Sabia que as doenças cardiovasculares são a primeira causa de morte em Portugal? No Dia Mundial do Coração fomos ao encontro de quem fintou as estatísticas e recebeu uma segunda oportunidade para completar esta prova de fundo que é a vida.
“Era uma bomba relógio”. É assim que se descreve Ariana Salvado, uma das mais de 100 pessoas que diariamente vêm até à Academia de Fitness do Estádio Universitário de Lisboa. O coração fê-las parar, mas, como num jogo, deu-lhe uma nova vida.
Foram internadas, operadas e agora são acompanhadas pelo Centro de Reabilitação Cardiovascular da Universidade de Lisboa (CRECUL), que reúne a força de profissionais de várias universidades e hospitais que abraçaram esta causa e em simultâneo doentes e famílias.
TRÊS FASES, MUITOS CORAÇÕES
A Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL), o Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN), a Faculdade de Motricidade Humana (FMH) e o Estádio Universitário de Lisboa são as três instituições que canalizam energias para a reabilitação dos doentes, suportando um programa de reabilitação cardiovascular, composto por três fases, certificado pela Associação Europeia de Cardiologia Preventiva e Sociedade Europeia de Cardiologia.
A reabilitação cardíaca é um processo. A primeira fase inclui cardiologistas, fisiatras, enfermeiros de reabilitação, fisioterapeutas, nutricionistas e psicólogos, que tratam o doente ainda durante a hospitalização. A segunda fase dura cerca de três meses, no Hospital Pulido Valente, e junta outros especialistas à equipa, como diabetologistas, fisiologistas do exercício, técnicos de cardiopneumologia. Na derradeira etapa, os doentes saem do meio hospitalar e vêm para a comunidade, onde beneficiam de um programa e de uma equipa que se empenha para reduzir o risco de futuros eventos cardiovasculares e aumentar a qualidade de vida dos doentes.
UM DOUTORAMENTO QUE SAIU DO PAPEL
Esta última fase resultou de uma tese de Doutoramento de Rita Pinto e do colega Vítor Angarten, que foi implementada no terreno em 2016 e tem vindo a crescer.
Rita Pinto é nossa Professora, acumulando funções de investigadora auxiliar convidada num projecto europeu com Ana Abreu, cardiologista e coordenadora do Centro de Reabilitação Cardiovascular do CHLN/FMUL.
“É extremamente gratificante”, porque “há projetos de doutoramento que são feitos naquela altura e depois terminam”, mas este saiu do papel e cresceu. Começou com 5 doentes em 2016 e hoje dá esperança de uma nova vida a mais de 100 pessoas, entre os 32 e os 87 anos.
“Uma das minhas funções é fazer pontes. Sou o elemento mais solto que faz a ligação entre a parte hospitalar, a faculdade e aqui o nosso programa. Todas as terças tenho uma reunião multidisciplinar às 08h no Pulido Valente, que envolve todas as fases e trago informações clínicas de futuros doentes que vão para a nossa fase 3.
OS DOENTES A ENCORAJAR OS PROFISSIONAIS
Quando chegam a esta terceira fase, são acompanhados de perto por uma equipa multidisciplinar, que inclui a Madalena Lemos Pires, a Mariana Borges e o Gonçalo Sá, como fisiologistas do exercício, e investigadores do Centro Cardiovascular da Universidade de Lisboa (CCUL) , a Mariana Pinto, nutricionista do Laboratório de Nutrição da FMUL, Ana Nunes, técnica de cardiopneumologia e Ana Luísa Monteiro, fisioterapeuta e investigadora.
São eles que os acompanham nas avaliações, nas aulas de grupo e no ginásio, no Estádio Universitário de Lisboa, onde a cada dia se acrescentam vitórias individuais e se revela um pouco mais da história de cada um.
É lá também que a fisioterapeuta Ana Luísa Monteiro lhes dá aulas de meditação, onde alguns encontraram uma nova forma de estar na vida.
“Em termos fisiológicos, ajuda a harmonizar o sistema nervoso autónomo, a repor a homeostasia interna do cérebro, que é fundamental nas pessoas com fatores de risco graves ou que já tiveram um episódio cardiovascular”, explica. Mas há mais ganhos. “Ao nível emocional e psicológico a meditação ajuda a controlar a respiração, essencial para reduzir a ansiedade e estados depressivos”, continua a terapeuta.
“No estudo que fizemos e que levou à introdução da meditação no CRECUL mostraram resultados incríveis ao nível do controlo da diminuição da ansiedade e do stress e principalmente do aumento da qualidade de vida.
“Está descrito na literatura”, mas acabou por ser uma surpresa, admite. “Estava tão focada na ansiedade, no stress e na depressão, que não estava à espera de resultados tão bons no aumento da qualidade de vida daqueles 50 doentes. E O feedback das pessoas foi mais encorajador ainda”.
TEMOS DE ACREDITAR EM ALGO. ANTÓNIO ESCOLHEU A CIÊNCIA
Foi nestas aulas silenciosas que encontrámos Eduardo Bandeira, que com a meditação conseguiu “melhorias substanciais na qualidade do sono” e na forma como lida com as contrariedades da vida “.
Foi operado às coronárias e fez dois bypass porque “estava completamente entupido e não sabia”, brinca. Desmaiou numa viagem a Cuba, teve um episódio de uma dor forte no peito em Espanha, mas foi “uma dorzinha que sentia quando ia passear o cão à rua” que o deixou desconfiado. “Fui fazer uma prova de esforço e um cateterismo e já não saí do hospital, era um perigo andar na rua”. Começou o programa ainda durante o isolamento pela Covid-19 e está dentro da garantia, como brinca o colega António Oliveira.
“Para se mudar o comportamento temos de acreditar em algo, acrescenta António, assumindo que depois dos erros que cometeu, fumando e bebendo o seu copo, escolheu acreditar na ciência. “Vou tentar ajudar-me a mim próprio”.
DESAPARECI DA VIDA DELE
Ariana Salvado, a tal bomba relógio que nos emprestou as suas palavras para começar o texto, faz parte do grupo que quis escolher apaixonar-se pelo seu coração, mesmo depois de ele lhe ter pregado uma partida.
Nascida em Angola e criada no frio da Serra da Estrela, veio para Lisboa trabalhava na limpeza de oito casas. Fumava, tinha o colesterol alto e nem parava para comer. Mas um enfarte fê-la parar. “Até a respirar tive de reaprender”.
Confessa que “há sempre uma nuvem aqui por cima”. O medo de voltar a acontecer, ainda por cima com uma mãe e um irmão, levados por problemas cardíacos.
Além disso, é difícil de aceitar o cansaço físico, especialmente quando “já se trabalhou 12 horas por dia”. Mas ter de deixar o seu menino foi o grande desgosto. “Estive de férias, fui trabalhar dois dias e tive um enfarte. Desapareci da vida dele. Ele não entende o que aconteceu”, explica, em voz baixa, quase sussurrada, o menino chama-se Joaquim tinha dois anos e chamava Titi à Ariana, que era quem tomava conta dele na “casa dos patrões”.
Foi seguida por uma psicóloga na Fase 2 do Pulido Valente, que a acompanhou nos piores momentos e, apesar de ser muito nova, "criou-se uma ligação muito forte”. DAtualmente faz também meditação como complemento. É uma das mais recentes participantes que chegou à Fase 3, tem um longo caminho e muita coisa para recuperar, mas um espírito de guerreira que não deixa margem para dúvidas, ainda que não saiba. “Comecei a trabalhar aos 12 anos e carreguei com muita lenha às costas”, atira, junto das fisiologistas que trata por ´meus amores`.
Elas e todos os outros profissionais do Centro de Reabilitação Cardiovascular do CHULN/FMUL/CRECUL estão cá para aliviar o peso, dissipar nuvens e dar a tão desejada segunda oportunidade a quem prometer amar de verdade o seu coração.
Margarida Leal
Equipa Editorial