As capacidades afetivas, emocionais e sociais são indispensáveis à vida humana, assim como o são, para uma boa saúde individual e coletiva.
Neste sentido, e durante um terço da vida que dedicamos ao sono, os mecanismos que regulam essas capacidades também são ajustados. Perante doenças do sono ou mesmo na inadequação do sono fisiológico, devemos, portanto, ficar cientes, das implicações sobre o cérebro social. Do amor, da sua representação social e do sentimento motor nas relações socio-afetivas, e deste imperativo fisiológico que é dormir, há muito que se lhes diga em conjunto.
Falámos com o médico Miguel Meira e Cruz que falou sobre a importância de dormir bem e as implicações que isso tem na socialização do Ser Humano e no desenvolvimento das relações afetivas.
Como vê a relação entre amor e sono? Eles estão associados? Como?
Miguel Meira e Cruz: Ao falar neste tópico, no qual praticamente inexiste qualquer tipo de literatura, é importante concebermos que, quer o sono, quer o amor, no seu conceito mais geral das relações interpessoais, são requisitos fundamentais para a nossa espécie, já que a ciência evidencia que restrição ou ausência de qualquer um deles, contribui para a doença e para a mortalidade precoce. Neste sentido, e para choque de muitos, sublinho que isto está demonstrado, mesmo quando comparados outros fatores de risco relevantes, como por exemplo a obesidade. Por outro lado, com ponderações diferentes, é certo, mas quem sofre, quer de maus sonos, quer de isolamento social/relacional, apresenta maiores taxas de doença cardiovascular, défice imunitário e stress, quando comparados com a população sem qualquer desses dois fatores envolvidos.
Outros valores inerentes à vida humana, como a capacidade critica, a psico-emotividade, a memória e a aprendizagem, são inequívocos produtos de um sono adequado. Perante a privação, restrição de sono ou localização temporal inadequada, por exemplo associada a um desalinhamento dos ritmos circadianos, surgem como resultantes indesejáveis, falências nestes processos. Alguns deles, envolvem a capacidade de relacionar, de sincronizar interesses, de socializar e de amar efetivamente.
É importante também reconhecer que, se um individuo se isola do ponto de vista social, outras pessoas vão tender a não interagir com ele. Alguns aspetos são irónicos: por exemplo, sabemos que a falta de sono aumenta a desinibição. Isto poderia levar a pensar que em relação com a capacidade relacional, este fator poderia ser favorável. Contudo, esta desinibição como função do sono depende da personalidade base, ou seja, favorece o acentuar das diferenças individuais, podendo assim limitar pois a sincronia de traços comuns (e de acordo com as regras sociais) que conduzem á eventual afinidade.
Também é interessante refletir que, muitas circunstâncias patológicas que conjugam problemas de sono com o isolamento social são alimentadas por esta interação a vários níveis. É o caso da depressão, de alguns quadros demenciais e de outros transtornos psiquiátricos como a bipolaridade.
Apesar de indubitável, esta relação tem mecanismos que ainda estão largamente por explorar. Porém, é provável que vias neurotransmissoras comuns possam explicar, de alguma forma, estas convergências. Sabemos por exemplo da inter-relação existente entre importantes neurotransmissores como a serotonina e a dopamina, e hormonas como a oxitocina.
A propósito de um artigo recente o Dr. Miguel coloca a possibilidade desta relação influenciar transtornos obsessivo-compulsivos. Como isto sucederá?
Miguel Meira e Cruz: Embora a minha dedicação à neurociência não o seja no domínio das emoções, confesso que é um tema que me é querido. E neste, é importante o reconhecimento de que existem vários níveis de amor, ou do que possamos melhor designar de relações socio-afetivas. De um ponto de vista clínico, digamos assim, e fruto também de outras influências, como a idade, o género, a vulnerabilidade genética ou a história passada ...estes diferentes níveis conservam maior ou menor dependência da atividade do sistema de recompensa: um grupo de estruturas neuronais responsável pela saliência motivacional, pela aprendizagem associativa e pela validação positiva das emoções, em particular as que possuem o prazer como seu componente central.
Este sistema identificado na década de 50 do século passado pelos cientistas James Olds e Peter Milner, responde ao neurotransmissor dopamina: também conhecida como “molécula do prazer”. O sentimento de prazer é uma das principais forças que nos faz agir. Sem ele não teríamos sequer motivação para levantar da cama todos os dias. Os sistemas dopaminérgicos são absolutamente relevantes para a interação social, para o amor romântico e para o sono também.
Um outro aspeto fisiológico que interfere nestas relações é a variação das funções ao longo do dia, integrado no que designamos de ritmos circadianos. Enquanto está bem definido que o melhor momento para o ser humano dormir e cumprir com as funções do sono, é durante a noite, também sabemos que os sentimentos e emoções associados ao estar-se apaixonado e motivado para atos de afeto ou sexualidade varia nas 24h do dia solar, assim como varia no período de 7 dias da semana, no período do mês e do ano, fruto do caldo químico dinâmico que temos e que envolve múltiplas moléculas.
Mas sendo assim, a existência de recompensa abre portas à adição?
Miguel Meira e Cruz: Sim e a comportamentos por assim dizer viciados. Os mecanismos são complexos e demonstrados em modelos farmacológicos. E quanto à tradução clínica da adição nos processos de relacionamento amoroso, naquele que é considerado o amor romântico e que envolve também a sexualidade, é fácil de lhe aceitar o estado de vicio. Sobretudo em determinados momentos como por exemplo o da paixão e o da rejeição. As implicações do vício ou adição num ou noutro estado variam de relativamente inocentes ou benignas até patológicas ou criminosas.
O que tem sido menos estudado é a forma como essa adição que é o amor pode impactar outros comportamentos aditivos. Um grupo de investigadores publicou um artigo recente numa revista de grande impacto, a CNS-spectrums, no qual reforçou a ideia de que o amor induz a expressão de comportamentos obsessivo-compulsivos. A importância clínica e social disto é, parece-me, notória. Imagine ser possível, por via da fenotipagem, assumir riscos sobre a maior ou menor predisposição para comportamentos de risco, que podem ser inconsequentes, mas também podem ter implicações legais como nos casos de violência, homicídio etc. Claro que ultrapassando aqui as questões éticas, isto seria importante e poderia trazer benefícios inequívocos quer do ponto de vista de cuidados antecipatórios sociais das potenciais vítimas, quer do ponto de vista de capacidade de controlo do “paciente”.
Mas o que tem o sono a ver com isto?
Miguel Meira e Cruz: É relativamente simples de entender a conexão. O sono pode fazer variar o limiar de ativação de diferentes componentes deste sistema de recompensa num ou noutro sentido. Por exemplo se alguém com tendência obsessiva se encontrar privado de sono, essas características podem exacerbar com maior probabilidade. E claro que há medicamentos que controlam isto e um sem número de fármacos envolvidos frequentemente nestes desequilíbrios.
Mas não será sensato reposicionar, quando podemos, com a fisiologia normal, prevenindo a ocorrência ou restabelecendo o sono, sem efeitos colaterais e tantas vezes adversos?
Simplificando, é inequívoca a noção de que se dormirmos mal, seja por vontade, por circunstâncias sociais ou por doença, a predisposição para interagir e relacionar é menor. Isto sucede mesmo quando antevemos um fim prazeroso como a reciprocidade do afeto ou o orgasmo, na sexualidade.
Então e se dormirmos bem?
Miguel Meira e Cruz: O sono adequado muda tudo isto e frequentemente consegue inverter as circunstâncias de rutura entre casais que estão cansados e pouco tolerantes aos desafios da vida por falta de sono. Modelos que o demonstram são por exemplo nos casais que tem filhos pequenos, sobretudo no período imediato á maternidade. Mas outras situações como casais em que um ou ambos trabalham muito ou que por motivos distintos retiram horas ao sono.
Quer dizer que o sono pode ser assim uma terapia para os males do amor? E na perspetiva inversa: o amor poderá resolver problemas no sono?
Miguel Meira e Cruz: Ora com toda a certeza são ambas verdade! E se algumas das questões que pontuei atrás o demonstram, falemos agora do impacto do sono na vertente sexual objetiva, uma fonte importante na manutenção do amor romântico. O défice de sono diminui a líbido, aumenta a disfunção sexual, e associa-se a comportamentos que de forma independente potenciam essas perdas (nomeadamente o stress, a ansiedade e a depressão). Nos homens a disfunção eréctil está associada quer ao défice de sono, quer à existência de determinadas doenças frequentes no sono, como a apneia do sono. Entre outros fatores psicoemocionais, existe a diminuição da secreção de testosterona a justificar este facto. Nas mulheres, a perda de lubrificação e a liabilidade emocional é frequentemente adjuvante no processo.
E o sexo, qual o papel deste no sono?
Miguel Meira e Cruz: Ninguém tem dúvidas de que uma sexualidade ativa e sobretudo recíproca em dedicação e empenho beneficia o sono, talvez mais do que qualquer outro somnogénico de origem farmacológica. É interessante que apesar de lógica e incontestável na certeza da tradição, não há estudos que incidam sobre este aspeto.
Apenas para deixar um apontamento relevante sobre a relação entre sexo e sono e que pode comprometer também as relações sociais e amorosas. Existem condições raras designadas de sexónias que se caracterizam por comportamentos sexualizados durante o sono, normalmente durante o sono profundo. Estas condições que podem envolver a masturbação ou a tentativa de ato sexual de facto, constituem frequentemente matéria de interesse médico-legal, mas também são motivos de constrangimento social, pois limita em muitos aspetos a interação e pode mesmo constituir motivo de afastamento e divórcio.
Nota Final
Creio que como nota final, ficou patente a multidimensionalidade da interação entre sono e amor. Um campo que tem sido reservado sob pretexto de menor interesse ou de um tabu que não se justifica em matéria clínica, pelo menos, e que deve ser explorado no domínio social, psicológico, médico e farmacológico. Neste Dia Mundial do Sono vale a pena lembrar.
Quem é?
Miguel Meira e Cruz
Diretor da Unidade de Sono do Centro Cardiovascular da Universidade de Lisboa, Faculdade de Medicina.
Médico Dentista, Especialista Europeu (European Sleep Research Society) e Internacional (World Sleep Society) em Medicina do Sono.
CEO do Centro Europeu do Sono
Professor Convidado da Tufts University, Boston, USA, e das Faculdades São Leopoldo Mandic, Campinas e Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, Salvador, ambas no Brasil.
Dora Estevens Guerreiro
Equipa Editorial