“Nesta sala, podem fazer uma cesariana se acharem necessário”, explicava calmamente Luísa Pinto, Obstetra do Hospital de Santa Maria e formadora no Curso de Treino em Emergências Obstétricas. Na ampla sala destinada a recriar uma sala do Bloco de Partos, a boneca de simulação Lucina está a postos para que se possa treinar a resolução de diversas situações de emergência, incluindo manobras obstétricas concretas.
Enquanto fazia a visita guiada a um grupo composto por 6 médicas (internas ou especialistas de Obstetrícia e Ginecologia) e 6 enfermeiros (apenas um homem enfermeiro) especialistas em saúde materna e obstétrica (ESMO), as médicas Obstetras Luísa e Mónica Centeno organizavam o grupo por duas equipas. A acompanhá-las, três enfermeiras ESMO do Hospital reforçavam algumas informações e discriminavam todos os materiais e fármacos disponíveis para serem usados no workshop prático.
Cada equipa composta por 3 médicas internas ou especialistas de Obstetrícia e Ginecologia, 2 enfermeiros ESMO e uma Anestesiologista, iam ser sujeitas a seis situações de emergência, testando a sua reação à pressão, a capacidade de comunicação com a equipa, a doente e familiares, reforçando as técnicas de liderança e atuação em equipa, bem como a destreza para a resolução de situações excecionalmente raras no dia-a-dia. Porém e por não serem situações impossíveis de acontecer, e apesar de serem aquelas equipas já residentes, mais experientes dentro da Obstetrícia, o que saberiam responder sem grande tempo de organizar os pensamentos e se mal conhecessem a restante equipa? Como agiriam sem ficha clínica completa e tempo para planear a melhor ação médica?
No impasse entre a preparação da régie, que mantinha duas atrizes / médicas internas, um Engenheiro (o indispensável Cristiano Tavares) e uma médica que preparava o modelo, para o cenário seguinte, apercebia-se que no ar havia uma certa tensão. Se fosse para ser simples, talvez nenhum daqueles elementos precisasse de ali estar. Mas quando é a primeira vez que um médico, ou enfermeiro, se depara com situações agudas e cuja reação precisa ser eficaz e em breves minutos, onde se vai buscar o conhecimento para a ação?
Em que momento da carreira se treinam os grandes embates antes que eles aconteçam na realidade, com pacientes e bebés reais?
Muitas têm sido as abordagens sobre a avaliação das equipas clínicas, mesmo enquanto são ainda e apenas estudantes. Numa Medicina cada vez mais acelerada com o mundo global e a imposição da tecnologia avançada, com que eficácia se preparavam os profissionais para os tempos atuais? Haverá tempo para que a experiência norteie aqueles que começam agora o seu caminho?
Em resposta às prementes necessidades daquelas cujas profissões implicam a vida humana, foi implementado um vasto espaço de simulação tecnológica que permite recriar, com fiabilidade, situações clínicas extremas, em tempo limite.
Foi precisamente o tempo o primeiro elemento a ser cumprido sem margem para erro. Às 13h em ponto Luísa Pinto esperava na sala a equipa inteira que terminava de vestir os fatos azuis de bloco operatório. Mónica Centeno ia apressando os ligeiros atrasos de quem chegava de outras unidades hospitalares e queria cumprir o tempo com a mesma precisão.
Primeiro caso. Uma equipa no bloco. A outra equipa agrupava-se numa sala de reuniões e observava silenciosamente. Hipoxia fetal aguda – o feto apresentava uma descida marcada e prolongada da frequência cardíaca. Não sendo previamente apresentado o quadro da paciente, ninguém podia prever o que aí viria, pois, a hipoxia fetal aguda não era anunciada. Apenas os sinais vitais da mãe, a frequência cardíaca do feto e a voz que saía do simulador, controlada por uma pessoa real da régie, davam a entender que algo grave se passava. Se em poucos minutos não se agisse em equipa, a probabilidade de lesões muito graves para o bebé, ou mesmo morte, poderiam acontecer. Razão suficiente que faria depois entender por que o tempo era tão vital de respeitar, pois reagir entre 3 a 5 minutos teria mais eficácia que em 12, sendo a partir de 15 minutos possivelmente um cenário fatal. A precipitação era elemento igualmente forte, pois uma decisão impulsiva pela pressão dos ponteiros, podia ser tão imprudente quanto a falta de reação. Terminado o exercício as duas equipas juntavam-se na sala para analisarem o caso. À medida que se pediam autoavaliações, pedia-se a reflexão da equipa que observara. Sem competição, sem tentativa de haver protagonismos, ou vencedores, mesmo sendo um cenário fictício, por momento algum se sentiu que alguém poderia encarar o exercício com leveza ou graça.
Duas atuações para cada caso. Duas equipas, à vez, testariam comportamentos, atitudes e técnicas. A cada exercício, o comportamento individual passava para o todo e da ação mais individual assumia-se um espírito de equipa recém-conquistada. Pelo decorrer da ação as formadoras observavam minuciosamente as palavras e os gestos, sem interferência, nem palavra. “Nós estamos aqui, mas esqueçam que existimos, não perguntem nada porque não vamos responder”.
Seguiam-se outros mais cenários. Paragem cardiorrespiratória. Retenção de cabeça última. Hemorragia pós-parto.
Na interação entre equipas reais, simulador e atrizes médicas, as abordagens mudavam. Intervinham familiares ansiosos, as grávidas entravam em pânico, as equipas aprendiam a deixar de comunicar isoladamente e a ser equipa real e de comunicação ativa. Na régie um som de uma mulher cheia de dor e medo, aumentava o realismo que passava a ser elemento imprescindível para quem vive o contrarrelógio da decisão. A cada cenário, nova avaliação ente todos e nova dinâmica. Novas ações a melhorar. Melhores conclusões.
Cada debriefing entre equipas permitia que a sala e o simulador voltassem a ser preparados para a prova seguinte. Sempre com a ajuda médica, o Engenheiro Cristiano ia apurando a sua técnica peça a peça, encaixando cada uma no seu preciso lugar. Era o mesmo que dizer que já sabia onde colocar a placenta e o bebé em posição para o nascimento.
Na régie falava-se apenas se fosse obrigatório e no palco da ação moviam-se as pessoas como numa valsa silenciosa que precisava de dançar toda para o mesmo lado para não quebrar a coreografia. O barulho do tempo passava ruidosamente para quem era espetador na régie, mas voava para quem queria solucionar as situações e procurava numa aparente calma a resposta certa.
Discutia-se liderança em situações de Emergência. Comunicação e feedback. Sempre a verdade, mesmo a quem corria risco de vida, mesmo que fosse uma verdade limitada de dados, mas sempre a verdade. Novo cenário. Nova equipa. Nova avaliação.
Mudança de cenário. Desta vez o bloco de partos descansava. Esperava uma nova história. Vamos para o consultório. Novo silêncio para quem não está em ação. A mesma pressão que não permitia qualquer cansaço instalado nas equipas e nas avaliadoras.
Depois de uma tarde inteira de situações de adrenalina, o fim da tarde chegava com o fim dos cenários e um feedback unânime de missão cumprida e aprendizagem fortalecida. Algumas há algum tempo a aguardar pela oportunidade certa desta formação, mostraram que valeu a pena o tempo de espera e o grupo garantiu um regresso para apurar novas e mais técnicas.

Quem está por detrás do projeto?
A trabalhar atualmente no seu Doutorando em Obstetrícia pelo Centro Académico de Medicina de Lisboa (CAML), com um trabalho intitulado “Versão Cefálica Externa: Impacto do treino em simulador e do treino de competências de comunicação”, Luísa Pinto Grilo é Obstetra há 26 anos.
Sempre com médias a tocar a escala máxima do mérito, Luísa entrou para a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa em 1984. Seguiram-se um Mestrado em “Saúde do Adolescente” (2011 / 2015) e uma Pós-Graduação em “Especialização em Introdução à Investigação Clínica: curso prático” (2017 / 2018). No 6º ano do curso de Medicina e no início do 2º ano do Internato Geral, trabalhou em investigação clínica como bolseira do Instituto Nacional de investigação Científica (INIC), na área das doenças do movimento, especificamente na utilização da toxina botulínica em situações de distonia.
Em consequência deste trabalho, orientado pelos Professores Castro Caldas e Cristina Sampaio, é agora coautora de diversas publicações e comunicações científicas nesta área, a nível nacional e internacional. Membro da Comissão Técnica de Certificação de Interrupção Médica de Gravidez e presidente da mesma desde 2019, é igualmente Júri de exames de equivalência à especialidade de Obstetrícia e Ginecologia. Luísa Grilo é assistente convidada de Obstetrícia e Ginecologia da FMUL, responsável pelas aulas teóricas, teórico-práticas e práticas do 5ºano e orienta o 6º ano nos seus estágios clínicos de Obstetrícia.
Em 2012 criou a consulta de Nefro-obstetrícia e estabeleceu novas pontes de contacto com diversas especialidades (cardiologia, hematologia, psiquiatria, urologia, gastroentrologia), no sentido de proporcionar apoio às grávidas que recebia nas suas consultas. Passou pela coordenação das Urgências assim como pela Consulta Pré-Concecional. Maioritariamente a desempenhar funções na área da Medicina Materno-Fetal é, desde 2021, subespecialista em Medicina Materno-Fetal. Atualmente é a Diretora do Serviço de Obstetrícia, no Centro Hospitalar Universitário, Lisboa Norte por delegação de funções.
Sobre a preparação dos casos e sob a perícia das Obstetras que preparam os casos de simulação, sobre como se preparam aulas reais para profissionais experientes e o que tem a Medicina e o próprio ensino a dar com esta nova técnica de formação, foi o que fomos perceber.
Desde quando se começaram estas formações com simuladores a recriar a realidade?
Luísa Pinto: No CHULN começámos a realizar Cursos de treino em Emergências Obstétricas em junho 2017, inicialmente nas instalações do Serviço de Obstetrícia e com modelos com menos potencialidades. Desde 2021 fomos utilizando as instalações do Centro de Simulação no Edifício Reynaldo dos Santos e um modelo mais moderno e com mais possibilidades em termos de treino de situações obstétricas e não só.
Como foram pensados e planeados os 6 casos clínicos apresentados nesta formação?
Luísa Pinto: Os 6 cenários que treinamos correspondem às principais situações de emergência em obstetrícia.
Como se treinava até aqui a passagem da teoria para a prática? No terreno e com doentes reais?
Luísa Pinto: Os Cursos de Simulação em Emergências obstétricas já existem há várias décadas noutros países e posteriormente surgiram noutros hospitais do país, pelo que era possível fazer a formação nesses centros. Neste momento dispomos de um centro com excelentes condições em termos de espaço físico e de simulador o que nos permite realizarmos este curso com um elevado nível de qualidade, integrando equipas multidisciplinares (médicos obstetras, médicos anestesiologistas, enfermeiras) e promovendo não só o treino de gestos e a atuação clínica mas também o treino em comunicação (dentro da equipa, com a grávida e com o acompanhante) em situações de urgência, aspeto fundamental para o sucesso das intervenções.
Por mais experiência e treino que se tenha pode surgir um novo caso que mude a perspetiva de um caso clínico?
Luísa Pinto: Em Medicina podem sempre surgir situações diferentes e únicas, uma vez que não há duas pessoas iguais e cada uma reage de sua maneira. De qualquer forma, há um padrão de atuação comum às diversas situações que se treinado com regularidade permite a resolução da maior parte das situações. Este treino é particularmente importante em cenários que pela sua raridade não permitem uma prática regular no contexto real, mas que pela sua gravidade podem fazer uma total diferença nos desfechos obtidos.
Joana Sousa (conteúdos)
Leonel Gomes (reportagem fotográfica)
Equipa Editoral
