“Entre 2018 e 2019 biénio, segundo o registo nacional de malformações congénitas, foram registadas 140 malformações por cada 100.000 nascimentos. Após o diagnóstico de uma malformação fetal grave, 32,3% dos progenitores optou por uma interrupção médica da gravidez, em 1,4% ocorreu uma morte fetal e em 0,4% um aborto espontâneo.” Quem refere estes dados é a Dra. Susana Santo, assistente Hospitalar Graduada de Ginecologia e Obstetrícia do CHULN, responsável da Consulta de Medicina Fetal e da Urgência de Obstetrícia e Ginecologia do CHULN e ainda Professora auxiliar da Faculdade de Medicina de Lisboa. Habituada a lidar com situações complicadas diz, “a interrupção médica da gravidez é uma realidade que muitos casais enfrentam nos cuidados de saúde obstétricos” e é certamente por isso, que escolheu o título – em cima - para esta entrevista. Susana Santo é ainda colaboradora da Direção Geral da Saúde, membro da direção da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal e tem como áreas de interesse medicina fetal, ecografia obstétrica, parto.
Em que condições pode ser realizada uma interrupção da gravidez?
Susana Santo: Em Portugal a interrupção médica da gravidez pode ser realizada entre as 11 e as 24 semanas de gestação se se verificarem uma das situações, previstas nas quatro alíneas do artigo 142º do código penal.
Grávida em que a interrupção constitui o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica; Se evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida (até 12 semanas de gestação); Seguros motivos de que o nascituro venha a sofrer de forma incurável de doença grave ou malformação congénita (se feto inviável a interrupção da gravidez pode ser realizada em qualquer momento da gestação);
A gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade autodeterminação sexual e a interrupção (até às 16 semanas de gestação).
Existem muitos casos em que os casais são confrontados com um diagnóstico que põe em causa a saúde e o bem-estar do bebé?
Susana Santo: Como responsável da Consulta de Medicina Fetal, do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, acompanho muitas grávidas que são confrontadas com a difícil decisão de prosseguir ou não com a gravidez, face a um diagnóstico de uma condição fetal incurável/ inviável.
Em que moldes funciona esta consulta?
Susana Santo: Esta consulta integra uma equipa de 4 profissionais: Professora Joana Barros, Drª Maria Afonso e o Professor José Carlos Ferreira. Trabalhamos em equipa multidisciplinar com os elementos da Unidade de Ecografia Obstétrica, da Cardiologia Pediátrica, da Genética, da Neonatologia, da Radiologia, da Medicina Intensiva Pediátrica, da Cirurgia Pediátrica, da Neuropediatria, da Cirurgia Plástica, da Ortopedia, da Psicologia e dos Cuidados Paliativos Perinatais.
Quais as situações mais frequentes?
Susana Santo: As situações fetais, que motivam mais frequentemente uma interrupção da gravidez no segundo trimestre são as malformações congénitas, as doenças genéticas, a restrição de crescimento fetal grave, as infeções congénitas e a rotura prematura de membranas pré-viabilidade. As situações maternas são diversas incluindo doenças que estão relacionadas com a gravidez, com a pré-eclâmpsia, o síndrome HELLP ou patologia pré-existente da grávida como as cardiopatias ou a doença renal grave.
Algumas condições da grávida conferem maior risco de patologia fetal como a idade (maior risco de aneuploidias como trissomia 21), a diabetes Mellitus prévia à gravidez (maior risco de cardiopatias), doenças genéticas familiares (drepanocitose, fibrose quística), doença hipertensiva/ renal mal controlada (maior risco de restrição crescimento fetal). Na maioria das malformações congénitas ou de aneuploidias, como a trissomia 21, 18 e 13, são situações esporádicas com baixo risco de repetição numa gestação futura.
Como é que dado um diagnóstico assim?
Susana Santo: Quando os progenitores são confrontados com uma situação destas, procuramos explicar de forma detalhada os achados ecográficos ou de outros exames complementares. É crucial que a informação seja clara e que o prognóstico seja definido. Consoante a situação em causa, envolvemos os elementos da equipa multidisciplinar necessários para a melhor caracterização da condição fetal.
Como é que os pais recebem/ lidam com esta notícia?
Susana Santo: A comunicação de que “algo não está bem”, de que o feto tem uma condição grave, é geralmente recebida com sentimentos de grande angústia, desespero, medo, culpa... A grávida perde “a esperança”, sente que fica “sem chão”, e os profissionais de saúde envolvidos têm de estar preparados para este tipo de aconselhamento pré-natal. É ainda crucial apoiar os progenitores nestes momentos tão difíceis, não esquecendo o enquadramento familiar, religioso e cultural de cada um. Na maioria das vezes, a situação carece de mais de uma consulta e da realização de mais exames complementares para a sua completa caracterização. Os casais estão sempre muito ansiosos por realizarem toda a investigação num curto espaço de tempo. Na consulta de medicina fetal do CHULN, tentamos agilizar tudo no menor intervalo de tempo possível, mas existem tempos que não conseguimos encurtar: os testes genéticos podem levar 10 dias ou mesmo 3 semanas, dependendo do teste em causa.
É necessário reunir informação e voltar a fazer um ponto da situação?
Susana Santo: Sim, e eventualmente redefinir o prognóstico. Frequentemente os progenitores necessitam de tempo para refletir. É preciso dar o espaço e o tempo que precisam. O médico não deve substituir a grávida na tomada de decisão, porque são decisões que se levam para o resto da vida.
Na sua opinião qual o papel do médico?
Susana Santo: O nosso papel é aconselhar e em última análise capacitar os progenitores para a escolha de um caminho. E depois disponibilizar a nossa ajuda e o nosso apoio seja qual for a sua decisão.
Há mães e pais que decidem prosseguir com a gravidez. O que se faz nessas situações?
Susana Santo: Se a decisão for prosseguir com a gestação e se por exemplo estivermos perante uma situação inviável (como a agenésia renal bilateral), devemos definir um plano de vigilância da gravidez e do parto. Propomos a realização de uma conferência familiar com a equipa de cuidados paliativos perinatais, para definição de um plano de cuidados pós-natal.
Em caso de morte fetal quais são os cuidados a ter?
Susana Santo: Antecipamos também momentos difíceis como seja os procedimentos face à morte fetal e que incluem expressão de vontade de ver e estar com o bebé, saber se escolheram um nome para o bebé, se pretendem a realização de uma caixa de memórias (com por exemplo impressão da mão/ pé em cartão), disponibilizamos apoio psicológico, antecipamos as condições de internamento e a possibilidade da presença de acompanhante. Tentamos respeitar, dentro do possível, os desejos expressos pelos progenitores. Todos estes pontos são aspetos críticos no processo de luto que os progenitores irão vivenciar.
Quais os procedimentos quando se avança pela interrupção da gravidez?
Susana Santo: Caso a opção seja de não prosseguir a gestação é necessário explicar todo o processo. Os progenitores necessitam de efetuar um pedido a uma comissão técnica local de interrupção da gravidez que certifica que a sua situação está prevista no artigo 142º do código penal. Posteriormente é preciso aferir a necessidade de induzir a morte fetal in útero (em gestações com mais de 22 semanas) para evitar o nascimento de um nado vivo. Finalmente é agendada, em regime de internamento, a interrupção médica da gravidez propriamente dita. Esta inclui a administração de fármacos que antagonizam a progesterona (mifepristone) e que promovem a dilatação do colo do útero (misoprostol), com consequente expulsão do produto de conceção. Se a expulsão deste não for completa pode ser necessário realizar um esvaziamento uterino cirúrgico, sob analgesia. Também nesta opção é dada a possibilidade de ver o feto, de realizar uma caixa de memórias, tal como já foi referido anteriormente. A grávida geralmente tem alta nas 24h seguintes à expulsão, podendo necessário proceder à ablatação.
É um processo doloroso sobretudo do ponto de vista psicológico…
Susana Santo: Por isso, durante o internamento é oferecida a possibilidade de apoio psicológico/ psiquiátrico, sendo fundamental que a grávida possa estar acompanhada de pessoas significativas que a ajudem a viver este momento.
É também preciso preparar o regresso a casa e lidar com o ninho que fica vazio. Finalmente deve ser agendada uma consulta após 4 semanas após o procedimento, podendo ser antecipada caso seja necessário.
Como é que se lida com estas situações de sofrimento?
Susana Santo: Não existem duas grávidas iguais, cada caso é único e muito particular. Guardo muitas destas situações comigo. Nem sempre é fácil, porque em Obstetrícia lidamos mais frequentemente com a Vida do que com a morte. Move-me a possibilidade de poder ajudar as grávidas em momentos tão difíceis como estes e de, em alguns casos, acompanhar uma nova gestação com um bom desfecho.
Há uma luta contra o relógio para diagnosticar as situações atempadamente?
Susana Santo: a equipa da Consulta de Medicina Fetal do CHULN luta diariamente contra o tempo para conseguir agendar as consultas e os exames necessários, porque uma vez ultrapassadas as 25 semanas, a grávida que é confrontada com um diagnóstico fetal grave não letal não pode aceder a uma interrupção de gravidez. A lei está desajustada aos avanços da medicina fetal nos últimos 20 anos, não sendo possível por vezes concluir a investigação médica em tempo útil ou proceder a uma reavaliação ecográfica para aferição da evolução da condição fetal. Por outro lado, existe patologia fetal grave, com prognóstico muito limitado, que é apenas diagnosticada no 3º trimestre da gestação e nessa altura o que podemos oferecer às grávidas é muito limitado. E qualquer uma das circunstâncias em que uma grávida não leva um bebé para casa, um filho será sempre um filho, que nunca se esquece, esteja ele onde estiver, e isto não se pode esquecer na prática clínica em medicina fetal.
Dora Estevens Guerreiro
Equipa Editorial