Tem cerca de 30 mil horas de navegação e 18 anos de embarque.
Hoje em dia diz que pode haver alguém que goste tanto da Marinha quanto ele, mas mais do que ele, garante que não há. Com sentido de Estado, a primeira vez que rasga o sorriso é quase no final da nossa conversa, quando declara o seu fiel amor à Marinha.
Encontro-o no gabinete, que o próprio diz ser, muito “possivelmente, o mais bonito do país”.
Sala iluminada, mesmo sendo revestida a madeira, tem na sua companhia a história da ida do Rei D. Carlos, cujo lugar era escolhido como casa de férias e para ir caçar, e o olhar atento de outro Rei, D. Pedro V que, com a sua mulher, a Rainha Dona Estefânia, reconstruiu o palácio do Alfeite. Herança dos grandes, os que habitam esta sala, que da janela veem a bacia de manobra do Alfeite, continuam a preencher a História do país com feitos que assinam a bravura de um povo que sempre fez frente ao mar.
É Vice-almirante e o atual Comandante Naval, Alberto Silvestre Correia, rendeu ao Vice-almirante Henrique Gouveia e Melo, e tomou posse já este ano, em janeiro, numa cerimónia presidida pelo Chefe do Estado-Maior da Armada, o almirante Mendes Calado.
Habituado que está a comandar fragatas e forças navais, em missões internacionais, enquanto Comandante, tem a sua responsabilidade de desenhar o planeamento operacional das forças e unidades navais, de fuzileiros e mergulhadores.
Em praticamente um ano de confinamento, a pergunta vai-se adensando, diante da perda do controlo, causada pela pandemia, como gerir o comportamento humano dentro do caos?
Líder de equipas, os anos e as formações que foi tendo, deram-lhe uma sólida capacidade de comando. Comando ativo, principalmente dentro do caos. Mas como se consegue comandar assim e que disciplina é necessária para que tal aconteça?
Para entender um líder assim, que em breve fará parte de um grupo de formação em Liderança, Operating Theatres Leadership and Perioperative Practice Management, fomos procurar o homem por detrás do comando. O primeiro preconceito desfez-se de imediato, quando julgamos que a emoção pertence apenas aos mais frágeis.
Natural de Abrantes, Alberto Silvestre Correia é filho de pai militar.
Acabou o liceu em 1976, altura em que o país e o ensino se agitavam sem grande norte, ainda consequência do 25 de abril. As greves predominavam mais que as aulas presentes e, apesar da elevada média final de ano, sabia que lhe faltavam bases para estar intelectualmente apto como desejava, para fazer uma formação superior. Resolveu então estudar por si, método importante para filho de um Oficial do Exército.
Queria ficar ligado à agricultura, tirar uma licenciatura na Escola Agrícola, mas o pai achou que não lhe encaixava bem o papel de homem da terra e a verdade é que não se enganou, o rapaz do Ribatejo viria a tornar-se homem do mar. Depois de cumprir serviço cívico, entrou em 1977 em Engenharia, no Técnico.
Na família não havia qualquer tradição da Marinha, mas o pai acabava de lhe lançar novo desafio, devia concorrer também à Escola Naval, porque o grau de exigência era elevado e a preparação seria à altura do homem que queria que o filho fosse. Exame muito difícil, diz-me, mas lá acabou por entrar, desmerecendo a sua nota que mesmo tendo sido menos elevada daquela a que estava habituado, lhe permitiu entrar na Marinha, desistindo do Técnico. Por lá foi ficando, quem o ouve à primeira impressão, pensa que não levou a Marinha muito a sério, engana-se, mas como personalidade vincada que tem e homem de convicções, entendia que o sistema pedagógico valorizava demasiado as funções e esquecia parte da essência das pessoas. O estilo hostil que descreve desses tempos não lhe marca, aliás, qualquer traço do rosto, o que não significa que não mantenha, à risca, as devidas estruturas no lugar que a razão o ensinou a manter.
Nos tempos de rapaz chegou a jogar futebol e hockey em patins, antes de entrar em campo sentia um nervosismo que lhe tocava os sinos do medo, o medo, esse que nos aponta a possibilidade de falhar, mas que para os líderes estimula ainda mais a ir para a arena. Era por isso que, diante dos factos e quando entrava em campo, esquecia tudo e dava o melhor. A adrenalina já lhe dava mostras daquilo que viria a ser e, por isso, não vergou, continuou a navegar rumo a um mar alto, sem terra firme para o segurar. Caminho designado aos líderes.
Foi precisamente liderança que foi apurar, treinando em Inglaterra na Royal Navy FOST (Flag Officer Sea Training), são as siglas daquilo que consistia o seu treino, cenários simulados de um caos tão extremo que, ao fim de um mês e meio, completo que estava o primeiro ciclo de treino de certificação, pesava menos 20 quilos.
Sentido de nobreza de carácter, acha que só se atinge a competência para se mandar alguém fazer algo, quando o próprio também já executou essa mesma tarefa. Recorda, sem me detalhar, a dureza física e psíquica dos seus 20 e poucos anos, quando estava sujeito a maiores sacrifícios. Hoje, e olhando para esse quadro que tem na sua memória, recorda-se pelo que passou e decide não replicar o mesmo ao outro, exercício de humildade que o poder tende por vezes a cegar.
Católico, diz-me contudo que não pratica a sua religião, não obstante respeita todos os credos, não havendo um só que lhe cause entropia, desde que não se tornem fundamentalistas as suas práticas. A fé, é algo que mais facilmente chama de "estrelinha da sorte", mas agradece-a silenciosamente e sozinho, quando se desloca até ao Santuário de Fátima, não para rezar, explica-me, mas para meditar e fazer um exercício de gratidão.
Como se balança o espírito do Vice-almirante que, comandou equipas em árduas missões e geriu conflitos armados, com o homem espiritual, que sente a dor dos que já partiram sem direito à glória?
Atualmente a ver uma série de guerra, Band of Brothers, que retrata o momento da invasão da Normandia, recorda-me precisamente o balanço entre a bravura e a fragilidade humana. Numa altura em que prestou serviço em Bruxelas, e veio de carro até Portugal, decidiu ir visitar as praias onde desembarcaram as tropas aliadas. Protagonista dentro de um tempo que já não foi o seu, confessa-me que sentiu o cenário de guerra como se dele fizesse parte, "imaginei os 7 mil navios a mandar lanchas e obuses, andei pelas fortificações e nos subterrâneos onde estavam os alemães”. Comovido, descreve-me que foi até ao Cemitério americano acima de Omaha Beach (a praia que, na manhã de 6 de junho de 1944, foi palco de um banho de sangue para as tropas aliadas e onde fica o cemitério) e onde ficaram sepultados cerca de 10 mil americanos, em que a idade média era de 21 anos. “Alguns não perceberam o que foram fazer, porquê, para quê”, mais à frente, explicar-me-ia a importância de se saber dar estas respostas às equipas.
Homem do mar, facto é que, já o navegou tempo que lhe chegue, no entanto, entrar em águas movimentadas, é como entrar no escritório, apesar de ter tido uma pequena embarcação de recreio e de ter feito uma viagem a bordo de um cruzeiro, pernoitar em águas profundas era só em missões. Agora, vê o mar à distância, muitas vezes enquanto passeia até ao Guincho, porque vive em Oeiras, pensa sempre que vê o mar agitado, "ainda bem que não estou ali". Atravessou grandes temporais que lhe agitaram cada partícula do corpo, "quando balança, balança para todos de igual modo", conta, enquanto reforça que, a convivência em espaço apertado, tinha dois efeitos esmagadores, ou a amizade inabalável de uma vida, ou a saturação de ter de ver a mesma pessoa (indesejada) todos os dias. Mas, até no convívio indesejado, me refere, que foram essas, as pessoas que mais o ensinaram a tornar-se melhor.
Aquilo que a Marinha lhe deu foi muito mais do que esperou um dia pedir, pelas pessoas que contactou, os lugares que viu, as experiências de liderança que viveu. Homem do mundo digo-lhe eu, mas corrige-me, " para leste só fui até ao Meridiano da Índia, nunca fui para lá disso", mas a verdade é que já percorreu muitos lugares e liderou muitas vidas.
Diante da situação pandémica que vivemos hoje, não houve tempo para planear nada. Vimo-nos diante de um inimigo sem rosto que não nos deu tempo de preparar estratégias e apareceu silencioso, invadindo o espaço devagar. Como é que se combate um inimigo que é invisível?
Vice-almirante: É um combate diferente daquele que, mesmo nós militares podemos equacionar nos nossos cenários mais improváveis. Nós estamos preparados para lidar com inimigos que não têm rosto, como os terroristas, que não sabemos quem são, de onde vêm, como se podem disfarçar. Encaramos agora este vírus como um ser sem rosto e que nos perturba e vai fazer confundir aquilo que é o básico, que entendemos como os fundamentos para a nossa existência, conforme nós a concebemos. Ou seja, nada disto era previsível, nem para nós militares que lidamos com os cenários mais estranhos. Se bem que alguém, do mundo cinéfilo, conseguiu produzir uma peça que fazia antever uma possibilidade como esta que se veio a concretizar e gerou o caos. O caos é exatamente alterar de tal forma os princípios e os pressupostos, com os quais sabemos lidar e para os quais treinamos, e aqui subverteu-se completamente o cenário para uma coisa completamente desconhecida, e que veio a gerar a confusão generalizada. As pessoas ficam desnorteadas porque nada do que aprenderam, os seus skills parecem inócuos e, que não vão resolver o problema. É então que temos que improvisar e isso requer experiência, inteligência, sentido de oportunidade, não perder a cabeça, saber redefinir prioridades em função daquilo que nós vamos vivendo, ser racional. Mas absolutamente, é pôr a racionalidade em cima de tudo e a emotividade a desaparecer por completo. Imagino que num cenário de caos, do ponto de vista médico, também se treine. Deixe-me aplicar à minha realidade, uma guarnição, ou seja, uma tripulação de uma fragata tem um total de cerca de 200 homens e mulheres. Se esta fragata for impactada por um míssil de superfície, a previsão de média de baixas é da ordem dos 35% a 40%, ou seja, cerca de 75 a 80 são baixas, não quer dizer que morram, mas ficam indisponíveis para o combate, necessitando de cuidados médicos. Mesmo as outras que sobrevivem ficam num estado de choque emocional com o qual é preciso saber lidar. E se me pergunta, mas estão preparadas para isso? Claro que não estamos! Mas pensámos e o facto de pensar previamente, ajuda a reagir, quando já não há tempo para pensar numa reação que temos que adotar. Por isso o treino é muito importante.
E esta preparação para o caos treina-se?
Vice-almirante: Fazemos vários treinos de certificação para os navios de guerra. Um desses treinos é feito em Inglaterra e os cenários que fazemos são muitas vezes mais exigentes até daquilo que podemos encontrar na realidade. Somos levados à exaustão do ponto de vista emocional, porque o caos leva a essa exaustão emocional e as pessoas têm que que continuar a ser capazes de reagir debaixo de muito stress. E, quando têm que abdicar daquilo que é o princípio básico, que é cumprir a missão para passar a reformular tudo e só sobreviver. Deixe-me ilustar... Nós tínhamos três níveis de ambição, em função da gravidade da situação. Quando temos o navio pronto e com a guarnição treinada, vamos combater. Se o navio leva um impacto, ou por incêndio, ou alagamento, se é atingido por bomba, míssil, ou torpedo, e mesmo que eu já não consiga combater, nós vamos tentar que navegue para, pelo menos, sairmos dali, para tentarmos reparar as avarias. E se não conseguirmos sair dali, mas tentar manter o navio a flutuar. Ou seja, isto quer dizer que temos de adaptar o nosso nível de ambição às circunstâncias que estamos a viver e àquilo que temos disponível, de uma forma absolutamente racional, aceitando de forma inexorável as perdas que já sofremos, e aquelas que vamos sofrer. Se a pessoa se deixar afetar emocionalmente pelo ambiente, vê um dos seus melhores amigos a morrer, a esvair-se em sangue, nós temos de continuar a combater. Ou temos de continuar a tentar que o navio consiga apagar o incêndio, ou estancar um alagamento, para não ir ao fundo, para não morrermos todos. Isto é o caos. Também o abandono do navio é das mais extremas situações de caos.
Já aconteceu?
Vice-almirante: Connosco não, mas em tempos idos, perdemos navios na Índia, quando foi o Aviso “Afonso de Albuquerque” e com a Lancha de Fiscalização “Vega”, onde pereceu a totalidade dos elementos das suas guarnições, tendo os navios continuado a combater até ao seu afundamento ou encalhe. Como não havia maneira de sobreviver, então resolveram continuar a combater e morrer com a dignidade. Isto é um caso ultimate. Mais recentemente nas Malvinas, nas Falkland, o Destroyer General Belgrano, que era o melhor navio argentino, foi torpedeado, em circunstâncias que hoje acho que deveriam ter sido evitadas, mas na altura, e em clima de guerra, predominou uma lógica e uma racionalidade que se sobrepõe àquela que estamos a viver agora numa amena conversa, quando estão em causa outros valores, as coisas são diferentes. Ninguém mata ninguém pelo prazer de matar, mata para cumprir um objetivo e para não ser morto. Dito assim é muito frio, mas na prática é isto que acontece. Estes exemplos ilustram bem o que se passa pela cabeça das pessoas, em situações de caos, que é morrer, ou matar, ou de algo que ninguém sabe. Nestes casos, há uma lógica que se sobrepõe aos valores humanísticos mais elementares que todos nós temos. Sabe, os militares também são humanos, têm emoções... (fica pensativo)
E como é que se treina para se arrumar qualquer emoção?
Vice-almirante: As minhas experiências de confronto são felizmente limitadas a situações no Índico, no combate à pirataria. Em 2011, comandei uma força da União Europeia no Índico, em que tinha 9 navios de várias nacionalidades e 5 aeronaves de patrulha. Tive confrontos com os piratas, mas era uma força de proporção desigual, nós tínhamos muito mais força, muito embora com diversas limitações ao seu emprego – as conhecidas Regras de Empenhamento.
Porquê?
Vice-almirante: Porque quando apanhávamos os piratas, eles estavam normalmente na posse de reféns, e se nós afundássemos o navio, matávamos os reféns. Ou, se nos aproximássemos excessivamente e eles se sentissem em perigo, começavam a torturar os reféns à nossa aproximação. E tínhamos, claro, snipers para atingir esses piratas que estavam cá fora, mas havia outros lá dentro, que matariam os sequestrados. Muitas vezes tive que retirar, mesmo tendo mais força, mas não era aceitável o mau trato que estava a ser infligido aos reféns. Houve situações em que tivemos de usar a força, de circunstâncias menos tranquilas para nós, mas se me perguntar se conseguimos reproduzir o ambiente de caos em cenários internos? Conseguimos. Há treinos para isso, enchem o navio de fumo, fazem perder a iluminação e de perder a capacidade de produção e de distribuição de energia, perder a capacidade de autopropulsão, perder a capacidade de combate e a única coisa que podemos fazer é tratar dos feridos e evitar que morram mais pessoas. Tudo isto se treina a sério e com uma intensidade que até psicologicamente afeta muito.
Quanto tempo treinou para perder 20 quilos de uma só vez?
Vice-almirante: São ciclos de treino de certificação que tem um mês e meio cada. Dormia a tracejado, como eu costumava dizer (ri). Há exercícios pensados precisamente para treinar a capacidade de reação a um inimigo, e o aumento da resiliência de um navio perante uma situação que lhe é absolutamente desfavorável. Nós perdemos por completo o controlo e temos que o recuperar, em situação completamente caótica, com gente a morrer, com incêndios, com alagamentos, com tanto fumo que não se vê nada lá dentro e nós temos de tirar dali o navio, ou senão morremos todos. Isto é naturalmente um cenário que nos obriga a sermos tudo: bombeiros, médicos, socorristas e marinheiros. Fazemos tudo. E porque é que tudo isto se treina? Treina, porque não se pode pensar "se isto acontecer, eu depois logo penso no assunto". Não, isso é completamente diferente, se nós treinarmos a reação a uma coisa sobre a qual já pensámos, faz-nos criar mecanismos que nos permitem decidir de determinada forma, com prioridades, redefinindo os objetivos, tudo de forma fria e levando em consideração e integrando todos os elementos que afetam a nossa capacidade para sairmos dali. Para não morrermos.
Significa que o improviso também se ensaia...
Vice-almirante: Sabe que eu costumo dizer que os improvisos dão muito trabalho. (ri) A sorte também dá muito trabalho. Muitas vezes as pessoas atribuem o sucesso de algo à sorte, mas não, na maior parte das vezes essa "sorte" treinou-se muito. O comandante do navio está sempre a pensar "what if" dá as suas instruções para pôr a trabalhar as suas equipas, para alcançar aquilo que quer fazer e depois, ele é o único que está a pensar para lá do horizonte. Aquilo que ninguém mais está a ver, o comandante tem, e se não tiver, então não é um bom comandante, pensar em todas as hipóteses do que precisa fazer, se algo acontecer. E nós, não podemos ser otimistas, ou conformistas, a ponto de imaginar que "isto" não vai acontecer. Não pode ser assim, tenho de imaginar e saber, diante de cada cenário, como é que vou reagir. Temos isso treinado para o combate, com indicadores que associam a determinadas ações, ou seja, se eu tiver determinado indicador nos radares, sei que serei atingido por um míssil, ou uma ogiva; então, para aquele tipo de situação, eu tenho de saber como reagir e com que procedimentos. Se tiver tudo isto treinado e testado, eu diante de um estado emocional desfavorável e sem ter nunca passado por uma situação, não sei como vou decidir. Mas, se já a tiver testado e pensado em todas as possibilidades, por mais remotas que sejam, eu vou reagir melhor e na posse de toda a minha capacidade. Em todas as circunstâncias, de todos os navios que eu comandei, sempre que se fazia um briefing para uma qualquer situação ou ação, havia sempre três coisas que deveriam resultar como conclusão das minhas orientações; Qual era o meu “objetivo”; quais eram as minhas “prioridades”; e quais eram as minhas principais “preocupações”. Eu tenho a minha cabeça arrumada! E nós aprendemos a arrumar as ideias, começando por definir qual é a missão, e saber o que queremos com ela. Às vezes o porquê é dificilmente explicável, mas o que queremos fazer, para quem tem que executar, é essencial, e porque as pessoas têm que acreditar no que vão fazer. Têm ainda que saber "para quê" e quais são as prioridades do comandante, ou de um cirurgião chefe de um bloco operatório, pois imagino que aqui possa haver alguma semelhança. Todos os que serão envolvidos, deverão conhecer as prioridades e aquilo que se pode constituir como um risco ao sucesso da operação. Para mim, o mais importante, particularmente numa situação de caos, será conseguir distinguir aquilo que é importante e aquilo que é urgente, o que não será necessariamente coincidente, exceção feita à situação de “caos”. De forma gráfica, podemos traduzir isto num eixo de coordenadas e abcissas, de um lado temos as urgências e do outro a importância. Em circunstância de caos, estaremos sempre a decidir sob tudo o que é muito urgente e muito importante. Mas o comandante deve sempre andar à frente daquilo que ainda não é urgente. Porque quando já está naquele quadrante de que tudo é muito importante e muito urgente, vai tomar seguramente muitas decisões de recurso e por isso provavelmente erradas. E, nós portugueses temos muito o hábito de, em vez de decidir com tempo, decidir em cima da hora, quando já não se apresentam alternativas e tudo é muito importante e muito urgente. Tudo isto leva a mais caos. E não à sua resolução. O caos só se previne se andarmos sempre com avanço diante do que se vai então decidir, pensando atempadamente nas coisas importantes, antes que se tornem urgentes.
Esse pensar em avanço não é sinónimo de uma tremenda solidão?
Vice-almirante: (Fica hesitante na resposta) Há uma certa ideia que o comandante toma as decisões sozinho, essa é uma ideia um pouco cinematográfica, porque as decisões não têm que ser solitárias. Agora, claro que há momentos que essa solidão é desejável, para podermos pensar. Depois de ouvirmos, a seguir precisamos de pensar, de meditar, para avaliar tudo. Depois de somados os inputs, vamos decidir. E aí sim, a decisão é um processo solitário porque a responsabilidade é da pessoa que vai decidir e não do grupo que ajudou. Mas, este processo de decisão não precisa de ser algo demorado, nunca precisei de grande isolamento para isso. Sabe, gosto de ter os meus momentos para pensar, nessas alturas quando posso vou jogar golf, ou vou ler, ouvir a minha música, para meditar sobre algo que me esteja a apoquentar mais. Mas não sou um lobo solitário. (Sorri) Quanto mais a pessoa consegue envolver os seus subordinados no processo de decisão, mais os ajuda a acreditar no mérito de um determinado caminho e isso faz com que as pessoas fiquem mais envolvidas e unidas, porque elas estão a fazer algo em que acreditam. Mas, sabendo e deixando bem claro, ao início, que qualquer que seja a decisão tomada, embora tenha maior concordância de todos, a responsabilidade é só de quem decide. Isso é muito importante, mas as pessoas também o percebem. As pessoas precisam de acreditar no seu líder, mesmo sem que este tenha que dizer que é o líder. A liderança não é algo que se aprende. Ou melhor, diria que 80% de um líder aquilo que ele tem é-lhe inato, ou se tem ou não, depois o resto aprende-se e geralmente com os erros. Isto também quer dizer que não adianta muito fazer de um líder alguém que não tenha grandes características ou competências, porque essas pessoas serão sempre mais inseguras, ou receosas; um líder precisa de ter a coragem. Coragem, é o quê? Acreditando no propósito e no mérito do objetivo, da missão, é estar disponível para arriscar aquilo que noutras circunstâncias normais, a pessoa "comum" não aceitaria perder. Coragem, é chegar ao limite e olhar para si (aponta para o seu próprio corpo) e dizer "posso ir embora". E o que se retira daqui? Espiritualmente muita coisa, mas retira outro aspeto, é que as pessoas têm que se mover por objetivos nobres, ou seja, por algo em que acreditem mesmo. É esta coragem que faz com que alguém, mesmo não tendo tido as características inatas de segurança, se transforme num líder, se ele próprio tiver as suas convicções e se as conseguir transmitir às pessoas que o têm que acompanhar, quer elas gostem ou não. E é difícil conseguir convencer as pessoas, porque o nível de exigência de um comandante e da sua motivação, é necessariamente diferente do nível de motivação de um marinheiro. Este princípio aplicar-se-á a todas as lideranças, imagino que mesmo a um bloco operatório, onde o cirurgião que conduz toda a equipa, deverá preparar a sua equipa para todos os cenários, exercitando as reações que entenda mais adequadas para cada um em situação de contingência e de perda. O fundamental é treinar e não ter medo de exercer as suas competências, assumindo as suas responsabilidades e afastando as emoções, qualquer que seja a realidade ou cenário operacional. Regressemos ao caos, aqui, não há espaço para a emoção quando temos que agir, porque senão ficamos a chorar as perdas, e se o fazemos, não só teremos mais perdas, como não vamos conseguir decidir adequadamente. Aquilo que está perdido, está perdido, mas tem que se manter com frontalidade as decisões. Depois choramos, agora não. Isto ao nível militar tem, aliás, regras concretas, uma delas impede que embarquem pessoas do mesmo agregado familiar, ou que tenham relação familiar.
Faz todo o sentido.
Vice-almirante: Faz sim. Mas o contrário já aconteceu comigo. Eu comandei enquanto Oficial General uma força da NATO, em 2015, e o meu flag captain, ou seja, o Comandante, do navio português, era o meu irmão.
Mas isso é possível de acontecer?
Vice-almirante: É, mas pouco habitual. Na verdade, o meu irmão já estava escolhido como flag captain e só depois o Almirante do Chefe do Estado-Maior da Armada (o CEMA é por inerência, a Autoridade Marítima Nacional de Portugal) falou comigo para saber se eu estava disponível para comandar a força e eu aceitei claro, para ir para o mar estava sempre disponível, principalmente uma força internacional de comando português. Avaliámos a situação de estar o meu irmão noutro navio e apesar de pouco comum, assumimos que seria assim, e como tal possível. Chegado a Inglaterra e me apresentei àquele que seria o meu chefe, em terra, ele notou na semelhança de nomes e acabámos por conversar sobre o facto de ter um irmão no navio português. Recordo-me perfeitamente do que me disse, note que era um período intenso porque íamos para o Mar Negro, "depois deste período intenso que vais viver, ou nunca mais te entenderás com o teu irmão, ou então ainda vais ser mais amigo dele".
Ficaram mais unidos?
Vice-almirante: Sim, sim... (fica mais introspetivo). Correu bem sim. Vivem-se coisas que ... (faz uma pausa)
Só quem está nestes grupos é que percebe o que se sente enquanto equipa?
Vice-almirante: Uma pessoa que está a combater, ou envolvido numa determinada ação, se há um incêndio, um rebentamento numa zona do navio, que sabemos identificar logo onde é, e sabemos conscientemente que o nosso filho, ou irmão, está lá, essa pessoa deixa de combater. Fica afetada emocionalmente e deixa de pensar com a razão plena, porque parte da sua atenção está focada nessa pessoa, que pode estar em apuros. Isso compromete muito o bom desempenho.
Mas deparou-se pessoalmente com essa situação?
Vice-almirante: Não felizmente, porque não entrámos em combate.
Estamos a falar em coragem, treinar para assumir a razão e apurar essa mesma coragem. Mas e o medo? Ele também existe na equação. Ou não?
Vice-almirante: Claro que existe, e se alguém disser que nunca tem medo, está a mentir.
Onde é que se encaixa o medo?
Vice-almirante: É curioso, antes de começarmos a desempenhar determinadas ações, sentimos o medo. Depois e enquanto se está no meio da ação, só se foca naquilo que é preciso fazer. Há um mecanismo de defesa no nosso organismo que nos habilita a estar ali em pleno. A adrenalina serve precisamente para isso, dá-nos força e desbloqueia-nos o setor emocional, fazendo-nos reagir friamente perante algo que tem que ser feito. Mas, é importante percebermos por que razão estamos a combater, isso ajuda-nos a sair do nosso casulo emocional.
Já alguma vez esteve perto de uma situação clara de caos?
Vice-almirante: (Suspira e fica em silêncio)...
Com a sua própria equipa.
Vice-almirante: Sim, já. Em circunstâncias dramáticas em que ia quase perdendo o navio. Mas não o perdi. Nós treinamos para limitar os fatores que não controlamos e para isso serve o treino, ainda assim há ali uma faixa, uma ligeira percentagem, que ninguém consegue prever. E, se essa percentagem acontecer, não há nada que pudéssemos ter previsto para a acautelar, porque faz parte do grupo dos imprevistos e esse é o ponto onde podemos não ter uma solução intelectualmente válida. E aí... há uma estrelinha que conta. Churchill dizia que não havia sorte, havia falta de preocupação com os pormenores, eu não partilho dessa opinião. Há sempre o lado da imprevisibilidade que nós não conseguimos controlar ou prever e aí é algo que se dá por sorte, ou uma força divina... provavelmente... não sei.
Acredita que há algo divino que nos dá essa tal sorte?
Vice-almirante: Acredito que há alguma coisa que nos transcende e que não sabemos explicar. E, por mais que defenda, ou contra, ou a favor, ninguém sabe justificar bem por que razão algo se passa. Eu próprio sinto que sou pouco lógico nesta parte do meu sentir. Ou seja, sinto algo, mas quando tento traduzir racionalmente não o consigo fazer. Esse exercício faço-o mais como introspeção. Tinha momentos a bordo, quando as coisas me corriam bem, em que tinha a necessidade de agradecer, era preciso estar grato por aquilo que não tinha corrido mal e que podia ter acontecido, porque eu não tinha qualquer capacidade de interferência. Tive muitas situações em que tive as equipas a milhares de milhas e eu dava uma ordem e sabia que aquela ordem podia ter más consequências. O resultado final dava certo e eu agradecia interiormente.
Tem saudades de estar no mar?
Vice-almirante: (Ri, tem uma expressão muito leve) Tenho muitos milhares de horas de navegação e gostei muito de andar no mar.
Teve a ambição na sua carreira de chegar onde agora está?
Vice-almirante: Passou-me pela cabeça que poderia chegar aqui, mas não tracei como objetivo e por isso mesmo nunca me desiludi, porque a verdade é que também nunca me iludi. Este é um lugar muito estimulante porque fazemos aquilo que gostamos.
Joana Sousa
Equipa Editorial