). WHO definition of palliative care. Retrieved Janeiro 5, 2012, from http://www.who.int/cancer/palliative/definition/en
WHOQOL Group. (1997). Measuring quality of life. Geneva: The World Health Organization.
A intervenção curativa e a intervenção paliativa não são mutuamente exclusivas. Nos doentes que apresentam o perfil referido, a paliação deve estar presente precocemente de forma integrada e complementar com a intervenção curativa para maximização da qualidade de cuidados prestados ao doente e à sua família (Murray, Kendall, Boyd, & Sheikh, 2005).
É uma área de intervenção especializada, que exige equipas multidiciplinares, com elevada diferenciação técnica e formação avançada específica (Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos, 2006).
O Mestrado em Cuidados Paliativos organizado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL), surge como pioneiro em Portugal na formação avançada de profissionais de saúde, aliando a orientação prática ao elevado nível científico e valorização da componente de investigação. Apresenta um curricula abrangente, promove a multidisciplinariedade e conta com formadores portugueses e estrangeiros de reconhecido mérito internacional. Foi assim a escolha natural, quando senti necessidade de aprofundar conhecimentos nesta área.
Tive oportunidade de elaborar uma tese de mestrado numa área relevante para a minha prática clínica como médica num hospital geriátrico, com unidade especializada em demência.
Existem inúmeras áreas de potencial melhoria na paliação em demência, sendo o estudo da QdV um aspecto prioritário.
A Organização Mundial de Saúde define QdV como “a percepção que o indivíduo tem da sua posição na vida no contexto da sua cultura e sistema de valores, em relação com os seus objectivos, expectativas, normas e preocupações. É um conceito alargado, influenciado de forma complexa pela saúde física do indivíduo, estado psicológico, nível de independência, relações sociais, crenças pessoais e sua relação com aspectos significativos do seu meio” (WHOQOL Group, 1997).
Dadas as características patológicas da demência, é necessária a adaptação deste constructo teórico, trabalho inicialmente realizado por Lawton (Lawton, 1994), e posteriormente desenvolvido por vários grupos de investigadores. Apesar das perdas cognitivas presentes no doente com demência, todos os modelos valorizam a perspectiva interna do doente sobre a sua própria QdV, a sua capacidade de adaptação, e reconhecem a influência do humor como aspecto central.
Sendo particularmente aliciante pelos desafios colocados nesta doença específica, optei assim por estudar QdV no doente com demência, área ainda pouco desenvolvida em Portugal. Dada a inexistência de uma escala específica para o estudo de QdV relacionada a saúde em doentes com demência em Portugal, propusemo-nos traduzir, adaptar e validar a escala QOL-AD (Logsdon, Gibbons, McCurry, & Teri, 2002) para Portugal. Trata-se de um instrumento particularmente interessante, pois avalia a QdV reportada pelo próprio doente com demência, e independentemente avalia a QdV do doente, interpretada pelo seu cuidador. Realizei este trabalho sob orientação do Prof. Doutor Alexandre de Mendonça, que proporcionou uma sinergia muito fecunda com o Grupo de Demências do Instituto de Medicina Molecular.
O processo de tradução e adaptação seguiu as recomendações nacionais e internacionais (Scientific Advisory Committee of the Medical Outcomes Trust, 2002). Tendo-se obtido uma versão da escala com adequada validade facial e de conteúdo, procedeu-se à avaliação das suas propriedades psicométricas.
Foi realizado um estudo qualitativo envolvendo 104 díades doente/cuidador, em doentes com diagnóstico de défice cognitivo ligeiro, ou demência ligeira a moderada (MMSE=10) por doença de Alzheimer ou demência vascular, e seus cuidadores. A idade média dos doentes da amostra é de 77 anos, 68% são mulheres, 53% vivem em instituição.
Referindo apenas os resultados mais relevantes do estudo realizado, é de salientar que a escala se apresentou de aplicação rápida, e as propriedades psicométricas de aceitabilidade e fiabilidade robustas e sobreponíveis ao estudo original, o que reforça também a convicção de que os doentes com demência têm a capacidade de autoavaliar a sua própria QdV.
Como na generalidade dos estudos internacionais, detectámos que a QdV percepcionada pelo doente é superior à que lhe é atribuida pelo seu cuidador.
Na ausência de um padrão de ouro para QdV em demência, estudámos a validade de critério concorrente com outros constructos. Como descrito na literatura internacional, encontrámos diferentes factores associados a classificação de QdV por parte do doente e por parte do seu cuidador. No caso do doente, surge correlação de menor QdV com presença de depressão, menor satisfação com a vida e de forma menos intensa com funcionalidade e presença de co-morbilidades. A classificação do cuidador surge correlacionada com presença de sintomas neuropsiquiátrico, sobrecarga do cuidador, depressão do cuidador, estado cognitivo do doente (que não está correlacionado com a classificação de QdV reportada pelo doente), e de forma mais ténue, com depressão do doente e actividades instrumentais de vida diária. Estas diferenças reforçam a complexidade do estudo de QdV em demência, e a necessidade de avaliar de forma abrangente o doente e seu cuidador, para instituição de medidas adequadas e eficazes de melhoria de QdV.
Comprovámos ainda, a validade discriminativa com um grupo de doentes sem défice cognitivo e seus cuidadores, apresentando estes valores mais altos de QdV.
A realização do curso de mestrado de 2º ciclo em Cuidados Paliativos, permitiu-me contactar com diferentes experiências na área dos cuidados paliativos, adquirir novos conhecimentos teóricos e práticos, contactar com formadores de elevada competência científica e ser responsável pela elaboração de um trabalho científico em todas as suas fases (desde a elaboração do protocolo à publicação), com uma sólida orientação e integrada num grupo de investigação dinâmico. O resultado final representou uma mais-valia pessoal e profissional, e esperamos que tenha proporcionado um contributo válido para a comunidade clinica e científica portuguesa.
Helena Bárrios
Hospital do Mar
helenabarrios@gmail.com
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Bibliografia
Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos. (2006). Organização de Serviços em Cuidados Paliativos: Recomendações da APCP. Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos.
Lawton, M. P. (1994). Quality of life in Alzheimer´s disease. Alzheimer Dis Assoc Disord, 8(Suppl 3), pp. 138-50.
Logsdon, R., Gibbons, L., McCurry, S., & Teri, L. (2002). Assessing quality of life in older adults with cognitive impairment. Psychosom Med, 64, pp. 510-19.
Murray, S., Kendall, M., Boyd, K., & Sheikh, A. (2005). Illness trajectories and palliative care. BMJ, 330, pp. 1007-11.
Scientific Advisory Committee of the Medical Outcomes Trust. (2002). Assessing health status and quality-of-life instruments: Attributes and review criteria. Qual Life Res, 11, pp. 193-205.
WHO. (2010). WHO definition of palliative care. Retrieved Janeiro 5, 2012, from http://www.who.int/cancer/palliative/definition/en
WHOQOL Group. (1997). Measuring quality of life. Geneva: The World Health Organization.