
Graça Freitas veio à FMUL onde deu uma aula de Epidemiologia. Partilhou, com os alunos e alguns Professores sentados na plateia, alguns dos momentos que viveu durante a fase mais aguda do SARS-CoV-2 e das implicações que isso teve na sua vida enquanto Diretora-Geral da Saúde. Está de saída da Direção-Geral da Saúde (DGS) após um mandato de 5 anos, em que os últimos 3 foram pautados por uma pandemia como não há memória e aproveitámos o momento para falar com ela.
A Covid-19 apareceu ainda que timidamente, no final de 2019, na província chinesa de Wuhan, na China. Até hoje a dúvida persiste, o vírus “escapou” de um laboratório, ou foi a natureza a seguir o seu ciclo? Independentemente da resposta, o mundo teve de adaptar-se e Portugal não foi exceção. Graça Freitas era a Diretora-Geral da Saúde e não esconde que os últimos anos foram intensos e desafiantes e que acabaram por contribuir para sua decisão de se reformar. “É óbvio que sim, que a pandemia influenciou. Foram anos com uma agenda muito intensa e agora que vou atingir a idade em que me posso reformar, deu-me vontade de fazer outras coisas.” Quando assumiu o cargo, já sabia da sua exigência e estava a par das funções que lhe cabiam, “eu sabia tudo o que era bom que envolvia desempenhar este cargo”, mas foi surpreendida por uma pandemia como não havia memória. “Foi uma situação inesperada! Tínhamos tido uma situação de pandemia em 2009 com a gripe A, mas o vírus era pouco agressivo e não teve grande repercussão. A gripe espanhola tinha sido há um século e, portanto, esta foi uma situação única”, diz naquele tom tão característico com que fala, muito determinada e objetiva. Durante a aula que veio dar à FMUL, cujo tema lhe é tão familiar “Epidemiologia”, a Médica contou alguns episódios que lhe acontecem por se ter tornado um rosto conhecido. Numa dessas ocasiões, “uma Senhora disse-me, olhe gosto muito de si, mas fala demais”. Não é fácil falar para todos e muito menos agradar a todos. Quando lhe pergunto se em alguma fase se sentiu desapoiada ou incompreendida, lá avançou, uma vez mais no seu jeito particular, “isso é normal vem do cargo e das circunstâncias. Mas o mais importante é que nos organizamos na DGS e nos organizamos no Ministério da Saúde e na sociedade em geral para fazer frente a um desafio que é o maior desafio coletivo das nossas vidas”, disse e, utilizou o presente porque, “ainda estamos em pandemia, temos de continuar a vigiar, não só porque a doença persiste, mas também porque “ainda estamos a viver as consequências da pandemia e os reflexos dela com alterações no emprego, por exemplo, mas estamos a entrar na normalidade.”
O primeiro vírus SARS CoV aparece em 2003
A primeira vez que se fala num vírus SARS foi em 2003, na região da China. Uma mulher de 45 anos surgiu com sintomas respiratórios e transmitiu a doença a 4 familiares. O vírus espalhou-se na região com casos a surgir em Hong Kong, Vietname e Singapura. Só em março é detetado o primeiro caso fora da Ásia, em Toronto. Dia 12 de Março a OMS fez soar o primeiro alerta. Apesar dos 8439 casos detetados e das 812 mortes em 32 países e áreas, ao fim de 5 meses a situação ficou contida. “O vírus tinha outras características de transmissibilidade” que permitiram a contenção mais rápida. A aldeia global em que vivemos, atualmente, terá também contribuído para que agora a dissipação fosse mais rápida, mas o que contribuiu e muito, para a dificuldade de conter o vírus SARS-Cov-2, “foram os casos assintomáticos,” que fez com que a cadeia de transmissibilidade fosse mais difícil de detetar. A novidade da situação fazia com que os passos dados fossem curtos e nem sempre no período de tempo que a população queria, mas “enquanto médica tenho códigos de ética e deontologia que tenho de respeitar” e, por isso, todas as medidas que ecoava nas conferências de imprensa, “tinham de ter por base evidência científica.” As diretrizes vinham da OMS que se ia adaptando à medida que o conhecimento do que se estava a viver ia avançando. “Digam-me?”, perguntava à plateia de alunos que a ouvia, “quantas vezes se altera o tratamento de um doente desde a fase de diagnóstico e à medida que a doença evolui? Os tratamentos não são sempre os mesmos”, pois bem, aqui as cosias funcionaram de igual forma e, por todas estas contingências, esta foi “uma fase muito desafiante para mim, para as equipas da DGS e para os cidadãos, porque tivemos de responder em sociedade”.
Quem não se lembra de assistir diariamente às conferências de imprensa com os números da pandemia? Na primeira, logo após o encerramento das escolas, Graça Freitas conta que estava em casa de uma ex-interna que a ajudou com as novas tecnologias, “porque as reuniões eram online, estávamos todos dentro de quadradinhos nos écrans de computadores, e ela era mais info incluída do que eu”, acrescentando que, “nessa conferência os acessórios; brincos e colar, nem eram meus”. Impossível não reparar na sua imagem sempre impecável, não dispensando acessórios, nomeadamente, a pregadeira no casaco. Recentemente numa entrevista disse que algumas delas, eram enviadas por carta para a DGS por pessoas que a queriam presentear.
A única coisa boa da pandemia: “não haver trânsito”
Foi uma altura de correria em que enquanto os portugueses estavam confinados e a economia a meio gás, Graça Freitas tinha um cartão do Ministério da Saúde que lhe permitia circular livremente e se houve alguma coisa boa naquela altura, foi o “não haver trânsito” que lhe permitia deslocações rápidas, tal como o momento exigia.
Com Marta Temido: “tivemos uma relação de lealdade e confiança”
Alguns rostos vão ficar associados a este episódio da humanidade e é impossível não lhe perguntar pela relação com a então Ministra da Saúde, Marta Temido. “Acho que foi uma boa relação. Nós complementávamo-nos e tivemos uma relação de lealdade e confiança. Estivemos juntas tanto tempo que se não nos dessemos bem não tínhamos constituído uma equipa. Eu considero que o trabalho que fiz com a Ministra foi um bom trabalho em que ambas demos o nosso melhor para servir a população” e daqui ficará uma amizade para o futuro”.
Na aula, destacou ainda as alterações climáticas, que vão ser um desafio para as populações e para os cientistas. Estas mudanças vão levar ao aparecimento de novas doenças, ou ao ressurgimento de outras. A Malária é disso exemplo. As temperaturas mais quentes têm levado ao aparecimento de casos pontuais de Malária em diversos locais do mundo em que não era habitual. Há ainda o Mers-Cov, que tem como hospedeiro os camelos e que se transmite ao Ser Humano e que não tem tido forte expressão devido ao alto índice de letalidade. Mas é preciso estar vigilante.
Ainda as doenças reemergentes, como é o caso da Malária em Portugal e do Sarampo em alguns países. Falou da importância das vacinas no controlo das doenças e relembrou que em Portugal erradicou-se a Varíola graças à campanha de vacinação. Um Professor sentado na plateia relembrou ainda os grupos negacionistas e a importância de lidar com estes fenómenos. O papel da comunicação social e o tempo de antena dado a “especialistas” que discutem o tema baseados no “acho” e o reflexo que isso tem na opinião da população, foram temas debatidos durante a aula. Graça Freitas disse que o surgimento destes grupos é inevitável e que por isso “é importante a forma como se comunica junto da população.” O papel das equipas de comunicação, que nos ajudam a transmitir a mensagem de forma clara, objetiva e sem criar alarmismos é cada vez mais importante.”
Com um pé fora da DGS e outro prestes a entrar num período mais calmo, Graça Freitas diz para já “a primeira coisa a fazer é encerrar o ciclo, parar, ter tempo.” Quanto a planos, “faço muitos poucos”, e foi assim que terminámos a nossa conversa, mas não este texto.
No dia 17 de janeiro, foi agraciada pelo Presidente da República com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito, que destacou a sua dedicação à causa pública, sobretudo durante os anos da pandemia. "Uma capacidade para tudo aguentar quase sem limite. E era uma provação diária. Todos os dias, a horas que eram conhecidas - às vezes variavam para se ter os últimos dados da situação - os portugueses esperavam as notícias dadas pela Dra. Graça Freitas. Passou a ser um elemento da família, de todas as famílias portuguesas", disse o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, na cerimónia que decorreu no Palácio de Belém. Recordou ainda, “no momento em que se avizinha a sua saída da Função Pública, que não a sua saída da memória de todos nós, porque mesmo aqueles que a criticaram imenso, ou aproveitaram para fazer sobre si rábulas humorísticas, ou fizeram recair sobre si as suas indignações ou os seus cansaços, todos reconhecem que, no momento crucial, estava lá. Nunca se negou a dar a cara e isso tem de ser reconhecido", afirmou.
"É por isso que vou entregar-lhe as insígnias da grã-cruz da Ordem do Mérito, como agradecimento de Portugal, dos Portugueses, todos eles, por uma dedicação à causa pública de muitos anos, mas, sobretudo, uma dedicação em dois anos que valeram por uma eternidade", vincou Marcelo Rebelo de Sousa.
"Esta condecoração é uma honra e um privilégio que o Sr. Presidente da República me quis conceder. Estou muito grata", disse Graça Freitas durante o seu discurso.
Dora Estevens Guerreiro
Equipa Editorial
