Há um grupo que tem estado a construir a Reforma do Ensino Clínico e que se chama CIREC. A Comissão de Implementação da Reforma do Ensino Clínico (CIREC) une professores, estudantes e elementos da área Académica, para pôr em prática as linhas formais da Nova Reforma do Ensino Clínico.
O primeiro grande passo que esteve no desenho desta reforma curricular foi olhar para os objetivos pedagógicos das várias áreas disciplinares e cruzá-las como se de uma só se falasse.
Para quem escolhe Medicina e chega ao 4º e 5º anos, deve ser capaz de fazer uma história clínica, saber tratar sintomas, avaliar alguns padrões de doença. Um médico, seja qual for a especialidade que tem, lida com essa realidade do doente, que relata um misto de sintomas, mas que não sabe ao certo do que se queixa. Foi ao verificar que duas disciplinas de Medicina tinham objetivos educacionais tão semelhantes que se entendeu que era preciso inovar, adaptar o ensino às novas dinâmicas sociais. Compilar matérias disciplinares e definir todos os objetivos, olhar para o portfólio que os alunos de Medicina devem saber resolver, independentemente da área clínica que escolham, exigia uma nova integração das disciplinas clássicas, mas com novas perspetivas de ação e tempo.
Falar de nova Reforma do Ensino, significa falar em interdisciplinaridade, avaliação, diminuição de rácio aluno / professor, integração de novos conteúdos disciplinares, ou de novas perspetivas académicas, como é o caso da Cirurgia.
O fim é um só, integrar aquilo que podia estar disperso e segmentado e tornar num só tronco comum.
Depois de ouvir no passado mês o coordenador da CIREC, o Prof. José Ferro e da avaliação geral do Prof. João Eurico da Fonseca, fomos auscultar as equipas de trabalho que ao longo destes meses trabalharam para chegar a um documento final.
Dividimos por grandes áreas de ação aquilo que vai mudar. E fomos ouvir parte dos elementos que trilharam este caminho de um novo ensino que quer preparar os melhores médicos do futuro.
Esta foi a sequência de entrevistas que fomos recolhendo ao longo de um mês.
Interdisciplinaridade
Isabel Pavão Martins é Professora Associada com Agregação na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL), é a Regente da disciplina de Neurologia, Diretora do Departamento de Educação Médica (DEM) e membro da CAEC e da CIREC.
A médica neurologista tem um papel fundamental na coordenação do DEM, que é responsável por diversas formações destinadas aos Professores da FMUL. Tem uma voz ativa na mudança e reformulação das avaliações, assim como de uma maior interdisciplinaridade entre as áreas académicas.
Sabe que esta nova reforma do ensino irá trazer diversos desafios para os professores e que o foco do ensino da Medicina deixará de estar centrado nas disciplinas, passando a concentrar-se mais na resolução dos casos clínicos do dia-a-dia, o que possibilita aos alunos maior contacto com diferentes contextos clínicos.
É responsável por diversas formações a professores. Com esta nova reforma do ensino, há alguns aspetos que se alteram na preparação e execução destas formações?
Isabel P. Martins: A reforma do ensino clínico pretende melhorar a aprendizagem nos anos clínicos através de um ensino mais integrado e com melhores rácios docente/discente, introduzir novas competências necessárias para a prática clínica no início deste milénio e adaptar os métodos de ensino à nova geração de alunos nascidos na era digital.
A reforma vai, pois, incluir não só uma reformulação curricular mas também a introdução de novos métodos de ensino, mais centrado no aluno e nas técnicas de active learning em que o aluno se envolve e tem um papel ativo na sua aprendizagem, e novos métodos de avaliação como os exames práticos semestrais no formato de OSCE.
O Departamento de Educação Médica tem disponibilizado ações de formação dirigidas a estes novos aspetos, e iremos também, em concertação com o Conselho Pedagógico e o núcleo da avaliação do CIREC, disponibilizar treinos quer na elaboração de perguntas quer sobre os aspetos mais práticos e operacionais dos OSCE. Pretendemos que haja pelo menos uma pessoa em cada disciplina que se envolva na formação.
Que desafios traz esta nova reforma do ensino para os professores?
Isabel P. Martins: Esta reforma coloca vários desafios aos Docentes. Em primeiro lugar, vai haver uma mudança do foco do ensino que passará a ser mais centrado na forma como o doente se apresenta e menos centrado em disciplinas. Vamos ter que pensar a medicina em problemas clínicos que podem envolver várias disciplinas e deixar de lado a apresentação de temas por áreas disciplinares estanques, que não correspondem à realidade. Esta perspetiva requer um maior esforço de integração entre disciplinas e uma maior concertação entre temas, alguns dos quais serão lecionados em seminários multidisciplinares. Essa organização de tópicos é também fundamental para se organizar a avaliação. Uma pergunta sobre perda de consciência, por exemplo, tanto envolve o Internista como o Cardiologista, o Neurologista ou mesmo o Psiquiatra, pois diz respeito a todas essas disciplinas e não faz sentido ser abordada por cada uma de forma independente. Esta abordagem estimula o diagnóstico diferencial e o raciocínio crítico por parte dos alunos.
Por outro lado, no que respeita ao ensino prático e teórico-prático, vamos ter turmas práticas mais pequenas com maior proximidade docente-discente e maior oportunidade para os alunos contactarem com os doentes em diferentes contextos clínicos e maior envolvimento dos alunos na sua própria formação. Isso pode ser feito através da apresentação de casos, preparação e discussão de temas, flipped classroom, debates e outras técnicas que se integram no active learning, em oposição à aprendizagem passiva em grandes anfiteatros, em que o aluno apenas ouve. Estes são também grandes desafios para os docentes no que respeita aos métodos pedagógicos que deverão selecionar e adaptar às características da respetiva disciplina.
Iremos ter uma grande alteração nas avaliações aos alunos. Como olha para este ponto na reforma do ensino?
Isabel P. Martins: O nosso sistema até agora caracterizava-se por uma fragmentação dos conteúdos em pequenos tópicos que o aluno estudava ou decorava de forma intensa nas semanas anteriores ao exame e que logo esquecia para se dedicar ao exame seguinte.
Muitas vezes perguntava aos meus alunos, nas aulas práticas, quando tinham começado a estudar e eles diziam que só começavam a preparar-se no final de Dezembro, ou seja para os exames que iriam ter no final de janeiro. Isso sempre me pareceu absurdo e um total desperdício de oportunidades. Pensar que os alunos tinham passado 3,5 ou 4 meses a observar doentes sem lerem nada sobre o que os doentes tinham, era ridículo. Assistiam ao exame neurológicos passivamente, mas só o estudavam verdadeiramente depois das aulas acabarem, ou seja, antes do exame prático, altura em que já não podiam tirar dúvidas com o docente. Nada disso fazia sentido.
Há que aprender, deixar consolidar a aprendizagem, e rever e refletir sobre ela através dos casos que se observam, já com algum conhecimento. Esta é para mim a maior vantagem de haver uma real avaliação contínua, que vai diferenciar os alunos pela nota, e apenas um único exame no final de cada semestre e com todos os conteúdos.
Queremos formar médicos que consigam integrar o que vão observando nas várias disciplinas e tirar o máximo do proveito dos temas e dos casos a que vão sendo expostos. Essa aprendizagem é um processo lento e progressivo que não se consegue alcançar 15 dias antes do exame.
Nesse sentido gostava de deixar aqui uma chamada de atenção para os alunos. O próximo ano não é compatível com o estudo em cima do exame. Os alunos vão ter que estudar ao longo de todo o semestre e idealmente deveriam mesmo ler/ver algumas aulas pré-gravadas antes do início do semestre, porque vão ter duas semanas iniciais muito intensivas. Não há pequenos temas que se preparam em 10 ou 15 dias com boas classificações. Os alunos vão-se deparar com um único teste de escolha múltipla e um único exame prático, onde pode sair tudo a que foram expostos. Este exame é também mais parecido com a PNA (Prova Nacional de Acesso) que vai ser fundamental nas suas vidas futuras.
Que melhorias quer destacar nesta reforma para o ensino da medicina?
Isabel P. Martins: Penso que as principais melhorias são:
- A abordagem por objetivos e competências que poderão tornar o ensino e a avaliação mais claros;
- A organização dos conteúdos de forma integrada e dirigida à forma como o doente se apresenta;
- A melhoria dos rácios;
- A preparação teórica concentrada nas primeiras semanas do semestre, de modo a permitir a preparação do aluno para o ensino prático e a disponibilizar tempo para o estudo autónomo a par da experiência clínica nas 12 semanas seguintes;
- A avaliação integrada;
- A introdução de competências emergentes.
Qual o ano pelo qual está responsável? E o que muda no ensino desse ano?
Isabel P. Martins: A Unidade Curricular que coordeno insere-se no 4º ano. As mudanças são idênticas em todas as áreas. Muda a estrutura do semestre, com a concentração do ensino teórico no início, a introdução dos seminários integrados que envolvem toda a Unidade Curricular, a avaliação contínua vai ter ligeiras diferenças e naturalmente a nossa UC integrará a avaliação semestral.
Outro protagonista da nova reforma do ensino clínico é João Forjaz Lacerda, Professor Catedrático, Diretor da Clínica Universitária de Hematologia da FMUL, Presidente da Comissão de Ética do Centro Académico de Medicina de Lisboa, que ao papel de Coordenador do Núcleo de Cooperação Internacional soma agora a responsabilidade de coordenar o novo plano de estudos do 4º Ano do MIM.
Um ano deveras marcante para os estudantes de Medicina, no qual a integração da cirurgia no ensino médico representará “um dos grandes barómetros na mudança”.
Sobre a nova metodologia de avaliação (avaliação contínua), “copiada” do sistema de ensino Britânico e Holandês, João Forjaz Lacerda acredita que tudo dependerá do grau de compromisso dos estudantes ao longo da jornada.
Na sua opinião, porque é tão importante a nova reforma?
João Forjaz Lacerda: Era necessária há muitos anos, a estrutura do curso não estava alinhada com as necessidades pedagógicas dos estudantes, tinha várias redundâncias e muito pouca integração de conhecimentos.
Enquanto coordenador do novo plano de estudos do 4.º Ano, qual será o seu papel nesta mudança?
João Forjaz Lacerda: A Medicina / Cirurgia representa cerca de 60% de todo o 4º ano, portanto esta unidade será um elemento essencial e um dos grandes barómetros na mudança. Cabe-me e mim e aos Professores Fausto Pinto e Paulo Costa a sua coordenação. Felizmente, existem docentes doutorados em todas as áreas disciplinares que têm grande dedicação e sentido de missão, e que estão a desenvolver um trabalho de organização e integração notáveis nas respetivas áreas.
Uma das mudanças mais marcantes da nova reforma é precisamente o sistema de avaliação. Considera que os estudantes ficarão melhor preparados à luz do novo modelo de avaliação?
João Forjaz Lacerda: O nível de preparação dos alunos dependerá muito do seu empenho, de realizarem ou não um estudo contínuo e de aproveitarem as oportunidades que lhes forem oferecidas. A introdução do OSCE terá a virtude de avaliar de forma objetiva e mais facilmente comparável conhecimentos e atitudes. Na nossa opinião, a avaliação contínua só faz sentido se for baseada em dados objetivos. Caso tal não seja possível, a avaliação deverá centrar-se, predominantemente, no teste de escolha múltipla e no OSCE.
Sendo o Professor um dos responsáveis pela celebração de protocolos internacionais na nossa Escola Médica, gostaria de lhe perguntar se esta proposta de ensino abrirá portas para a criação de novas sinergias com mais entidades internacionais? Quais? E em que moldes?
João Forjaz Lacerda: É uma grande necessidade da faculdade. Para existir uma facilitação da mobilidade será essencial que a Medicina/Cirurgia do 5º ano adote o mesmo modelo que estamos a desenvolver. A existência de blocos rotativos com a mesma duração de aulas práticas permitirá olhar para o 4º e 5º anos como um contínuo, tornando possível a um estudante internacional juntar áreas disciplinares do 4º e do 5º ano de acordo com as suas necessidades. Este é um tema complexo que não consigo explicar em poucas palavras, mas ficam alguns princípios gerais.
Na sua opinião, deveríamos abrir vagas aos estudantes internacionais?
João Forjaz Lacerda: Imagino que a sua pergunta diga respeito ao ingresso na faculdade de estudantes internacionais desde o primeiro ano. A entrada em Medicina nas universidades europeias é muito competitiva, e Portugal não é exceção. O que me parece essencial é que os critérios de admissão sejam idênticos para todos. Haveria seguramente muito a dizer sobre o tema, metodologias desejáveis de ingresso, existência ou não de entrevistas estruturadas, etc.
Mesmo com esta reestruturação do modelo de ensino clínico, ao olharmos para a abertura do curso de Medicina nos privados, como é que fica a nossa Faculdade em termos competitivos, no que toca ao ensino?
João Forjaz Lacerda: Creio que a nossa Faculdade só se tem de preocupar consigo mesma. Temos algumas características que é muito difícil reproduzir, até mesmo a nível internacional. Somos a maior faculdade de Medicina do país, afiliada ao maior hospital geral de Portugal, onde existem todas as especialidades médicas e cirúrgicas em permanência 24/7, e partilhamos o campus com um dos mais prestigiados institutos de investigação da Europa, que é o Instituto de Medicina Molecular, parte integrante da Faculdade de Medicina. Há que capitalizar cada vez mais neste enquadramento único.
Avaliação

A gerir toda a área avaliativa está Joaquim Ferreira, Presidente Interino do Conselho Pedagógico, médico Neurologista e Diretor da Clínica Universitária de Farmacologia. A avaliação que agora se pretende fazer deve ser, em última análise, a confirmação se os alunos atingiram os objetivos relativos aos conhecimentos clínicos, delineados desde o início do processo.
Como explica o Professor, o grande desafio, até para eles docentes, é "despir" o conceito do que era a tradição nas várias áreas disciplinares e olharem para as grandes áreas de forma mais interdisciplinar.
“No fim de tudo, o que pretendemos é que o aluno saiba suspeitar que uma dor de cabeça pode ser uma doença grave e que deve pedir uma TAC e não classificar em detalhe essa mesma dor de cabeça, mesmo que essa classificação esteja certíssima. Mas se depois ele não sabe o que fazer com essa mesma queixa da dor de cabeça, significa que não sabe qual é o passo seguinte à TAC, que seria a descoberta de algo relevante do ponto de vista do tratamento do doente”.
Mas como se pretende aplicar esta avaliação? Através de duas formas de avaliação: O OSCE, que avalia as competências e raciocínio clínico do aluno, e o de escolha múltipla.
A implementação e testagem de todas as dinâmicas de avaliação pertencem aos dois Professores que supervisionam todas as premissas, Diogo Ayres de Campos, que fica responsável pelo OSCE, e Ricardo Fernandes, com a pasta das perguntas de escolha múltipla.
Na prática os alunos passarão a ter apenas dois exames obrigatórios, quatro se quiserem ir a uma segunda chamada. Os primeiros exames já a decorrer em fevereiro de 2022, quando se dá o fim do primeiro semestre. É nessa altura que se aplica um teste de escolha múltipla e um exame OSCE, com 10 estações diferentes. Em cada uma dessas estações, será colocado um desafio, recolher dados de história clínica, ou manobra semiológica são apenas dois dos exemplos a considerar. Do resultado da performance das 10 estações, sai então a nota final.
Quer um exame, quer outro integram todas as disciplinas apreendidas ao longo de todo esse semestre. Há ainda a avaliação contínua, que será de componente mais formativa e vai permitindo perceber a evolução de cada aluno, “assim os próprios podem ir tomando conhecimento se aquilo que é esperado deles, está a ser conseguido. A ideia visa à homogeneização das avaliações, baseadas em documentos e grelhas uniformes”, explica Joaquim Ferreira.
O período de exames leva também ele um corte, das antigas 5 semanas de provas no 4º ano, agora passam a 4.
Perguntar a razão das mudanças tem sempre por base uma explicação.
“Uma das grandes críticas da comissão que fez a avaliação do sistema de ensino mostrou que havia demasiadas avaliações, o tempo delas era bastante longo e havia muitos exames, havia um tempo excessivo de avaliação”, continua o Professor. Se no passado cada tronco curricular tinha avaliações diferentes, e mesmo que fossem todas feitas no mesmo momento, a melhor resposta a essa crítica seria reduzir o número de exames, encurtar o período alocado aos exames, libertando mais período letivo, nomeadamente para aulas práticas presenciais com alunos e fazendo menos exames
Reduzir o número de exames e encurtar o tempo alocado ao período de exames, era assim a decisão consciente para se ganhar mais espaço para a prática dos exercícios clínicos.
“Há sempre um componente de incerteza para quem nunca experimentou esta nova fórmula. Isso aplica-se quer aos alunos, quer aos docentes, mas as grelhas seguidas tentam seguir as balizas com as regras comuns. Tivemos múltiplas reuniões com os regentes e docentes e também para eles será um passo novo este; a pergunta principal que nos fazem é qual será a maneira adequada de fazerem as perguntas avaliativas da sua área. Há aqui um carimbo da forma de pensar que terá de ser mudada e que é importante para todos”.
Mudar sim, mas não de forma disruptiva, explica o Professor.
Como se treina este novo mecanismo de avaliação com o corpo docente?
Joaquim Ferreira: Só com a prática e a reunir muitas vezes, a planear em conjunto. Cada área disciplinar nomeará o seu representante que responderá, quer pelo teste de escolha múltipla, quer pela OSCE. Os próximos trabalhos retomarão na 3º semana de setembro, de modo a que até ao fim do ano esteja tudo pronto a ser aplicado. Em dezembro haverá um OSCE piloto onde se simulará se tudo está bem em logística, em treino dos docentes e na dinâmica dos estudantes. Nestas simulações e testes finais é possível que se recorram a atores para se medir da forma mais real possível tudo o que pode acontecer. O circuito de passagem dos alunos entre salas tem de estar muito bem testado, não pode mesmo ter falhas, isto porque transitam entre espaços físicos depois de todos terem feito a mesma estação para que não se troquem informações entre quem já fez uma estação e a vai fazer. Cada estação tem uma duração de 6 minutos.
Agora, compete-nos treinar tanto quanto possível os docentes, informar os discentes e fazer todos os ensaios planeados para que tudo corra bem. Mas temos como certo que o fator novidade pesará a todos. E mesmo do ponto de vista dos vários órgãos da Faculdade, se houver algo que seja inesperado ou não previsto, estamos todos disponíveis para mudar, alterar e corrigir algum aspeto, não querendo prejudicar o equilíbrio de ninguém.
Este desbravar é o que deve ser feito, quer do ponto de vista dos docentes, que fazemos exames há décadas da mesma forma, quer do ponto de vista dos discentes, que claro lidam mal com o fator incerteza.
Condensando os temas e os períodos de exames a serem mais curtos, perdem-se matérias, ou ficam os alunos menos preparados em conhecimento geral?
Joaquim Ferreira: A expetativa é que tudo corra melhor, mas haverá sempre dúvidas e por isso vamos parametrizar. E havendo sinais de alerta teremos de mudar as ações. Quer o OSCE, quer a escolha múltipla já não são novos em algumas disciplinas, por isso agora vamos aplicar a todos. É importante aqui referir que estes exames assim mimetizam a prática real. Não há nenhum médico que recebe o doente e veja só uma parte clínica isolada de todo o resto. O doente é o todo e queixa-se de vários sinais, sinais esses subjetivos e que nos obriga a sermos integradores.
Um aluno que tenha 50% numa prova final passa. Mas a questão que se coloca é se terá ele assim tantos conhecimentos para saber tratar de um doente? Porque houve outros 50% que falharam os conhecimentos? Qual é a escola que nos diz qual é um bom médico?
Joaquim Ferreira: Estamos agarrados a um conjunto de metodologias que, pelo menos enquanto médicos, devemos questionar. Dados na Educação Médica já questionam se esta percentagem faz sentido escolher como ponto de passagem 50% das perguntas. Esta metodologia já é desconfortável, mas não se muda tudo para não sermos demasiado abruptos, há que ser progressivo, com saltos, O OSCE já não são os 50% já são os avaliares que dão este salto qualitativo e veem se a pessoa está apta
Mas não devemos levar ao extremo um conjunto de mudanças que possam ser pouco tranquilas e que assumem uma passagem de tranquilidade e não de disrupção profunda.
Diminuição rácio Professor / Aluno
Carlos Calhaz Jorge é Professor Catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, Diretor do Departamento de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina de Reprodução. Dirige ainda o Centro de Procriação Medicamente Assistida do Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHULN) e foi recentemente eleito o chairman da European Society of Human Reproduction and Embryology (ESHRE).
Para o Professor Calhaz Jorge esta “é uma reforma de fundo que irá obrigar a modificações comportamentais e concetuais em muitas áreas do ensino, implicando a necessidade de os docentes se adaptarem a metodologias novas, o que nuns casos será menos complexo que noutros mas estou convicto de que todos acabarão por reconhecer o progresso que a reforma constitui e contribuir para o seu sucesso”.
Como vê a modernização do ensino da Medicina com esta nova reforma do ensino clínico?
Carlos Calhaz Jorge: Vejo como uma necessidade absoluta. Desde a última alteração curricular a Medicina sofreu enormes evoluções técnicas, as modificações nos meios disponíveis para o ensino e a interação entre docentes e discentes são muito profundas. Por outro lado, as expectativas de todos os envolvidos, e nomeadamente dos doentes, são completamente diferentes de há cerca de 15 anos atrás, data da última reforma do ensino.
O ensino clínico, com a obrigatoriedade de dar formação técnica mais integrada e consentânea com a realidade atual, tem que considerar na prática um conceito muitas vezes enunciado e, infelizmente, nem sempre concretizado – a medicina centrada no doente. E, tem também que adicionar aos temas clínicos clássicos o ensino em dimensões como a literacia médica, a gestão de situações clínicas e de cuidados de saúde, com enfase na valorização de decisões partilhadas, e o trabalho em equipa, para nomear apenas algumas.
Na sua opinião quais as pedras basilares para a nova reforma do ensino clínico?
Carlos Calhaz Jorge: Integração e inclusão de novas áreas de competências transversais. Embora seja concretizada também noutras áreas, a necessidade de integração era mais óbvia em relação às grandes áreas da medicina e cirurgia. E esta integração constitui o grande marco da reforma a implementar, diminuindo significativamente a estanquicidade das várias especialidades e privilegiando as atividades docentes integradas, nomeadamente, através de aulas teórico-práticas e seminários conjuntos.
A prevista redução do número de alunos por turma de aulas práticas será fundamental para promover um contacto mais estreito e adequado entre discentes e doentes participantes nessas aulas. E possibilitar aos alunos uma formação mais próxima da realidade da profissão em que a interação com pessoas, na sua complexidade como indivíduos únicos, tem que aprender a ser valorizada numa época em que o realce vai muito para os algoritmos.
Um outro fator relevante de integração é o modelo previsto para a avaliação do final do semestre, que se prevê passar a incluir apenas um exame escrito e um OSCE incidindo sobre todos os temas do semestre. Acaba assim a sucessão de inúmeros exames parcelares que motivam estudo segmentados.
As novas competências transversais propostas, a que já aludi na resposta anterior, inserem-se num objetivo de alargar horizontes para aspetos não clássicos, mas indispensáveis à prática da clínica moderna.
O ano letivo 2021/2022 vai ser um ano de aprendizagem, não apenas para os alunos, mas também para os Professores?
Carlos Calhaz Jorge: Absolutamente. Esta é uma reforma de fundo que irá obrigar a modificações comportamentais e conceptuais em muitas áreas do ensino, implicando a necessidade de os docentes se adaptarem a metodologias novas, o que nuns casos será menos complexo que noutros mas estou convicto de que todos acabarão por reconhecer o progresso que a reforma constitui e contribuir para o seu sucesso.
Há alterações significativas na área da Ginecologia e Obstetrícia com a Nova Reforma? Porque assumindo que se pretende uma medicina “olhando para o todo e não dividindo a doença e os doentes por partes” quais as grandes alterações no ensino da Ginecologia/Obstetrícia?
Carlos Calhaz Jorge: Tal como, por exemplo, a Pediatria, a Ginecologia e Obstetrícia tem peculiaridades que a tornam muito independente de outras áreas. Não haverá por isso modificações espetaculares no seu ensino clínico. No entanto, irá ser incrementado o recurso a modelos/simuladores que possibilitem o treino de atos cuja prática reveste um grau de intrusão e privacidade que impedem a sua concretização inicial em doentes. E as aulas teórico-práticas terão também um cariz mais de resolução de situações clínicas concretas.
Para o Professor quais as qualidades a observar no médico?
Carlos Calhaz Jorge: Esta é uma resposta muito difícil, tanto mais que qualquer médico está (ou deve estar) em constante maturação ao longo da sua vida clínica. Não podemos esperar que um jovem médico, acabado de formar, tenha as mesmas qualidades de um médico experiente. Nem na sua enumeração nem no seu grau de maturidade.
Dito isto, há características de personalidade de base (capacidade de empatia, empenhamento, valores morais e éticos, sensibilidade para o sofrimento alheio, clareza na ponderação de situações) sobre as quais se devem alicerçar sólidos conhecimentos técnicos em constante atualização intelectual e sobretudo reflexiva.
Cirurgia

Paulo Costa, Professor Catedrático de Cirurgia na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL), Diretor da Clínica Universitária de Cirurgia e Coordenador do 4º ano, fala na primeira pessoa sobre um dos temas centrais desta nova reforma do ensino, a Cirurgia.
A estrutura curricular dos 4º e 5º anos vai iniciar uma reformulação que não é apenas cosmética. O tempo de concordar ou não com a nova proposta de articulação das matérias a lecionar e com a logística que é inerente ao formato aceite, esse tempo já passou. Agora é o tempo de congregar os atores para fazer acontecer. Cabe-nos transportar para a realidade essa diferente arquitetura que nos foi proposta.
A Escola vai ter que saber adaptar-se a esta realidade a partir de setembro próximo. A Escola vai ter que acreditar que este caminho será eficaz na formação de médicos, que vão encontrar uma vida cheia de mudanças e ainda mais plena de meios para apreender o conhecimento em ebulição. A Escola vai ter que monitorizar ao detalhe, e em tempo real, cada proposta de ação e os efeitos resultantes dessa mesma intervenção – o que mais me ocorre dizer é que vai ter de ser um tempo de feedback multidirecional.
O grande teste à eficácia da mudança vai, provavelmente, ser a seriação dos nossos alunos no ranking da Prova Nacional de Acesso, e esse resultado depende tanto do formato de ensino, como do prazer de aprender e de ensinar a aprender. Não são as planilhas curriculares que vão impulsionar o sucesso.
Mas a questão que me foi colocada, centra-se na nova “casa da cirurgia”. A cirurgia não é só uma medicina com bisturis e um sofisticado armamentário de instrumentos operatórios, a cirurgia é uma “coisa mental” e “uma arte de interpretar-executar” – assim me formei cirurgião e assim tenho procurado transmitir aos que comigo convivem na cirurgia. Não se ganha o gosto, nem se aprende a cirurgia, a ler livros ou a ver vídeos. Os alunos de medicina devem ser expostos ao ambiente da cirurgia, o mais precoce e intensamente possível, sob pena de não se despertarem vocações cirúrgicas (toda a literatura educacional reforça esta asserção).
A cirurgia geral, quando ingressei nesta Faculdade, era ministrada em quatro “cadeiras” anuais. A cirurgia, o que perdeu em variedade de patologias, que desapareceram ou passaram a ter um tratamento não operatório, ganhou em sofisticação e complexidade de diagnóstico e intervenção. A integração dos cirurgiões em diferentes ambientes de decisão multidisciplinar não nos tornou menos cirurgiões, pelo que temos que continuar a ensinar a cirurgia nos diferentes patamares da evolução dos alunos, do conhecimento à proficiência.
O que esteve por trás de alguns pressupostos da reformulação curricular, foi precisamente uma procura de maior integração dos saberes, entre as “especialidades”. Sempre o corpo docente das cirurgias partilhou com agrado e afinco, o ensino integrado. Apenas a título de exemplo, na Cirurgia I, sempre tivemos aulas teóricas de oncologia, nutrição, cuidados intensivos e patologia, entre outras. Essa ideia sempre esteve presente na nossa planificação. Assim vai continuar a acontecer neste novo modelo e a sua planificação está praticamente concluída. Mais do que uma reformulação de conteúdos, podemos falar numa geometria diferente da sua exposição, integrando áreas de atuação próximas.
A passagem da aprendizagem prática, para um ensino de pequenos grupos (4 alunos) trouxe uma atomização do sistema, que conduziu a uma significativa redução do contacto com a cirurgia (8 manhãs de segunda a sexta-feira). Esta é a principal preocupação dos docentes. A otimização do tempo não é fácil de compatibilizar com a realidade da vida assistencial. As funções dos docentes de cirurgia terão que ser revistas e treinadas, para que o ensino à cabeceira do doente, nas consultas externas, nas reuniões multidisciplinares, na urgência e no bloco operatório, venha a poder ocorrer. Os alunos e os assistentes terão que se adaptar a uma necessária rotação, sendo substituído o assistente da turma por vários assistentes ao longo da semana, aparecendo a “figura” do tutor que acompanhará cada turma na sua viagem.
Vai exigir uma grande vontade e esforço de adaptação de alunos e de docentes.
Pergunta-me se consigo traçar o “perfil certo para um futuro grande Cirurgião”.
A resposta é: não se desenha esse perfil. Os caminhos para ser um Cirurgião, e as aptidões para os seguir, são tantos, que não existe o risco de se cair na monotonia de vias ou ambições profissionais. O grande Cirurgião é o que sabe tratar com eficiência e humanidade o “seu” doente, quaisquer que sejam as circunstâncias.
Perguntar ao “decano” dos cirurgiões académicos se é possível ser cirurgião académico, não deixa de ser interessante. Tudo está ligado, e se não está, temos que nos empenhar em reunir o que está disperso. Ensinar, investigar e operar estão de tal forma integrados na vida da cirurgia académica, que a sua execução é natural. A intensidade e o tempo que, em cada momento, dedicamos a cada um destes vetores, naturalmente se vai harmonizando ao longo da vida - por vezes operamos mais, outras investigamos mais, mas a linha basal é naturalmente o ensino, nas várias etapas de aperfeiçoamento, que quem nos procura para aprender, está a viver.
E a atividade administrativa? É um preço a pagar.
Termino como comecei. Este é o tempo de lançar o novo plano curricular a bem dos alunos da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
Cristina Bastos | Isabel Varela | Joana Sousa | Leonel Gomes
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