O primeiro dia em que nos conhecemos, a Victoria estava sentada entre dezenas de alunos que aguardavam a sua vez para se matricularem na licenciatura de Ciências da Nutrição. O cabelo ruivo e os traços finos chamavam a atenção, mas principalmente a expressão tão tranquila e segura quanto discreta, faziam notar que teria um interesse especial.
Stosberg é o seu último apelido, herança do pai, alemão, no entanto já nascido em Portugal. Victoria diz que é metade alemã, metade portuguesa já que a nacionalidade da mãe tem 100% de raízes lusitanas. Ela e os dois irmãos seguiram os mesmos métodos de educação aplicados ao pai, estudando sempre na Escola Alemã. Com os avós paternos de origens germânicas e com a escola sempre a fomentar o contacto com o mesmo país, Victoria sabia que mais tarde ou mais cedo surgiria a oportunidade de mostrar que estava a crescer e a construir, mesmo sendo menor de idade, o seu próprio caminho independente dos pais. O primeiro passo além das suas fronteiras familiares foi aos 15 anos, quando decidiu ir para a Alemanha. Aí estagiou num laboratório de controlo de qualidade de alimentos e cosméticos. Durante duas semanas aprendeu como era viver sozinha, num país que não era o seu e, apesar do domínio da língua, o contacto direto com a realidade é sempre diferente daquele que apreendido na escola.
A ligação à Alemanha viria a manter-se, numa fase seguinte para conhecer parte da História daquele país, algo que descreve como experiência "pesada", uma vez que foram confrontados com diversas informações sobre a 2ª Guerra Mundial. Conseguiu desligar o botão da Alemanha do passado e regressar à atual, da modernidade e das oportunidades, onde se aprende cada regra com máximo rigor. Propôs-se a novo estágio, desta vez na Baviera, com um Pediatra de Neonatologia. Por lá ficou mais duas semanas, observou tudo, mais do que aquilo que conseguiu ajudar, retirou algo como certo, "ser médica não era para ela".
Regressaria a Portugal para se formar academicamente. Prolongar a sua presença na Alemanha para tirar uma licenciatura não lhe passava pela cabeça porque é a mais velha de três irmãos e parecia-lhe lógico que os pais não poderiam ser sobrecarregados pelos seus objetivos estudantis. Ainda assim é certo que fará Erasmus ou Mestrado fora.
Aluna do 2º ano de Ciências da Nutrição, frequenta ainda o curso ‘Fazer da Cozinha uma Farmácia’, um curso que alternando aulas teóricas com Gabriel Mateus, mestre em Nutrição Clínica, e práticas, com o chef Diogo Noronha, demonstra a influência da alimentação na saúde e a mesma como medida de prevenção e tratamento de doenças. Tem particular respeito por tudo o que envolva a alimentação e o seu impacto ambiental e apesar de não ser extremista quanto ao consumo da carne, defende uma sustentabilidade mais responsável e consciente por parte da humanidade. Afirma que é possível saborear alimentos ótimos e sem derivação animal, aprendendo a mudar os hábitos básicos alimentares. Mas é normal que a Victoria assim entenda as coisas já que tem mão para a cozinha e é apaixonada pelo paladar e olha para a alimentação quase como um culto e sentido de respeito. Começou por se apurar a fazer bolos, perita que já estava, seguiu para os salgados e agora em definitivo, assume outros patamares defendendo também opções vegetarianas.
Uma das protagonistas do vídeo institucional da Faculdade, decidimos dar igual foco à formação em Ciências da Nutrição e perceber quem é aquela menina bonita que afinal todos já parecem ter visto por ali.
É preciso alguma coragem para mudar de país, mesmo que seja por duas semanas, quando temos apenas 15 anos.
Victoria: É sim! Os meus pais foram lá levar-me, aluguei uma casa de uma senhora que era mãe de uma pessoa que trabalhava no laboratório de cosmética, ela acertou um preço especial para mim e eu fiquei. Mas logo após isso fiquei completamente sozinha.
Como é que foi essa primeira noite em que te viste na tua nova casa?
Victoria: Foi estranha. Cheguei a casa depois do trabalho e não sabia o que fazer. Fui espreitar a televisão e cozinhei. Mas depois com o passar dos dias, e como estávamos no Europeu de 2016, ia dar um jogo da Alemanha contra outro país. Então lembrei-me de convidar a senhora que me tinha alugado a casa para ver o jogo comigo. A partir daí combinávamos ver os jogos do Europeu, ou na casa de uma ou da outra. Foi assim que o tempo passou a correr, até porque percebi que gostava imenso daquela área de bioquímica que estava a aprender no laboratório.
No segundo estágio contactas com a Pediatria e dizes que é aí que concluis que ser médica estava descartada das tuas opções. Porquê?
Victoria: Senti que os médicos não têm assim tanto contacto com os doentes como eu esperava. Quem tem o verdadeiro contacto, pelo menos naquela área da Neonatologia, em que cuidam e tratam, são as enfermeiras. O médico só ia uma vez por dia e fazia apenas perguntas, sem ter grande contacto ou toque com o bebé. Fiquei dececionada, porque afinal tinha criado uma imagem que era irreal.
Isso quer dizer que ponderaste ser médica. Como é que mudas o teu foco para outro lado?
Victoria: Medicina era uma ideia muito presente porque na família da minha mãe são todos médicos, exceto a minha mãe. Mas também as minhas notas não eram as suficientes para entrar em Portugal e eu queria muito manter-me no meu país. Equacionei, então, enfermagem, mas rapidamente disse que não, porque tenho ambições mais altas, quero ser independente no próprio mercado de trabalho.
E é quando te deparas com a abertura desta licenciatura.
Victoria: Este curso caiu na altura certa quando procurava as opções possíveis. Mal vi esta licenciatura pensei, "é isto!". Ao início causou estranheza aos meus pais que acharam que viria a ser nutricionista num qualquer negócio que nunca me permitiria crescer por mim. Mas perceberam que tenho outras ambições e que há outras soluções.
Como é que fazes o ponto de equilíbrio de alguém que está a fazer uma licenciatura em Ciências da Nutrição e que tem bases iniciais iguais ao curso de Medicina e as conjugas com um curso que defende que nem sempre a ciência é a primeira opção da cura e que a resposta pode estar na reformulação dos alimentos ingeridos?
Victoria: Acredito que a origem das doenças não é exclusivamente genética, vem também entre outros fatores ambientais pela má alimentação. É um misto de fatores que podem ser, mais ou menos, despoletados consoante o perfil de cada pessoa. Agora, claro, que se não fumarmos, se formos fisicamente ativos, se nos alimentarmos de forma equilibrada e com consciência, já contribuímos muito para a nossa saúde. Eu acho que o que falta ainda muito é a consciência. Dou um exemplo, hoje vou comer um bife porque me apetece mesmo muito, mas não o devo comer todos os dias e opto por reduzir o consumo de carne e aumentar o de vegetais nos dias a seguir. Só aqui já há um ponto de equilíbrio. Depois falta a consciência coletiva, a produção de carne tem muito mais impacto ambiental do que o consumo de ervilhas, por exemplo. E a falta de consciência diz respeito à falta de conhecimento. Eu faço esse balanço, informo-me por tudo aquilo que estou a estudar em simultâneo. Mas até para quem estuda é um desafio, temos que nos informar todos os dias e ter sentido crítico.
Estás ainda a começar o 2º ano e esperam-te mais etapas. Mas parece-me que tens em mente um projeto profissional teu quando te formares.
Victoria: Quero ser independente. Ter o meu negócio e ser capaz de gerir a minha carreira à minha maneira. Gostaria de não ter de ficar dependente de um hospital, instituição, ou clínica, quem sabe ter a minha própria clínica, com outros profissionais de saúde.
É curioso esse teu sentido de liberdade, independência, porque na verdade é isso que queres ser diante dos teus próprios pais, não porque gostes menos deles, mas porque queres gerir tu o caminho, aliviando os outros. Aprendizagens mais germânicas, não?
Victoria: Eu sou muito assim. Eu trabalho como hospedeira em eventos, dou explicações de matemática todas as semanas, faço baby sitting. É a minha forma de poupar e comprar o que quero, e evitar pedir para além da mesada.
Calculo que nenhum deles te tenha dito que não te podia ou queria ajudar.
Victoria: Ninguém! A minha mãe quando me vê a trabalhar pergunta se o problema está na mesada e se é preciso aumentar. Mas não é isso. Eu quero tentar ser o mais autónoma possível. Esta minha atitude já tem origem detrás. O meu avô é o típico alemão austero, ele nunca deu nada ao meu pai sem que ele desse o devido valor, ou seja, tinha que dar algo de volta. O meu pai começou a trabalhar aos 18 anos, mal tirou a carta, fazia entregas para o meu avô e ele pagava ao quilómetro.
Essa disciplina extrema passou para vocês?
Victoria: Não, apesar de o meu pai ter crescido imenso com estas regras, isso marcou-o de alguma forma. Então, não fez nunca o mesmo connosco, por ele dá-nos tudo, mas sempre com o sentido que temos de fazer por merecer e ter responsabilidade diante dos desafios.
O que te esperam nestes próximos dois anos de curso? Manténs-te convicta do caminho?
Victoria: Este 2º ano está a mostrar-se mais complicado ao início, mas é normal e vai ser sempre normal que aumente o grau de dificuldade, mas a questão é estar envolvida em tantas coisas ao mesmo tempo. Preciso de entrar no meu tempo e de aprender a geri-lo muito bem e ainda não o fiz totalmente. Para arrancar a sério tem que se colocar todo o empenho.
Quando recebeste o convite para fazer parte do institucional da Faculdade, porque é que o aceitaste na hora?
Victoria: Pensei "uau, lembraram-se de mim, se calhar gostaram de mim e querem-me naquele vídeo". Tive noção que podiam ter ligado a 300 alunos x 6 anos, no mínimo, e eu fui uma das escolhidas. Então era uma oportunidade que não podia deixar escapar. Aceitei, apesar de ter essa semana inteira marcada de férias, então negociei gravar tudo num só dia, vim de manhã e regressei à tarde. Acho que o vídeo ficou espetacular e a equipa era extraordinária e muito profissional e objetiva, guiaram-me muito bem e nunca me senti mal, nem inibida. Estou orgulhosa deste produto final!
Por várias vezes a Victoria foi contactada para pertencer a agências de modelos para fazer publicidade, ou sessões fotográficas, mas o pai nunca deixou. Não enquanto a filha fosse menor. Com o passar do tempo a própria decidiu que não estava disposta a expor-se e hoje não lamenta as limitações traçadas pelo pai. A ele e à mãe está ligada de diversas formas que um dia, mais tarde, se podem vir ainda a unir mais. Empresário na área de non food catering (tudo o que está relacionado para comer sem ser comida), o pai é o detentor do negócio e a mãe faz a gestão financeira de tudo.
Mas há outras ligações que a acompanham e que a explicam como pessoa. O avô materno foi médico e a avó enfermeira. Victoria já perdeu os dois, mas recorda bem que no funeral do avô quase toda a população de Sever do Vouga apareceu para homenagear a bondade do médico que sempre se dedicara a ajudar todos, mesmo quando não podiam pagar para serem tratados.
O altruísmo parece ser coisa que se herda, no pouco espaço que lhe cabia ainda na agenda descobriu forma de começar a fazer voluntariado na Associação dos Amigos do Hospital de Santa Maria, assumindo um compromisso de 4 horas semanais. Na sua noção de mundo sem fronteiras, entende que se é feliz e se teve sorte na vida por ter uma família que sempre a protegeu e amou, agora cabe-lhe a ela "dar um bocadinho aos outros, seja amor, ou atenção, porque na verdade é uma obrigação que toda a humanidade tem".
Joana Sousa
Equipa Editorial