Tínhamos combinado esta entrevista já há algum tempo, quando manifestei interesse para assistir a uma intervenção da Articulação Temporomandibular. Estava longe de imaginar a diversidade de respostas clínicas que ia encontrar através do Prof. Dr. David Ângelo.
Chegada à entrevista, deparei-me com uma sala de espera que podia facilmente ser confundida com a de uma sala de um hotel de 5 estrelas, em pleno coração de Lisboa. De hotel nada tinha, apenas a vista do 5º andar direta para o Sheraton. Sofás aveludados de um azul verde água e o cheiro a perfume de aromas que podiam ter-se soltado de um frasco partido do melhor aroma de sempre. Decoração meticulosamente pensada, assim como as fardas da equipa do Instituto privado, onde David Ângelo partilha sociedade com o médico espanhol David Sanz.
Foi num estágio de cirurgia maxilofacial em Coimbra que os dois Davides se conheceram e logo ficaram amigos. Desde esse tempo que, cada vez que um deles fazia cirurgias pelo privado, desafiava o outro a fazer dupla. Foi nessa dinâmica entre os dois que perceberam a necessidade de criar um centro especializado em tratamentos faciais em Portugal. Dos primeiros tempos em que tinham um pequeno gabinete alugado no Parque das Nações, e percorriam o país de norte a sul para fazer cirurgias, nascia um projeto mais ambicioso e sedimentado, com mais de 350 avaliações certificadas no Google Reviews, com 5 estrelas, talvez fruto da preocupação permanente que demonstra com os doentes.
Enquanto espero por David Ângelo, ouço um grupo de pessoas bem dispostas, doentes e equipa; parecia que estávamos numa casa com gente conhecida. A nossa entrevista começava à hora marcada, tudo planeado ao minuto. Aparecia na sala de espera David Ângelo, figura que não passa despercebida, pela altura que tem. Apresentava o mesmo rigor de uniforme médico que toda a sua equipa mostrava de antemão. Primeiro foi feita uma visita guiada pelo próprio ao Instituto, onde percebi que nada se mistura e tudo funciona ao mesmo tempo. Duas jovens mulheres na receção recebiam cuidadosamente quem chega, um gabinete onde apenas se discutem planos de tratamento, uma sala de reuniões clínicas e uma área dedicada à gestão administrativa, que gere as agendas e apoia a comunicação dos médicos, uma sala de enfermagem devidamente equipada, um espaço para fisioterapia e terapia da fala, um gabinete de gestão de doentes cirúrgicos e um mini estúdio. Nem mais, um estúdio fotográfico com tripés e câmaras que permitem captar imagens de cada doente com grande rigor, de forma protocolada, desde o primeiro dia em que entram e a sua evolução ao longo dos tratamentos. Lado a lado estão os gabinetes médicos.
Sempre comunicativo e confiante, entrámos no seu gabinete, onde parece não haver mais espaço nas paredes, repletas de notícias publicados sobre si ou diplomas por ele tirados. Há, pela primeira vez, uma mistura evidente do profissional com o pessoal, pelas inúmeras fotografias que me fazem antever sólida ligação aos pais e a uma Caetana de 10 meses, a filha de David Ângelo. Antes de começar a entrevista, explica-me que dá muita importância às redes sociais, e que hoje em dia é preciso adaptar a comunicação aos hábitos da população. Recordista de likes e visualizações nas redes sociais, comunica de forma equilibrada conteúdo científico, académico e alguma parte da sua vida pessoal.
“Não imagina a quantidade de doentes que vem à minha consulta e pergunta pelo meu cão, pela minha filha, pelos meus pais – quando entram, sentem que já me conhecem e isso é fantástico, ajuda a reforçar a relação médico-doente”. David Ângelo pode ter esta imagem descontraída nas redes sociais mas não se deixem enganar, tem um invejável currículo académico: recebeu mais de 11 prémios de investigação nacionais e internacionais, tem dezenas de artigos publicados como primeiro autor nas melhores revistas da especialidade, e além de dar aulas na Faculdade de Medicina, é a cara principal da pós graduação de cirurgia aberta e artroscopia da articulação temporomandibular na mesma Faculdade. Faz cirurgias inéditas em Portugal e com técnicas desenvolvidas pelo próprio.
Passadas as primeiras apresentações iniciais, começámos a entrevista. Mal sabia, que ia ter direito a uma aula particular sobre patologia da ATM, antes de começar a intervenção. Enquanto a doente que ia ser intervencionada, estava com a sua enfermeira, numa sala à parte, a ver um vídeo da intervenção, a tirar sangue e a reforçar os cuidados pós intervenção; eu estava a começar a minha primeira aula sobre patologia da ATM.
Apresentada que fui à foto de família, podíamos ver David Ângelo com dois anos, de cabelo bem claro, já a apontar para a Articulação Temporomandibular. Filho mais novo e de 3 irmãos, nasceu na Suiça e viveu em vários locais até ingressar no curso de Medicina na Covilhã.
Explica-me que "a patologia da Articulação Temporomandibular é de extrema importância, porque tem uma prevalência elevada, em alguns países pode afetar 46% da população total". Seguem-se uma série de imagens da anatomia articular, onde se percebe que a articulação está muito próxima ao ouvido. Essa proximidade é uma das razões que explica as dores da articulação serem facilmente confundidas com dores de ouvido, levando os doentes à consulta de otorrinolaringologia pensando que o problema está nos ouvidos, quando em alguns casos está relacionada com a articulação. "Tudo tem explicação do ponto de vista embriológico", explica-me enquanto segura num crânio e me mostra a zona da mandíbula. Em poucos segundos ouço palavras que mal consigo registar: "arco faríngeo, cartilagem de meckel, côndilo"...percebo, no entanto, que são estreitas as relações nervosas e vasculares entre estes meus estranhos novos elementos. Neste meu novo percurso de aprendizagem pessoal, percebo que são dezenas de músculos a trabalhar em conjunto quando fazemos algo que nos parece tão instintivo quanto mastigar. A aula comigo continua, com perguntas diretas do meu interlocutor a mim. "Quando mastiga tem dois músculos que se evidenciam muito mais. Quais são?". O meu silêncio mantém-se sem qualquer sinal de ser quebrado, ele retoma, sem esperar propriamente a minha resposta. "São o músculo temporal e o músculo masséter, estes são os mais importantes para mastigar e onde encontramos parte dos problemas que originam tensão nos maxilares". A resposta aparece com uma lógica visível, quando me mostra um vídeo de um doente a mastigar, onde se percebe também que apertar os dentes, uns contra os outros, pode resultar numa contratura muscular dos maxilares que pode estar associada a cefaleias, ou contribuir para as dores de ouvido. "No meio da articulação há ainda um disco que amortece as cargas mastigatórias", refere o professor; "ora se este disco está a ser comprimido o que é que vai acontecer?". Finalmente respondo com entusiasmo, "desgasta?". Desta vez acerto. Ele confirma a minha resposta e reforça que o disco pode desgastar ou sair do seu lugar habitual, como um menisco que se desgasta no joelho, uma das razões que pode explicar a incapacidade de tantas pessoas abrirem a boca, ou de, mesmo abrindo-a, não a conseguirem fechar de seguida.
A aula continua e partilha comigo imagens de testes feitos num cadáver. "Aguenta-te Joana e não caias", penso e sorrio, estando igualmente interessada e com sede de ver sempre um bocadinho mais. Passamos do vídeo de cadáver a casos clínicos muito reais. São várias as pessoas ainda muito jovens que têm problemas da articulação. Mostra-me vídeos de doentes antes da cirurgia, onde a cada movimento da boca se ouve um estalido, como uma bola de ping pong que bate sem parar; estalido que desaparece assim como a dor após o tratamento. Na nossa conversa, David Ângelo reforça que este é um trabalho de equipa, e que todos os doentes são sempre acompanhados por fisioterapia e terapia da fala. Um detalhe que me impressionou, foi este jovem médico manter um acompanhamento contínuo de todos os seus doentes ao longo dos anos, registando tudo religiosamente numa base de dados que criou – a EuroTMJ. Não é por acaso que a própria universidade de Harvard tenha contactado o cirurgião e mostrado interesse para ser parceiro de investigação e integrar esta base de dados no seu Hospital. Fala-me deste projeto com o entusiasmo contagiante. “Imagine o impacto científico que esta base podia ter se os principais cirurgiões da ATM, registassem todos os seus doentes nesta plataforma online?” – podíamos aprender muito sobre os nossos tratamentos e melhorar a nossa compreensão sobre a patologia, resultados das cirurgias e complicações mais frequentes, entre outras conclusões interessantes que podemos estudar. Esta base é partilhável, mas com proteção do perfil de cada doente.
Enquanto falamos, uma assistente vai preparando a sala para a intervenção. A enfermeira bate à porta, o médico levanta-se e vai receber a doente. Carolina (nome fictício) vem diretamente do Porto e fará um tratamento para a disfunção da ATM. Já sabia que eu estaria na sala e tinha no seu consentimento informado uma autorização para eu estar na sala. David Ângelo, explica-me que é um caso ligeiro de disfunção articular, mas que já tinha feito tratamentos prévios em outras clínicas sem resultados. Mostra-me a Ressonância Magnética e explica-me porque é que indicou uma Artrocentese à doente. Esta técnica permite uma lavagem específica da articulação e depois é complementada com células regenerativas e ácido hialurónico – uma das técnicas pioneiras que desenvolveu para a ATM.
A nossa aula teórica acabou. Começa agora a intervenção em tempo real - Depois de devidamente desinfetada toda a área da articulação, é administrada uma anestesia local que pode ir sendo reforçada se a doente sentir dor. David Ângelo explica-me que muitos médicos fazem esta intervenção com anestesia geral, mas que ele prefere fazer o procedimento com anestesia local, sendo mais confortável para o doente.
O objetivo deste procedimento é introduzir dois portais de lavagem na zona da articulação e remover as células inflamatórias através de um processo de lavagem. Retira-se o líquido inflamado, e neste caso, David Ângelo vai enviar esse líquido para uma análise laboratorial pioneira, de mais um estudo que está a desenvolver. Este é um estudo que poderá revolucionar a forma como se tratam as DTM. Outro estudo pioneiro! À espera deste líquido, para análise, está um estafeta, que levará a amostra na temperatura ideal até ao centro laboratorial. Regressemos à sala de procedimentos, onde a Carolina já se instalou e segura na mão uma bola antisstress para ir controlando alguma ansiedade de quem está acordada diante do procedimento. A intervenção é feita nos dois lados do rosto, a primeira demora algum tempo, mas perante alguma ansiedade controlada da doente, David Ângelo continua a fazer todo o procedimento com a mesma tranquilidade de sempre, enquanto ouve jazz e pede novo reforço da anestesia. Na troca do lado articular, há alguma ansiedade para que a Carolina não seja picada mais do que uma vez. E a verdade é que não é. Tudo acontece à primeira. Dessa observação também aprendo que a própria anatomia pode dificultar o acesso. O médico termina o procedimento, e a Carolina já tem a fisioterapeuta à espera numa outra sala. Tudo está programado ao minuto.
Enquanto faz o relatório da intervenção, explica-me que de todos os seus doentes só 13% precisam de recorrer a cirurgia mais invasiva. Consegue tratar a maioria dos doentes com intervenção minor, sem anestesia geral, como é o caso da Carolina. No tempo em que se muda de sala, a entrevista continua na copa entre um café e um pouco de folar de carne, oferecido por um doente do norte que veio a uma consulta de rotina com David Ângelo. Neste momento mais informal recorda o nome da primeira doente que operou, era alguém que já tinha ficado com a boca presa cerca de 30 vezes. Foi um sucesso cirúrgico e devolvemos qualidade de vida à doente. Sabe igualmente o nome da sua maior frustração, uma jovem de 19 anos, que após radioterapia severa desenvolveu uma surdez e uma limitação severa da abertura da boca. Mal consegue abrir a boca, é alimentada por uma palhinha. David Ângelo conta-me que levou o caso a inúmeros congressos internacionais, falando do caso desta portuguesa, a quem queria oferecer uma cirurgia, mas a verdade é que não consegue resolver o problema. E o mundo também não. Foi aconselhado pelos grandes especialistas a não operar a doente, sob pena de ter complicações graves.
É nesta precisa altura que recebe um telefonema de um colega italiano, com quem fala em inglês. É um homem do mundo, a sua vida mostra bem isso, nasceu na Suíça, altura em que os pais eram emigrantes. Viveu ainda na ilha da Madeira e no Luxemburgo, antes de ingressar na Faculdade de Medicina da Universidade da Beira Interior na Covilhã.
Desde há 11 anos, quando se começou a interessar por esta área, pouco se falava de DTM em Portugal. Eram várias as especialidades que os doentes procuravam, na maioria das vezes sem resposta. Foi esta a razão que levou David Ângelo a sair de Portugal, para aprender mais sobre esta área. Quando regressou, vinha com uma visão diferente dos tratamentos possíveis para estes doentes. Começou a implementar novos tratamentos e muitos deles minimamente invasivos. Com um nível de exigência técnica tremendo, para se saber fazer uma cirurgia é preciso praticar muito, sobretudo se falarmos na artroscopia da ATM. Foi por isso que decidiu ser apenas cirurgião da ATM, para poder ter uma boa casuística cirúrgica, numa técnica muito complexa. “Se ficar 1-2 meses sem operar percebo logo a diferença na minha destreza cirúrgica”. Preciso de estar sempre a operar para evoluir, é impressionante. Em outras técnicas não sinto isso, mas na artroscopia sinto essa necessidade." Não é por acaso que em Portugal é o único a fazer artroscopia avançada, onde se consegue suturar o disco, e na Europa haverá menos de 5 pessoas com esse nível cirúrgico. “ É um compromisso de vida com esta pequena articulação”, conta. É por isso que David Ângelo recebe no Instituto, médicos de todo o Mundo para estagiarem com ele (Suécia, Malta, Roménia são alguns dos países de onde recebeu médicos).
Não deixa seguir a sua vida por mãos alheias, mesmo quando as suas metas são fintadas por vontade maior daquilo que se diz ser o destino. Seja a direito, ou em curva e contracurva, o jovem médico de 36 anos leva muito a sério a sua vontade e não desiste facilmente de a levar avante. Enquanto vamos ver a doente que tratou e que se encontra agora na fisioterapia conta-me que esta patologia é muitas vezes desvalorizada e subdiagnosticada. O próprio admite que há pouco tempo, foi traído pela tentação de, ao ouvir a mãe queixar-se de um ouvido, pediu ajuda a um otorrino. Foi de lá que veio o alerta, havia um problema da articulação temporomandibular. A mãe tinha de facto uma perfuração do menisco articular, o que o obrigou a levar a mãe ao bloco operatório.
Muito mais haveria por contar sobre as histórias inspiradoras deste jovem médico, que parece adaptar-se a qualquer ambiente. Contou-me que foi trabalhando do simples para o mais sofisticado, mas "sem grandes manias". Nunca deixou de ser um aprendiz da vida e de saber estar nos vários cenários sociais, dos mais humildes, aos mais sofisticados.
Do feitio corajoso, como me conta, foi a investigação que lhe domou a rebeldia e seria na sua fase de doutoramento, aos 27 anos, que ia mudar o comportamento para alguém de regra e responsabilidade. Para terminar assume que profissionalmente gostaria de ser brilhante em três áreas: na clínica, na investigação e na academia. Mas reconhece que é muito difícil. Consegue exercer atividade clínica e cirúrgica das 8h00 às 18h00, assumir um papel familiar, e o resto do pouco tempo distribui-o entre a docência e a investigação. Para todo o espaço de tempo, inventa outro tempo. Adora viajar até ao Porto de comboio, com partida reservada para as 06:36h, tempo de viagem que lhe permite focar-se na investigação e estudar até chegar ao destino. O mesmo princípio aplicou ainda há poucas semanas, na viagem de 18 horas de avião para San Diego, onde foi integrado como o único português da Sociedade Americana de Cirurgiões da Articulação Temporomandibular. Os sucessos parecem-lhe ser naturais, mas gosta de me reforçar que as pessoas só veem a ponta do iceberg – “há muitos insucessos atrás dos sucessos”.
A expetativa de quem se senta diante deste cirurgião é grande, mas a solução pode existir ou não, e a sua eficácia depende também de fatores que nem um médico controla sozinho.
Como foi levar a sua própria mãe ao bloco para ser operada por si?
David Ângelo: Foi muito difícil. Andei a adiar a decisão de ser eu a operar, mas a verdade é que em Portugal havia poucas alternativas. E fora do país, como estávamos em plena pandemia, não queria arriscar. Quando chegou o dia, preferi não assistir à parte da indução anestésica. Chamaram-me quando já estava a dormir. Entrei no bloco operatório e foquei-me no que tinha a fazer. Nessa altura deixamos de pensar no que nos rodeia, ali há minha frente estava um doente que precisava de mim.
A mãe estava nervosa por si?
David Ângelo: Estava. Acredita que ela escreveu uma carta, para o caso de morrer na cirurgia? Nessa carta descansava-me e pedia que eu não ficasse traumatizado e que não deixasse de exercer medicina. Foi um momento muito emotivo onde chorámos os dois!
Falava-me que nem sempre se corresponde às expetativas das pessoas e que nem sempre as coisas correm todas como desejava…
David Ângelo: Sim. De facto há variáveis que não controlamos. Acontece, a cirurgia ser tecnicamente um grande sucesso, mas o doente continuar com queixas. Felizmente é raro, temos uma taxa de sucesso global perto de 87%.
O que já é imenso.
David Ângelo: É imenso mas ainda faltam 13%. São pessoas que depositam toda a confiança naquela intervenção e em mim. Quando não ficam melhores sinto-me mal. Ainda temos muito para aprender sobre os mecanismos da dor. Lembro-me sempre dos casos que não correm tão bem. Continuo sempre a acompanhá-los, e a procurar soluções para melhorar as taxas de sucesso.
E o que explica esses 13% de taxa de insucesso?
David Ângelo: Muitas variáveis que não sabemos ainda compreender. Dou-lhe um excelente exemplo de um artigo que estava a ler hoje e que fala da somatização da dor em doentes submetidos a cirurgia. Nesse estudo observam que doentes com depressão, fibromialgia e maior índice de ansiedade, são doentes que têm maior risco de insucesso na intervenção da ATM. Eu próprio já concluí o mesmo, numa publicação que fiz há pouco tempo, e que aponta esses doentes como um grupo de risco. A verdade é que a mente controla muito desses acontecimentos e condiciona as ações em volta. As pessoas mais negativas são mais pessimistas e isso interfere no resultado final. No entanto, este perfil de doente também merece ser tratado. Não posso simplesmente recusar tratar estes doentes. Aquilo que faço é que, diante deste perfil de doentes, explico que tem um maior risco de não ter resultados tão satisfatórios. Eles geralmente aceitam e querem da mesma forma tentar a intervenção.
O que faz com que as pessoas tenham DTM?
David Ângelo: São várias as causas: traumatismos micro ou macro, ansiedade, aumento da pressão intra-articular, doenças autoimunes, entre outras que ainda não conhecemos.
Há doentes que lhe tiram o sono?
David Ângelo: Há. Há casos em que não durmo bem na noite antes de fazer as cirurgias. Fico a rever todos os passos para que na cirurgia não haja falhas. Normalmente em cirurgias muito complexas, que têm mais de 250 passos diferentes sequenciais; é preciso memorizar cada um desses passos para correr bem.
E como é que fica a relação entre o médico e o doente, mesmo quando este não salvou o seu doente da maneira que a expetativa anunciava?
David Ângelo: (Aponta para um boneco com um pequeno cão) Vê esse boneco? Sou eu. Foi uma doente que me deu. Já a operei três vezes e a verdade é que não foi um sucesso na primeira cirurgia. Nem eu, nem médico algum faz cirurgias para ter insucesso, mas a verdade é que o insucesso faz parte da nossa vida e não devemos esquecer isso. O insucesso cansa e faz-nos sentir exaustos, mas é parte da nossa condição de médico. Mas os doentes percebem que fazemos o melhor para os ajudar e isso é importante.
Como foi feita esta sua integração internacional? É o único médico português a pertencer à Sociedade Americana de Cirurgiões da Articulação Temporomandibular.
David Ângelo: Foi através dos artigos científicos que fui e vou publicando. O meu antigo Diretor, o Professor Francisco Salvado, dizia-me algo que não me esqueço: "quem não publica, não existe". É uma verdade. Eu posso fazer os melhores tratamentos do mundo e ter os melhores resultados do mundo, mas se eu não os publico em nenhuma revista, não consigo ter visibilidade? Se ninguém conhecer o meu trabalho e aquilo que eu faço, como posso expandir a minha investigação e ajudar Portugal a desenvolver esta área? As minhas publicações são a razão do meu reconhecimento internacional a um nível relevante. Eu tenho uma boa característica, sou um concretizador, finalizo os meus objetivos. Einstein dizia que "uma boa ideia sem um plano de ação, não passa de uma alucinação". Isto é verdade e eu para tudo tenho esse plano de ação e executo mesmo. Acho que as novas gerações têm dificuldade em avançar, porque têm muitas ideias mas não as concretizam. Concretizar dá muito trabalho. Quando tenho uma ideia para um projeto de investigação começo a escrever e coloco prazos, que faço um esforço por cumprir. Os alunos da FMUL, em que oriento as teses de mestrado ficam surpreendidos, porque na primeira reunião fazemos logo um cronograma que contempla inclusivamente o dia da apresentação. Claro que pode haver atrasos mas este cronograma serve para criar um compromisso com o projeto. Eu cheguei a demorar quase dois anos a preparar um artigo.
Para alguém que planeia tudo tão meticulosamente diga-me lá, a vida não lhe troca as voltas às vezes? Consegue ter sempre tudo tão bem controlado na sua vida?
David Ângelo: Troca, troca as voltas. Em termos de investigação então troca muito. Dou-lhe um exemplo. Quando comecei o projeto de doutoramento, tinha planeado operar as ovelhas, no piso 9 do Hospital Santa Maria, na cirurgia experimental. Pouco tempo depois recebo uma carta da comissão de ética a dizer que aquele biotério não era certificado pela DGAV e que eu não poderia operar lá os animais. Ou seja, todo o meu trabalho voltou à estaca zero. Caiu tudo, eu não podia fazer mais nada. Fui à procura de soluções. Sabe o que fiz?
Reconstrui um barracão dos meus pais e fiz um biotério de raiz. E agora até alguns nomes importantes da área hospitalar me pedem para ir lá operar ovelhas. Este biotério está obviamente certificado pela DGAV. Foi a única forma para que eu pudesse prosseguir a minha investigação animal. Foi lá que apliquei os €10 mil que ganhei de uma bolsa de jovem investigador em dor. O restante dinheiro que poupava era aplicado no Biotério.
A investigação também lhe trocou as voltas? Ou seja, é comum um artigo ser submetido e vir para trás?
David Ângelo: Eu sou resiliente, sabe? Tive um artigo que foi submetido a 16 revistas diferentes, só à 16ª vez foi aceite. Nunca desisti, sabe porquê? Cada vez que vinha para trás, eu corrigia e aprendia algo mais, pois trazia valiosos comentários dos revisores e isso ajudava-me a melhorar. Finalmente consegui publicar no International Journal of Surgery, cujo fator de impacto foi quase 6. (o fator de impacto de uma revista cientifica é dos elementos mais importantes para definir a credibilidade e qualidade de uma revista e dos seus artigos).
É possível regenerar o disco?
David Ângelo: Ainda não. Nos meus estudos consegui prevenir um processo de osteoartrose, após remoção do disco. Depois de tirar o disco articular gostava de criar uma solução que o substituísse, mas sozinho não tenho meios para isso, são precisos grandes financiamentos da indústria para apoiar estes projetos.
Joana Sousa
Equipa Editorial