- Por Fausto Pinto, no mês do Coração
Talvez já não seja suficientemente impactante se lhe dissermos que o pódio das mortes mundiais pertence às Doenças Cardiovasculares.
Mas será que tem ideia do número de vidas que terminam por ano, por todo o mundo? Quer guardar uns segundos para o palpite certeiro?
Dados avançados pela Organização Mundial de Saúde apontam para 18 milhões e 500mil mortes em cada ano, só por doenças ligadas ao aparelho cardiovascular, o que traduz 31% do total de mortes por todo o mundo, num só ano. Mais impactante se torna esta informação se lhe dissermos que a maior parte dessas mortes poderia ter sido evitada, mudando hábitos de vida atempadamente e tendo sido acompanhado precocemente.
Não é por isso pouco relevante celebrar datas para insistir numa mensagem que continua a não a ter a força suficiente para mudar os números à escala mundial.
Maio foi o mês escolhido para recordar que esta mensagem ainda não chegou ao coração de todos e por isso mesmo este foi mais um ano de iniciativas nacionais a insistir na tónica “Maio, Mês do Coração”.
Projetos desenvolvidos por várias equipas de trabalho, têm sempre um mentor que dirige a coordenação de todas as equipas e ações.
Assumiu a Direção do Serviço de Cardiologia em 2014, já passaram 7 anos. Em 2016 acumulava outro patamar dentro do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, o Departamento do Coração e Vasos. Presidente da World Heart Federation até 2022, atual Diretor da Faculdade de Medicina, Fausto Pinto recebemo-nos na sua grande área de gestão. Uma área com 103 médicos, dos quais 67 são especialistas e 36 ainda em formação; onde se incluem 180 enfermeiros, 39 técnicos de diagnóstico, 19 assistentes técnicos e 111 assistentes operacionais. O mesmo que dizer que Fausto Pinto espera que as suas 472 pessoas trabalhem numa média semanal 16 500 horas ao serviço daqueles que continuam a marcar o pódio das mortes, os doentes cardiovasculares.
Andamos com ele pelos corredores e vamos falando às equipas que se encontram ali naquele preciso turno. Na sala de cardiologia de intervenção encontra-se um doente Covid em procedimentos, em todos os quartos há doentes internados, carrinhos de apoio repletos de material e tantas pessoas fardadas a circular, enquanto os monitores espalhados por todos os corredores, vão registando os parâmetros vitais de todos os internados. Não há qualquer alarme ou agitação por ter chegado um doente Covid ao serviço, como não há tensão no que toca ao som dos sinais vitais, as dinâmicas são rotina habitual de todas estas equipas e todos estão mais do que treinados a reagir e a proceder naturalmente.
Se pensarmos que estamos num Hospital Universitário que é igualmente terciário e de fim linha, sabemos então que isso quer dizer que, este lugar que pisamos, dá assistência a todo o tipo de doentes, principalmente aos casos mais delicados e complexos. E sabemos que isso obriga a uma inerente exigência de excelência clínica, mas igualmente incutida por estas equipas ao ensino e à investigação.
Todos estes elementos se equilibram através de uma gestão, organização e estruturação do Serviço / Departamento de Cardiologia. Foi diante deste quadro que pedimos para ir conhecer um pouco estas equipas que diariamente fazem por reverter os números nacionais. Os esforços sucessivos destes elementos são sustentados numa qualidade humana, mas também tecnológica, uma das áreas de maior acesso à inovação e desenvolvimento, razão para que sejam conhecidos como um dos grupos mais próximos da Medicina moderna. "Esse deve ser um dos principais objetivos de um Departamento académico médico", reforça-nos o Diretor deste Departamento. Fausto Pinto explica-nos, “sendo esta uma área muito tecnológica, o acesso e a capacidade de implementar as novas tecnologias é algo que é preponderante e que, por estar em desenvolvimento muito rápido, exige simultâneo acompanhamento de toda a área e equipas. É por isso uma área muito cara, mas que permite no entanto um tipo de intervenção que tem sido muito responsável pela melhoria muito significativa da qualidade e da quantidade de vida das pessoas que necessitam de cuidados na área Cardiovascular”.
Mas quem são as suas equipas e como estão organizadas?
Distribuídos por três Serviços, o Departamento do Coração e Vasos é constituído pelos serviços de Cardiologia, Cirurgia Cardiotorácica e Cirurgia Vascular. Dentro do Serviço de Cardiologia há Unidades e cada uma delas com um coordenador e uma equipa sob a sua alçada. Em paralelo tem ainda dois Polos, Santa Maria e Pulido Valente. Santa Maria contém a Unidade de Internamento, de Cuidados Intensivos, de Cardiologia de Intervenção, onde se localiza o Centro de Cardiopatia Estrutural, este referência a nível nacional, a Unidade de Técnicas não-invasivas, ainda a de Electrofisiologia e Pacing, bem como a de Ambulatório. Já no Pulido Valente contam com a Unidade de Reabilitação Cardiovascular, a Consulta de Hipertensão Pulmonar, este também Centro de referência, o Hospital de Dia de Insuficiência Cardíaca, contando ainda com uma pequena Unidade de Cuidados Paliativos nos doentes para a Insuficiência Cardíaca. Há ainda uma Unidade que consiste em 11 camas de internamento, consulta externa e exames complementares de diagnósticos não-invasivos.
Alguns dos profissionais estão em mais do que uma Unidade, já que são tantas as áreas de ação e exercem clínica e docência, a maior parte ainda investigação. Para que a coordenação se mantenha agregadora, são feitas múltiplas reuniões periódicas. É a interação entre Unidades que garante as atividades internas, mas igualmente assegura o acompanhamento dos doentes que chegam às outras várias áreas clínicas de Santa Maria, mas igualmente a hospitais de fora de Lisboa.
Com o tempo Fausto Pinto foi-se rodeando das suas melhores escolhas para coordenar todas as equipas das suas Unidades, todos com um perfil sénior. As direções de Serviço são de nomeação da Administração Hospitalar, mas dentro de cada Serviço as nomeações são da responsabilidade do Diretor, em articulação direta com o Administração hospitalar.
O sucesso das intervenções têm nomes e rostos. Na Cardiologia de Intervenção Pedro Cardoso, na Electrofisiologia e Pacing João de Sousa, no Internamento Dulce Brito, no Ambulatório Manuela Fiúza, nas Técnicas Não-Invasivas Ana Almeida, na Hipertensão Pulmonar Nuno Lousada. Tendo sofrido já este ano uma reformulação, a UTIC tem um responsável pela Unidade de Cuidados Intensivos do Departamento, Hugo Corte Real. Do Polo do Pulido Valente é Palma dos Reis, na Reabilitação Cardiovascular Ana Abreu e na Unidade Mais Sentidos, ou seja nos Cuidados Paliativos, Parente Martins.
Mas as equipas do coração não são só estas.
Porque este é um Hospital Universitário, o ensino não está num plano inferior de dedicação. E a formação dá-se aos mais variados níveis, na formação pré-graduada, acolhem alunos do Mestrado Integrado em Medicina; na formação pós-graduada, onde têm os internos da especialidade, e depois várias atividades extracurriculares, como é o caso do Congresso das Novas Fronteiras em Medicina Cardiovascular, desenvolvendo ainda áreas mais temáticas como as Novas Fronteiras em Miocardiopatia, em Cardio-Oncologia, em Hipertensão Pulmonar, ou Oclusões Coronárias Crónicas.
Há ainda em cada uma das grandes áreas, ações de formação específicas para quem procura a subespecialização dentro da Cardiologia.
Não menos importante, a investigação assume grande relevo, tendo vários grupos ativos em simultâneo. O Gabinete de Apoio à Investigação Cardiovascular (GAIC), que dá apoio administrativo nos cerca de 100 estudos que decorrem atualmente, coordenado por Inês Zimbarra Cabrita; o Centro Cardiovascular da Universidade de Lisboa ( CCUL), que engloba várias unidades de investigação, desde a investigação mais básica, à mais clínica e ambos com vasta produção, a que Fausto Pinto preside e com Susana Constantino como diretora executiva. Por fim, a Cetera, uma CRO (clinical research organization), assegurando a coordenação de estudos que são feitos nacional ou internacionalmente. As ligações mantém-se ainda com vários centros da Europa e outros pontos do mundo, bem como a participação de vários elementos do Departamento na actividade de várias sociedades científicas nacionais e internacionais.
Periodicamente há reuniões de coordenadores, entre Fausto Pinto, Ângelo Nobre (Diretor da Cardio-Torácica) e Luis Mendes Pedro (Cirurgia Vascular), com a coordenação da enfermagem e dos técnicos cardiopneumologistas. Depois, todas as quartas às 8h30 acontece a reunião do Heart Team, onde se discutem os casos dos doentes entre a área Cirúrgica e a Cardiológica, definindo assim as melhores estratégias terapêuticas.
Ainda às quartas, pouco tempo depois, às 12h30 juntam-se para a reunião clínica semanal do Serviço. Há ainda outras reuniões periódicas de vários dos grupos, como, por exemplo, da Reabilitação Cardiovascular, das Técnicas Não-invasivas, assim como da Hipertensão Pulmonar.
Diariamente há ainda as visitas às enfermarias e unidades de cuidados intensivos, servindo também de interface para a parte didática.
De extrema relevância falar destas Unidades e pessoas se acrescentarmos que 80% do aumento da esperança de vida, nos últimos 50 anos, foram devidos aos avanços da área Cardiovascular. Contradição, certo? Já que persistentemente continua a ser a principal causa de morte em todo o mundo. Foi precisamente por aí que começámos a nossa conversa.
Professor como é que se explicam estes números de eficácia nos tratamentos e depois a taxa de mortalidade é tão ampla?
Fausto Pinto: Somos muito bons a tratar, péssimos a prevenir. Conseguimos identificar muito bem os alvos terapêuticos e a desenvolver as tecnologias que permitem quer o diagnóstico, quer a terapêutica de grande parte das situações cardiovasculares, mas continuamos a assistir a um crescendo da Doença Cardiovascular. Continuamos a ter os chamados fatores de risco cardiovasculares e que tem como consequência o aumento da prevalência da diabetes, da hipertensão, das dislipidemias, e mesmo ainda do tabagismo. Estes fatores acabam por ter, ainda hoje, o impacto que sabemos. Mas voltemos a falar dos números, seria um problema se estes fatores fossem incontornáveis, mas 80% têm solução, são evitáveis e potencialmente preveníeis. O esforço está na cíclica tentativa da prevenção dos riscos e promoção dos estilos de vida saudáveis, tentando o mais possível reduzir o impacto (internacionalmente designado por burden) destas doenças.
Há, inclusivamente, uma diretiva da Organização Mundial de Saúde que traça como objetivo reduzir, até 2030, em um terço a morte prematura por doenças cardiovasculares. E apesar destas metas terem sofrido algum abalo com a pandemia, mantém-se como um dos objetivos.
Explicava-nos que, com a pandemia, os encontros sofreram mudanças, muitas delas e principalmente a investigação passaram a encontros remotos e as próprias reuniões clínicas são hibridas, metade presencial, mas boa parte nos postos de trabalho de cada um.
Abriu-se um novo paradigma nas equipas de trabalho com a pandemia?
Fausto Pinto: Sem dúvida, a parte digital e os encontros remotos vieram para ficar, até porque se poupa tempo, permite estender e programar melhor a atividade de cada um. Claro que as reuniões presenciais serão sempre importantes, mas há algum tipo de encontros que poderá mesmo mudar.
Outra das vantagens das reuniões online é o facto de permitir acesso a muitas mais pessoas. Os congressos, que no passado reuniam um limite de pessoas, hoje em dia estão amplamente mais abertos, mantendo regras de acesso, claro. Mas o congresso passou a ser mais abrangente, abrindo portas a pessoas que dificilmente iriam se fosse presencial. Basta vermos o Congresso Europeu de Cardiologia, que é o maior na área Cardiológica a nível mundial, costuma ter em números redondos 30 mil pessoas, o ano passado, como foi totalmente virtual, teve 120 mil inscritos. Chegou a locais onde nunca chegara antes. E este é o lado positivo, o da disseminação, e não retirando a importância do face to face e dos contactos informais para estabelecer redes, facto é que se valorizam as comunicações e se desenvolve a tecnologia. Há outro ponto curioso assim como importante, se dantes precisávamos de ir em longos voos até ao Japão e depois de um congresso, partir para o Brasil, hoje basta agendar as horas certas do encontro num mesmo dia e já tudo é possível.
E sobre a proximidade do doente na relação com o médico? Ele manteve-se a vir ao Hospital?
Fausto Pinto: Na fase inicial da pandemia houve medo e as pessoas não vinham ao Hospital. Tivemos nas primeiras semanas, de março a abril, uma queda para cerca de metade das pessoas, como foi o caso nas situações hiperagudas, como o enfarte agudo do miocárdio. Isto aconteceu em todo o mundo, há dados que o comprovam. No caso do enfarte agudo do miocárdio, vindo a pessoa a tempo, nós conseguimos tratá-la. O problema foi quando tivemos casos em que as pessoas vinham uma semana depois e já não havia muito a fazer para salvarmos a situação. Por outro lado, a mortalidade em casa e nos hospitais aumentou, com o medo as pessoas não vinham ao hospital e algumas morriam em casa, ou quando chegavam já a situação estava bastante grave, acabando aqui por falecer.
Há mais números a ter em conta. Em todo o mundo temos duas a três vezes mais mortalidade do que normalmente aconteceria em condições normais. Se a pessoa vem nas primeiras 12 horas, o risco de mortalidade é à volta dos 3%, mas se a pessoa vem uma semana depois, a taxa pode ir até 12%. É bastante frustrante. Em apenas um dia aqui em Santa Maria aconteceu algo completamente atípico, tivemos três ruturas cardíacas algo que raramente vemos hoje em dia.
Depois das primeiras semanas mais complicadas, a partir de maio de 2020, elaborámos um plano para realizar uma recuperação rápida da atividade do Departamento, considerávamos que os doentes cardiovasculares deviam ter a maior proteção possível, sendo esta patologia uma das mais urgentes. Com o apoio da administração, o retomar da atividade foi progressivo e rápido, o que fez com que conseguíssemos eliminar as listas de espera em algumas áreas. Houve a necessidade de adaptação e restruturação do funcionamento dos serviços, deixando de haver aglomerados de pessoas, o que possibilitou a reorganização dos espaços e mais recurso à teleconsulta, o que facilitou que se mantivesse o contacto e a confiança com os doentes.
A pandemia trouxe-vos acréscimo tecnológico e novos mecanismos de suportes para os doentes?
Fausto Pinto: Na parte específica cardiológica não diretamente, o que aconteceu foi que determinados dispositivos tecnológicos foram mais utilizados, como a ECMO. Agora, quanto ao vírus em si, já é outro tópico, se durante muito tempo não havia nada para tratar e ainda hoje, há muito pouco, não podemos ignorar a maior descoberta na ciência dos últimos tempos, a vacina para a Covid-19.
Como está a Cardiologia neste momento atual?
Fausto Pinto: Estamos a funcionar de forma normal, apenas com pequenas oscilações, mas aquilo que se prevê, neste momento, é que haja um aumento significativo do número de doentes com patologia cardiovascular. O mesmo se aplica à oncologia, as áreas com maior impacto indireto devido à pandemia Covid-19. Em termos globais, durante a pandemia as pessoas estiveram menos vigiadas, menos acompanhamento no controlo da hipertensão, da diabetes, etc. A inação que as pessoas tiveram nos períodos de confinamento, aumentou a probabilidade de as pessoas desenvolverem problemas mais significativos. Portanto, agora esperamos um pico na patologia cardiovascular e é preciso preparar o Sistema Nacional de Saúde (SNS) para dar resposta ainda à pandemia, mas também ao aumento da procura, de uma forma geral, principalmente na área cardiovascular e na oncológica. Neste sentido, estamos a trabalhar para organizar os serviços para conseguir dar a resposta mais adequada a cada caso.
Temos também um grande projeto que já está alguns anos a ser trabalhado, que consiste numa expansão e restruturação física do Departamento Cardiovascular, com a criação de uma Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) única e que juntará todas as áreas num só lugar.
É incontornável falar da sua ligação ao ensino e o Professor referenciou sempre que este é um Hospital Universitário e tem lutado muito por esse ponto. Sente que quando afirma esta mensagem fala para o vazio considerando o discurso algo inglório?
Fausto Pinto: Não basta apenas dar o nome e juntar Faculdade e Hospital, é importante dar-lhe instrumentos que permitam ser geridos de forma adequada à sua função. Se isso não acontecer pode tornar difícil a função destas estruturas. Na minha opinião, o tipo de organização para um hospital que tem como única função a prestação de cuidados médicos, que é muito importante obviamente, é completamente diferente de outro que tenha três atividades dentro do mesmo espaço. E, hoje em dia, a forma como estamos organizados em Portugal, independentemente do tipo do hospital, a organização hierárquica é igual. Eu acho que um Hospital Universitário deveria ter uma gestão e uma hierarquia distinta, devia ter uma forma de financiamento distinta e devia ser gerido de forma integrada, ou seja, quando dividimos muito as chefias estamos a diluir muito as responsabilidades e a perder eficácia. Seria muito mais eficaz termos apenas uma estrutura com apenas uma tutela para cumprir com estas múltiplas funções.
Em Portugal, nós temos ainda um sistema que tem muita dificuldade em fixar os profissionais de saúde na mesma instituição e isso é importante para o seu desenvolvimento.
Interventivo nas causas em que acredita, muito particularmente ao longo da pandemia. Enquanto foi Presidente do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas, vários foram os comunicados que pediam que o CEMP fosse tido em conta antes de serem tomadas algumas decisões nacionais, ligadas à Saúde. Onde o vamos ver o Professor nos próximos tempos?
Fausto Pinto: (Sorri) Na direção da FMUL termino o mandato em julho de 2022. Como Diretor do Departamento de Coração e Vasos, espero continuar ainda uns bons anos e ver concretizado o plano de restruturação do mesmo, o que representará um grande reforço na capacidade da instituição dar resposta á sua tripla função de prestação de cuidados médicos, formação pré e pós-graduada e investigação, na área cardiovascular.
Joana Sousa
Leonel Gomes
Equipa Editorial