A prestação de melhores cuidados de saúde à comunidade tem sido um dos maiores desafios em todas as sociedades, por isso tem-se verificado ao longo dos séculos várias alterações no ensino da medicina de acordo com a aquisição de novos conhecimentos inerentes ao progressivo desenvolvimento científico e a preocupação dos formadores em preparar profissionais de saúde perfeitamente aptos para poderem responder de forma ajustável às várias solicitações no âmbito da assistência à saúde.
Anteriormente à fundação das universidades, tanto em Portugal como na Europa, em que professavam a religião cristã, o ensino das várias ciências, das artes e do ensino da medicina (que era apresentado ainda de forma muito superficial), funcionavam nas escolas existentes nos mosteiros e nas catedrais.
A mais importante destas escolas monásticas terá sido a do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, fundado em 1131 e pertença da Ordem de Santo Agostinho. De início, nos séculos XII e XIII, o ensino da medicina era exercido e direcionado somente aos monges, enquanto que nos séculos XIV e XV, já incluíam os clérigos e leigos, apoiado nos textos clássicos de medicina de origem grego-romana e árabe.
Em Portugal atribui-se os primeiros estudos médicos aos cónegos seguidores da doutrina de Santo Agostinho, tendo o rei D. Sancho I (1154-1211), incentivado e apoiado a sua formação prévia no estrangeiro, apesar de termos conhecimento de um reduzido número de vultos de renome na medicina portuguesa daquela época, nomeadamente Frei Gil de Santarém (1185-1265) e Pedro Hispano (1216-1276), nomeado posteriormente Papa João XXI, que estudaram em Paris e Vasco de Taranta que frequentou a universidade em Montpellier.
Por decisão do rei D. Dinis foi fundada por volta de 1289 a primeira universidade em Portugal com o nome de Estudos Gerais, tendo Portugal acompanhado o sistema educativo que naquela altura decorria na Europa.
Na Idade Média, os estudos ministrados na Universidade dedicavam-se ao estudo das ciências universais: as sete “artes liberais” (gramática, retórica, dialéctica, geometria, aritmética, música e astronomia), dois direitos (cânones e leis), medicina e teologia.
O curso de medicina foi considerado durante séculos como inferior em comparação aos outros cursos como por exemplo, o de cânones e leis que tinham grande prestígio. Até 1493 existia somente uma cadeira de medicina, e só no reinado de D. João II (1455-1495) passa para duas, a de Prima e de Véspera.
Também as diferenças dos proventos entre os lentes dos vários cursos eram bastante notórias. Assim, “em 1323 a remuneração anual de um mestre de medicina (200 libras) era três vezes inferior à de um mestre de cânones”.
Devido a estes fatores e ao longo dos anos, o ensino da medicina foi deteriorar-se até à grande reforma pombalina que ocorreu em 1772.
Naquela altura quem obtivesse um título universitário, quer fosse de bacharel ou de doutor, era considerado de grande importância. No entanto, estes cursos estavam limitados aos fidalgos, aos clérigos e aos descendestes de burgueses abastados. No ano de 1473, no Estudo de Lisboa, estudavam “… 41 moços, filhos de nobres e funcionários da corte, … muito provavelmente nos cursos de cânones ou leis”.
Por volta do ano de 1504, com a reforma de ensino que se realizou no reinado de D. Manuel I (1469-1521), para se obter o bacharelato em medicina era necessário a frequência deste curso durante cinco anos e tinha também de ter o bacharelato em artes (frequentando os cursos de lógica e de filosofia natural). Quem pretendia obter a licenciatura “eram argumentados pelos lentes da faculdade, em teses publicadas dois dias antes e escolhidas livremente pelos candidatos. O exame era feito na Sé, à porta fechada, e começava pouco antes do sol posto”.
Em 1537, depois de alguns anos da universidade ter passado da cidade de Lisboa para Coimbra (e vice-versa várias vezes) fixou-se definitivamente nesta cidade, verificando-se no curso de medicina várias alterações. Apesar do ensino médico continuar a basear-se nas obras clássicas como de Galeno, os estatutos de 1559 já referiam a inclusão da cadeira de anatomia humana com o ensino prático apoiado na dissecação de cadáveres provenientes do hospital, fato que muito raramente chegou a acontecer.
Foram várias as ações realizadas durante o reinado de D. João III (1502 –1557) que procuraram alterar tanto o ensino universitário como o ensino médico propriamente dito, por exemplo com o convite a Erasmo de Roterdão para lecionar em Portugal; a criação de 50 bolsas de estudo como oportunidade para os estudantes nacionais pudessem frequentar a Universidade de Paris; estabelecimento dos jesuítas em Portugal e a proibição de vários livros pelo Santo Oficio; fundação, em 1553, do Colégio de Santo Antão, em Lisboa, pelos jesuítas, os quais se irão tornar nos “intelectuais orgânicos do catolicismo durante o Ancien Régime”.
Apesar das modificações ocorridas com a passagem da Universidade para Coimbra, o número de alunos inscritos em medicina continuava a ser muito baixa como acontecia desde o século XIII. Em 1537, os alunos de medicina eram uma dezena num total de 642 inscritos, continuando a preferência e até mesmo de um aumento pelos cursos jurídicos em detrimento do de medicina.
Também por altura da regência do Cardeal D. Henrique, cerca do ano 1568, pressupõe-se a existência de uma cadeira de prática clínica, em que o ensino médico era realizado “à cabeceira dos doentes hospitalizados”.
Apesar da reforma universitária de D. João III em 1537 e mais tarde pelo Marquês de Pombal em 1772, o ensino da cirurgia, ao contrário da medicina, continuava a ser realizado fora das universidades, nalguns hospitais principalmente no Hospital Real de Todos os Santos, independente da medicina clínica até muito tarde, pelo menos até à criação das escolas médico-cirúrgicas de Lisboa e Porto, no ano de 1836.
Se por um lado os médicos eram designados pelo povo como de idiotas por não dominarem o latim, eram de 2000 no séc. XVI, considerados os únicos capazes de praticar a medicina, o Físico-mor e o Cirurgião-Mor “abusavam do seu privilégio concediam licenças a pessoas habilidosas para praticarem a arte de curar em locais onde não existiam ofertas para esses cuidados”.
Por volta do século XVIII, havia grande distinção entre os físicos e os cirurgiões, porque enquanto estes, mal sabiam ler e escrever, e aprendiam o ofício no hospital, os físicos para se formarem em medicina eram necessários "treze anos de estudo, com três ou mais exames” numa altura em que, “o diagnóstico do doente (o "conhecimento do pulso") era um acto médico por excelência”.
No reinado de D. João V (1689-1750) realizaram-se várias ações na reforma do ensino médico em Portugal, como o desenvolvimento da anatomia e da cirurgia, o convite embora recusado de Boerhhave, o grande mestre de Leiden para vir trabalhar em Portugal e o médico português que vivia e acabaria os seus dias em Londres, Jacobo de Castro Sarmento.
No entanto, só no reinado de D. José I (1714-1777) é que Portugal conheceu uma significativa reforma do ensino universitário nomeadamente no ensino de medicina inserido no esforço de modernização do país com a introdução do ensino das Ciências Naturais, da Física Experimental, da Química e com a criação dos primeiros laboratórios, e do primeiro hospital escolar.
Durante a reforma pombalina no ensino universitário e no curso de medicina, temos de enaltecer dois enormes influenciadores na evolução do ensino médico: Luis A. Verney (1713-1791), autor do Verdadeiro Método de Estudar para ser Útil á Republica e á Egreja e a famosa 12ª carta dirigida à arte médica; Antonio Ribeiro Sanches (1699-1782), autor do Methodo de Aprender e Estudar Medicina; e ainda Martinho de Mendonça autor dos Apontamentos para a educação de hum menino nobre.
António Verney, acérrimo defensor dos ideais iluministas, argumentou de uma forma geral, por um novo sistema de estudos, pelo progresso, pelo experimentalismo de raiz newtoniana, condenando o isolamento cultural do reino e o sistema de ensino jesuítico-escolástico. Na arte médica criticava-se “a formação escolástica dos alunos de medicina, ignorância das ciências básicas como a física, a mecânica e a história natural, a extrema decadência a que tinha chegado, entre nós, o estudo da anatomia humana. De facto, embora houvesse uma cadeira de anatomia, praticavam-se apenas duas dissecações por ano... e em carneiros, o que era "um retrocesso indesculpável em relação aos estatutos de 1559, pois estes já previam a anatomia sobre cadáveres fornecidos pelo hospital”.
Verney propunha que o curriculum fosse reformulado dando primazia à prática anatómica, o estudo das diferentes “instituições médicas” e à prática clínica hospitalar. Após a realização dos actos, o estudante ficava apto a exercer medicina.
No entanto, defendia que o ensino da cirurgia continuasse separada da medicina, fora da universidade e fosse realizado no hospital (nomeadamente no Hospital Real de Todos os Santos, em Lisboa), e que tivesse a duração de cinco a seis anos.
António Ribeiro Sanches, doutorado em medicina pela Universidade de Salamanca em 1725, um dos mais preferidos discípulos de Boherhaave, em Leiden, exerceu importantes cargos tanto na corte como nos exércitos imperiais russos, autor de várias obras e considerado um autentico enciclopedista defendeu, trinta anos depois de António Verney, uma profunda reforma de ensino em Portugal com “a introdução de novas matérias, definição de novas regras académicas e a secularização do pessoal docente” que levaram à obra a pedido do Governo “Methodo de Aprender e Estudar Medicina”.
Ribeiro Sanches expôs que era necessário que no curso de medicina fossem incluídos novos conhecimentos como, a fundação de um colégio destinado ao ensino das ciências médicas, a criação de um hospital escolar com um teatro anatómico, um jardim botânico, o laboratório e a botica. O ensino da medicina que até então se baseava em obras clássicas de Hipócrates, Galeno e árabe, deviam de ser substituídas pelas de Boherhaave.
Marquês de Pombal assumiu muitas das ideias de Verney mas principalmente de Ribeiro Sanches, verificando-se entre 1759 e 1772, a realização de inúmeras práticas desde a expulsão dos jesuítas até à fundação do Real Colégio dos Nobres ou da Real Mesa Censória, que propunha “uma lei visando a criação de um sistema de ensino elementar, público e laicizado”.
Depois de terem sido estudados as causas da decadência da universidade e de propor a sua reforma pela Junta de Providência Literária, em 1772 ficaram conhecidos os Estatutos da Universidade de Coimbra sob a inspeção do Rei D. José I.
Nesta reforma do ensino da medicina, foi dada uma enorme importância à prática clínica e à experimentação. Para além de terem criado outras instituições, das que foram referidas anteriormente, foi reestruturada a biblioteca, assumido a importância do conhecimento do francês e do Inglês, da organização do ensino propriamente dito como os horários, os textos a serem disponibilizados ou o controlo de presenças incluindo a exigência da frequência dos estudos preparatórios durante três anos antes do curso propriamente dito (cinco anos), a idade mínima de 18 anos, sendo expressamente proibida o exercício da medicina a quem não fosse diplomado pela universidade.
Passados cinco anos da implementação desta reforma, o ensino médico continuava a ser pouco frequentado. Nessa época o “estatuto socioeconómico do estudante universitário media-se pelo número de criados e de cavalos (ou mulas) ao seu serviço (Daí talvez o sentido do provérbio "Doutor da mula ruça")”. Os alunos estudavam novos temas e novos autores. Também as remunerações dos lentes de medicina estavam agora ajustadas aos dos Cânones e Leis, e eram considerados bastante altas para a época.
Nos últimos anos do seculo XVIII e princípio do seculo XIX, muitos bolseiros portugueses foram estudar para Inglaterra, o que mais tarde lhes proporcionou a ocupação de cargos de docência nas futuras escolas médico-cirúrgica e colmataram assim o deficiente ensino da cirurgia.
Em meados do seculo XIX ainda existia a rivalidade entre as profissões de médicos e cirurgiões, e apesar de se ter verificado um significativo avanço no ensino da medicina devido não só à reforma pombalina e ao desenvolvimento da ciência, o ensino médico era ainda muito deficiente, baseando-se muitas das vezes em autores antigos como Hipócrates.
Em 1825, D. João VI (1767-1826), sob influencia do cirurgião-mor do reino, Teodoro de Aguiar criou as Escolas Régias de Cirurgia de Lisboa e Porto.
Mais tarde, em 1836, com a fundação das Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e do Porto (a cirurgia passou a estar integrada no ensino universitário), o ensino médico alcançou uma fase de modernização onde se destacaram já na segunda metade do seculo XIX figuras ímpares da medicina portuguesa como Câmara Pestana, Miguel Bombarda, Ricardo Jorge ou Sousa Martins, e só trinta anos depois, em 1866, deixou de haver distinção entre cirurgiões e médicos.
Até 1910 o ensino médico foi ministrado nas Escolas Médico-Cirúrgicas e só após a proclamação da República, em 1911, foram substituídas pelas Faculdades de Medicina de Lisboa e do Porto. Nesse ano foi criada por decreto, a figura jurídica do hospital escolar, tendo o da Faculdade de Medicina de Lisboa sido instalado no Hospital de Santa Marta. “A reforma do ensino superior, na qual foi incluída a reforma do ensino médico, foi considerada pelo regime implantado a 5 de outubro de 1910 como uma prioridade e um investimento nacional”.
As Faculdades de Medicina tinham como propósito a modernização estrutural do ensino e da formação dos médicos, constituído pelas disciplinas básicas como a física, o ensino nos hospitais e a elaboração de uma tese, a formação dos médicos para desempenharem papéis complexos, mas eficazes para a conservação e resolução da saúde individual, pública e social, “mas também regulamentos das faculdades reorganização dos estudos, formação médica e institucionalização de outros estabelecimentos de saúde”.
Naquela época “pode-se designar como uma elite científica, cultural, política o conjunto de médicos e professores de medicina: Miguel Bombarda, Eduardo Mota, May Figueira, Ricardo Jorge, Oliveira Feijão. Silva Amado, Curry Cabral, Ferraz de Macedo, Augusto Celestino da Costa, Egas Moniz, Henrique de Vilhena, Francisco Gentil, Júlio de Mattos ou Bettencourt Raposo”.
Nos anos 30 do século XX, verificaram-se novas reformas no ensino médico nomeadamente, no acesso ao curso de medicina. A partir dessa época todos os alunos do 7º ano da seção de ciências (excluindo os da seção de letras como até então tinha acontecido) tinham a possibilidade de frequentar o curso de medicina, que a partir dessa altura passou a ser de seis anos.
A partir dessa altura e durante vários anos (1948, 1955, 1975, 1981, 1986/1987), sucederam-se várias reformas no ensino de medicina, verificando-se também entre 1988 e 1994/1995, a criação de vários grupos e comissões, com o objetivo de estudarem e apresentarem propostas, e projetos de reformas necessárias a serem incorporadas no ensino da medicina, tendo-se iniciado no ano letivo de 1995/96 “o novo programa curricular para o 1º ano do curso de licenciatura em Medicina”.
Com a implementação do Processo de Bolonha, a última reforma do ensino clínico efetuou-se em 2006/2007.
Desde a primeira década do século XXI, tem-se verificado várias lacunas na estrutura curricular e a necessidade de procurar responder de forma positiva às necessidades impostas pelos estudantes. Foi realizado um profundo trabalho de análise ao ensino clínico e depois de ter sido apresentado as conclusões, a proposta final da reforma do ensino clínico foi apresentada no final de 2018. Estava planeado que a nova reforma fosse implementada no ano letivo de 2020/2021, mas devido à pandemia Covid-19 foi decidido que a sua implementação fosse realizada no ano letivo seguinte, ou seja, em 2021/2022.
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