Recordo a manhã em que a encontrei ao acaso, na sala de matrículas. Cabelo ruivo e pele muito branquinha, as sardas pintadas a detalhe preenchiam-lhe o nariz. Resguardada, não duvidou por um segundo em colaborar quando lhe pedi um breve testemunho sobre a expectativa para entrar em Ciências da Nutrição. A licenciatura nascia com o primeiro grupo de 30 alunos e a Victoria Stosberg era uma das grandes pioneiras.
Nunca mais a perdi de vista, doce e determinada, de educação e regras, a sensibilidade foi-lhe aperfeiçoando a forma de estar na vida, dotando-a para aceitar as consequências que o tempo traz.
Sobre o que mudou nestes quatro anos de convivência comum, diz a sorrir que está agora licenciada, mas por detrás da imediata simplicidade e objetividade, há uma história a contar que a levaria a tomar decisões mais profundas que as iniciais. Os traços germânicos são mais do que físicos, morais também, pela forma como contém as emoções, tendo-as, no entanto, não as revela de ânimo leve, até porque a exposição privada e os afetos não se dão sem que saiba quem tem diante dela.
A sua grande preocupação é atingir uma rápida independência financeira, não porque se queira distanciar da família, bem pelo contrário, quer demonstrar que aprendeu a arte de saber usar a cana de pesca para poder pescar sozinha.
Foi a cara escolhida para representar a Nutrição na Faculdade de Medicina, levando a todos a mensagem que chegamos onde escolhemos estar. Depois de quatro anos cumpridos, encontrei-a novamente numa manhã de fugida entre horas a cumprir.
Menina independente que sempre quis crescer e cumprir ciclos sem demasiadas ajudas, emociona-se quando recordamos o processo feito que passou tão intenso quanto rasante de emoções. Recatada nas palavras pensa bem até onde deve exprimir o que sente e o que foram os seus quatro anos de desenvolvimento pessoal e profissional. A Victoria não fez apenas uma formação superior, mudou na sua forma de vida, mas a essa já lá vamos. Mudou igualmente no processo de aprendizagem para o ensino convencional português. Tendo estudado toda a sua vida e até então no Colégio Alemão de Lisboa e sem quaisquer comparações culturais, considera importante a aprendizagem teórica, mas não só, com igual peso a prestação mais espontânea. Defende que a componente oral é a experiência vivida e que muito revela sobre a interação da pessoa com o outro. "Saímos muito bem preparados de aprendizagem teórica, mas seria importante avaliar a componente comportamental e oral. É igualmente importante avaliar a nossa interação com o outro, porque vamos conviver e tratar pessoas", fundamentava. Foram precisamente as pessoas que a tocaram de forma inesperada. As que preencheram diversos momentos dos quatro anos do caminho académico, mas também as suas pessoas, as da família.
Com ela trazia um saco de pano do Campus Neurológico Sénior. O pormenor do saco não é em vão, remete o pensamento para quando a encontrei no começo do ano letivo, no exterior entre edifícios da Faculdade. Mesmo a correr para chegar a horas de manhã, chamou-me com o sorriso que lhe é habitual.
Nessa altura entendi duas coisas sobre a Victoria. Que tinha crescido e que acabavam de passar quatro anos por nós. Entendi ainda que se tinha confrontado com uma grande perda, situação que a faria olhar para o envelhecimento humano não como um peso, mas um ritual de cuidado e respeito, do qual passaria para sempre a fazer parte. Com a dor dela inerente associada. Em poucos meses perdia os avós paternos.
Fruto do acaso, ou não, surgia um estágio obrigatório de quatro meses de fim de curso, que assumia assim mais relevância pessoal do que apenas um caminho profissional obrigatório a todos. Dos acasos que todos combinados em nada são acasos, a Victoria optava assim por ir todos os dias para Torres Vedras, para o Centro Neurológico de um dos Professores da Faculdade de Medicina, o Prof. Joaquim Ferreira e onde a sua orientadora de estágio, Nutricionista, Diana Miranda, exerce atividade. Aliado ao estágio, havia o sonho de começar a aprender as técnicas para um projeto futuro seu tão desejado, na área das Doenças Neurológicas e com foco nas demências. Sonho posto em prática, escolheu o Campus por ser o lugar de referência e onde iria aprender ainda mais sobre o cuidado pelos mais velhos.
Nesse estágio onde ficou diariamente, na clínica de reabitação neurológica, especializada nas Doenças de Parkinson e Alzheimer (assim como outras Neurológicas), conheceu as consultas de diferentes áreas médicas, entendendo que se fazia um ajuste terapêutico ou de reabilitação. Conheceu ainda o internamento, também ele com várias especialidades médicas e onde os doentes encontram diversos caminhos como a terapia da fala, a ocupacional, ou a fisioterapia. "Áreas cuja importância eu desconhecia e bastou-me chegar ali e ver o trabalho de equipa", conta.
“Sorte”, caracteriza a Victoria quando descreve a panóplia de áreas que em conjunto se revelaram eficazes e multidisciplinares para a recuperação dos doentes. A Nutrição não é de somenos importância, aprendeu que é possível travar significativamente a evolução da doença neurológica através da terapia nutricional. "Há perdas de peso muito acentuadas, porque as pessoas deixam de comer, não tomam medicação porque têm dificuldade na deglutição e a nutrição ajuda". Aprendeu sobre a eficácia das soluções alimentares, ou por substituição de alimentos, ou alteração da via de alimentação, como por exemplo, a via entérica. Passava assim a falar-me em acessos pelo estômago e em gastrostomias, abordagens subitamente nada estranhas à menina de sardas de sorriso escondido.
Do mau estado na chegada de um doente tornava-se um alívio dar novas abordagens, "para ele, bem como para a família que também ela não sabe como cuidar do seu ente próximo".
A falta de alimentação e a deterioração do estado geral dos doentes assumiam a maior predominância nas suas descrições. Não era somente alguma necessidade de falar sobre o tema, era a sensibilidade de poder cuidar de alguém, sabendo dos casos em que o desconhecimento pode piorar o estado nutricional do doente e o emocional dos familiares.
Faz-me uma viagem descritiva da residência sénior que integra o campus. Lugar de bem-estar que alivia o peso da doença e a sombra da vulnerabilidade física, talvez a própria Victoria sentisse que podia ajudar nos cuidados aos mais frágeis.
Contida no balanço entre a saudade e alguma tristeza associada à perda, e pela incapacidade de ajudar os avós, a Victoria não mo disse, mas fez deste estágio uma missão de expiação da sua dor, transferindo para alguém aquilo que o conhecimento não lhe permitiu dar aos avós uns meses antes.
O próximo passo, a iniciar em setembro, será fazer um estágio de seis meses à Ordem dos Nutricionistas, de modo a garantir que pode, então sim, ser Nutricionista. Não sem antes passar por um relatório final, seguido de uma Prova de Deontologia e Ética. O local do estágio estará traçado, mas a Victoria aprendeu, desde há uns tempos, que o melhor é esperar para ver mesmo acontecer. Sobre o que passou diz que entre amigos de curso refletem que "estes quatro anos de licenciatura mais pareceram um mestrado integrado e uma pós-graduação", pela diversidade de conteúdo e abordagens a áreas diferentes, bagagem densa a reter e que a todos exigiu muito trabalho.
Sendo a primeira leva do ano que agora termina sente-se honrada por isso, qual "ratinho de laboratório" como a própria se descreve para fazer a analogia entre os primeiros 30 jovens estudantes que tanto têm a descrever da sua formação. Sinal de adaptabilidade e vontade de aperfeiçoamento serão igualmente estes que vão fazer uma análise sobre os pontos fortes e a melhorar para o futuro, sendo alguns já implementados a partir de setembro. "É muito bom a Faculdade pedir o feedback aos alunos. É um lugar onde todos querem que tudo corra bem, a Instituição, alunos e Professores":
Sem se deixar amedrontar por ter estudado integrada num hospital, revê a situação como benéfica, uma vez que são vários aqueles que querem seguir uma vertente mais clínica.
"Este ambiente de azáfama de médicos, enfermeiros e auxiliares a passar pelo corredor todos os dias, dá-nos o quadro real do que nos espera em breve".
Num futuro próximo a Victoria encontrar-se-á numa empresa cujos valores sejam semelhantes aos dela, talvez amostra de vida já vivida em relação à perda dos avós, diz de forma branda que não faz muitos planos porque o melhor é que cada um se saiba adaptar à medida da realidade e das oportunidades. E apesar de ver muitos amigos a ir trabalhar para fora, não se vê a viver longe dos pais, nem do país, "quero os meus pais perto e não vir de visita e vê-los a fugir".
Um dia, mais tarde, sonha pelo seu próprio projeto numa área mais clínica, ou comunitária. Até lá vai cumprindo as metas e as regras para chegar onde os passos a levem, com mais ou menos alento, mas sempre com a força de vontade de mudar, nem que seja por uma hora, o bem-estar dos outros.
A primeira entrevista onde a conhecemos, aqui.
Joana Sousa
Equipa Editorial