- Uma Conversa com Catarina Jacinto Correia
Acabou de chegar da enfermaria de doentes COVID19+ "desculpe este meu aspeto" e ainda se justifica diante do compreensível cansaço.
Desde a 1ª vaga desta Pandemia que se voluntariou para ajudar na “urgência COVID”, e se numa primeira fase articulou a sua área com a da urgência, agora lida com o SARS-CoV-2 dia e noite enfrentando-o com um sorriso raro nestes tempos de maior cansaço. “Todos devíamos ajudar nesta fase, aqueles que tenham horário para isso", vai explicando a razão de se ter voluntariado para as urgências. Preocupa-a aqueles que estão desde o começo no terreno e sem rede para poderem desistir, ou dar tréguas.
Todas as semanas, e enquanto médica interna de Imunohemoterapia explica-me que se prevê sempre uma média de 40 horas semanais, mais consultas extra esse horário, algo que dá uma média de 46 a 50 horas semanais, habitualmente. Razoável, penso, afinal é cansativo, mas é possível gerir. Seria sim se esse fosse o seu cenário, já não é.
Desde a primeira vaga que passou a incluir na sua agenda mais uma noite extra. Integrar a equipa da “urgência COVID” e assegurar 12 horas seguidas, um extra ao seu trabalho habitual , mas se preciso fosse, faria algumas horas mais, se isso ajudasse a suportar o volume de doentes que aguardavam para serem vistos. A grande avalanche da pandemia chegaria com um rombo tal que seria preciso munir as equipas com mais gente. Alguns médicos de fora juntaram-se, mas a grande mobilização foi a dos internos de Santa Maria que se deslocaram em massa para as “áreas COVID”. O cenário passava declaradamente a ser militar, na resistência, nas horas e no empenho. Entrar às 8h e sair às 20h ou às vezes mais – 22h, 24h... A somar às 10h a 12h de trabalho diário, a Catarina assume ainda períodos de urgências internas nas enfermarias da Medicina 1 (perfazendo por vezes 18h ou 24h de trabalho seguido) e de urgências externas, como já fazia desde o início, no "SU-Covidário".
Perde-se o número das horas e do cansaço, talvez esteja a pensar. Verdade. Chegam a passar 24 horas sem parar. As horas multiplicam-se em experiência, mas também em desgaste, pouco compensado nas 5-6 horas que por vezes lhe sobram para ir dar um breve salto à cama e regressar ao hospital.
A Catarina Jacinto Correia terminaria o internato de Imunohemoterapia no fim de 2022. Atualmente no 4º ano de especialidade, já com 5 anos de prática médica, faltar-lhe-ia apenas um ano de internato, mas interrompida que ficou a passagem pela especialização, devido à mobilização para as áreas da Medicina- Covid, sabe que a sua casa será muito seguramente o Hospital de Santa Maria, pelo menos, até ao ano de 2023.
Se a pandemia não agravar, a Catarina manterá este ritmo e o apoio a tempo inteiro nestas enfermarias até março, inclusive.
Derrotada pela ideia de não acabar tão depressa o internato? Tento sondar, mas ela sorri, aliás, como o fez a conversa toda. Nela a tranquilidade impera acima de qualquer frustração. Tudo faz sentido se a ouvirmos por algum tempo, ajudar pessoas, é cantilena que lhe deve ter soado como melodia desde os 5 anos, idade em que se lembra de já querer ser médica.
Aos 5 anos, porém, não lhe contavam as histórias que neste último mês chegaram a Santa. Foi o cuidado extremo ao outro que a manteve longe dos que ama. É estranho, como a vida se contradiz à medida que o tempo avança, como num livro das suas antigas histórias. Na primeira vaga não foi a casa, protegeu a família de tal modo que a missão era não colocar ninguém em risco. Só os voltou a revisitar no verão, quando a pandemia parecia querer acalmar. Sem direito a natal, ou a matar saudades, com os seus 29 anos acabados de fazer dia 9, a Catarina foi celebrando as emoções sempre distante, com recurso às novas tecnologias, como se a presença fosse agora a sua pior sombra.
Sentido crítico inerente à sua missão, outro sentido lhe toldava o pensamento, há que aprender! Voluntária na 1ª fase para a “urgência COVID”, sim, mas sem nunca negar que era preciso aprender a ganhar novos saberes. Conta-me que estudou muito, leu e aperfeiçoou-se nas contracurvas do caminho que destinou para si própria. Estudou online, foi pesquisar artigos científicos e tirou um curso de ventilação não-invasiva e outro de abordagem a doentes críticos, tudo por sua vontade e rigor.
Como há males que vêm por bem, a Catarina Correia entende que talvez agora se olhe com mais carinho para o Serviço Nacional de Saúde, com uma imagem tão desgastada, durante tanto tempo esquecida e débil, mas que ainda assim não abandonou o leme diante de uma tormenta. Investir e dar condições ao SNS e ao hospital Universitário onde trabalha é o que deseja quase como se fosse um segredo de natal, para o bem da casa que a formou.
Espreitemos o seu caminho.
Ajudar as pessoas, era a assinatura que lhe marcava a alma, única justificação que parece encontrar para alguém que não tem qualquer ligação à Saúde. Ou Direito ou Gestão, pensariam talvez os mais próximos, talvez seguisse por um caminho profissional idêntico ao da família, ou outro. Mas de nada adiantou esse passado herdado, não para primeira escolha pelo menos, porque mais tarde viria a tirar pós-graduações em Direito na Medicina e em Gestão e Liderança em Saúde.
Medicina, na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, foi a sua primeira opção. E foi onde ficou. A escolha da Faculdade não era obra do acaso, a ligação à Ciência através do iMM e o contacto com a Pedagogia, bem como aos estudos científicos, eram ramificações que incluía desde cedo na sua equação. “A dificuldade de Medicina não é entrar, mas sim ficar”, explica-me.
Permanecer é elemento fundamental para aqueles que aprendem a noção da resiliência, agora tão treinada nos últimos meses, fico eu a pensar.
Quando terminou a Faculdade decidiu ir fazer o ano comum nos Hospitais Centrais, entre o Curry Cabral e as urgências do São José. Comparando casas e serviços, foi somando mundo, ganhando diferente experiência.
A especialidade surgiu pelo seu gosto em descodificar a coagulação e a hematologia; refere que o facto de ter tido família com doença hemato-oncológica, talvez explique que não tenha seguido pelo braço da hemato-oncologia e tenha optado por outra área do sangue. Hematologia sim, mas a benigna, diz-me, e por isso enveredou pela coagulação, pelas anemias e hemoglobinopatias. Os olhos brilham-lhe mesmo já quando o escuro caiu e a imagem se torna menos nítida. "Eu gosto mesmo de ver doentes, mas também gosto muito de laboratório e de poder ‘pipetar’", vibrante como uma criança diante de vários doces, assim é a Catarina.
Se ainda vacilou pela Medicina Interna, que confessa adorar, depois de ponderar, percebeu que a Imunohemoterapia lhe permitiria seguir outros rumos paralelos, fazer mais cursos e formações e permitir um novo mestrado e, sonha, talvez crescer até um doutoramento. Pelo caminho dos planos de vida, já se formou na Universidade Católica em Gestão para Jovens Médicos e aguarda que a experiência lhe permita a segunda volta - a Gestão em Saúde.
Quando a rotina da Catarina Jacinto Correia voltar "ao normal", continuará a ver pessoalmente os seus doentes, em consulta externa e hospital de dia,mas também a dar apoio ao laboratório e a fazer a gestão do stock de sangue e hemoderivados. E como nunca fica parada mais de uns breves minutos, está atualmente a fazer um Mestrado na área do tratamento anti-trombótico, na Universidade de Múrcia, depois de ter terminado um programa de Inovação em Saúde com a Harvard Medical School e o MIT, mais uma das vantagens que a pandemia permitiu, juntar o mundo num só espaço, o virtual.
A curiosidade não se travou por aqui, no ano comum fez um curso de Medicina de Emergência e Catástrofe, ela que já planeou ir para África aplicar os conhecimentos dessa Medicina, mas que agora a treina diariamente, horas, tantas horas a fio, no seu próprio país.
Naturalmente empática fala dos "seus doentes", sentido apurado de responsabilidade perante o outro, mais agora que faz internamento. É genuinamente feliz, apesar de dizer que "não está tão feliz como era habitual", porque quando chega a casa ainda fica a pensar em quem deixou no hospital. Ri com os olhos, mas diz-me que pela alma lhe passam dezenas de perguntas, "estará aquele senhor a descompensar?", “encontrará as mesmas pessoas que deixou na enfermaria?”.
Por mais do que uma vez enobrece os seus pares, os médicos de Medicina Interna que vê como fonte de inspiração, já que mesmo diante do cansaço extremo continuam a percorrer o mesmo caminho ardiloso e com vontade de continuar.
Encontrei a Catarina quando os meus olhos passaram por um pedido seu de ajuda. Pensei então que a melhor forma de a ajudar era dar-lhe mais espaço para relatar objetivamente aquilo que os nossos olhos não conhecem e, como tal, alguns achem ser tudo uma construção exagerada.
“Hoje comecei o apoio a 100% em enfermaria COVID19, uma das que já recebem doentes algo instáveis a fazer ventilação não-invasiva e oxigenoterapia de alto fluxo, para além das urgências no SU em Covidário que tenho vindo a fazer desde março. Parei quase na totalidade a atividade na minha especialidade, no meu serviço, para poder vir ajudar os colegas que estão em completa exaustão e que todos os dias dão o seu melhor - mas que precisam de ajuda, aqui e em todos os hospitais um pouco por todo o país.
Como podem ver, a situação não está a melhorar e diariamente são muitos os que precisam de ajuda médica e que recorrem aos serviços de saúde. A este ritmo não será possível conseguir prestar os cuidados devidos a todos.
Por favor, cumpram as indicações, sejam agentes de Saúde Pública; ajudem-nos a conseguir ajudar!
Obrigada” – Catarina Jacinto Correia
Acho que neste momento parte do imaginário de todos nós já criou uma imagem sobre o que será estar numa urgência de Covid. Mas pode dizer-me realmente o que acontece?
Catarina Correia: É até importante perceber-se a evolução das urgências Covid, porque elas foram sendo construídas no nosso hospital ao longo do tempo. Durante as várias fases fomos vendo vários "Covidários". Inicialmente comecei a dar apoio ainda nas tendas - que tinham condições muito mais frágeis, passava-se muito frio, porque a própria estrutura não isolava bem, e também ainda não tínhamos grande suporte, nem em termos de conhecimento da doença, nem em termos humanos ou materiais. Parecia que estávamos a praticar medicina de guerra. Mas foi a resposta possível, no curto espaço de tempo de reação. Depois foi-se evoluindo. Chegamos a ter uma fase em que fomos para o piso 1 do hospital, numa estrutura impressionante e que me orgulhou ver a ser construída em tempo recorde. Agora há triagens faseadas, uma estrutura completamente à parte do circuito do SU normal, melhores condições e mais estruturação e organização. Mas, se no início as condições eram mais precárias, era também mais fácil ir vendo todos os doentes; agora não, desde o começo deste ano as coisas complicaram muito em número de pessoas a chegar. Não me recordo da minha pior urgência, quer em Santa Maria, quer no São José quando fiz urgência lá, onde eu visse tanta afluência. Num só dia, e já este ano, chegámos a ter cerca de 50 ambulâncias à espera de deixar doentes, para além dos incontáveis que tínhamos já à espera dentro do espaço da triagem e mesmo no próprio Covidário e salas de tratamento... e não havia onde os colocar. Isso é que foi assustador, porque já tínhamos toda a estrutura montada, já tínhamos equipas e apoio de pessoas de diversas áreas, mas já não havia mais espaço. O "Covidário", zona de contentores que se encontra do lado de fora do hospital, onde estão os doentes com suspeita de Covid, já tinha um número considerável de camas e espaços de observação, e mesmo assim tivemos de começar a observar e iniciar terapêutica a várias pessoas na área da triagem. Se achei que as tendas no ido março de 2020 eram medicina de guerra, quase um ano depois apercebi-me que a catástrofe pode sempre piorar, e ainda que as condições físicas sejam melhores e o conhecimento científico seja maior, o contexto faz toda a diferença – e nesta fase sim, entrámos em verdadeiro cenário de guerra. Então, como não conseguíamos mover pessoas entre áreas, por estar tudo lotado, as pessoas começavam a afunilar a espera no próprio "Covidário". Já não havia qualquer espaço para internamento. Agora veja, isso explica por que razão estavam tantas ambulâncias à espera. Só casos muito excecionais, como os de Reanimação, ou situações emergentes, é que entravam diretos. Todos os Chefes de Equipa em cada dia de Urgência saíam e iam até às ambulâncias ver que casos poderiam estar ali à espera, e os que tinham de ser observados no imediato. Mas foi muito duro. Esta fase foi muito complicada, sentíamo-nos completamente impotentes.
Este cenário de caos absoluto verificou-se em janeiro apenas, certo?
Catarina Correia: Sim, janeiro foi sem dúvida o pior momento. Claro que, desde março do ao passado que, tivemos picos em que as coisas agravaram, mas nunca desta maneira. Em janeiro o que nos aconteceu não foi normal, a própria urgência geral teve de ser transformada e na altura mais complicada desta vaga albergar mais zonas para doentes Covid+. Houve uma noite particularmente má em que às tantas até as zonas “laranja” das urgências já tinham doentes covid, a zona “verde” também teve que abrir igualmente para estes doentes, e mesmo a sala de “aerossóis” – foi também esta a altura em que recebemos doentes transferidos do Hospital Fernando da Fonseca, aquando da situação complicada que se viveu lá em termos de capacidade de oxigenoterapia. E isto tudo para além do "Covidário" lá fora, que entretanto foi expandido e aumento a capacidade para quase o dobro dos doentes. Ou seja, tínhamos uma quantidade enorme de zonas Covid, transformando o espaço não-Covid, para um espaço um só, que era o espaço da sala da zona “amarela”. Mesmo com esta intervenção, havia muitas pessoas à espera. As noites não abrandavam, não se parava. As equipas estavam exaustas, e por mais esforço que se fizesse, parecia que não conseguíamos reduzir a espera, chegar a toda a gente. Chegávamos às 8h da manhã (depois de um turno de 12h noturno), uma altura em que geralmente tudo acalma “em tempos normais”(sem COVID),e íamos lá fora e continuavam 10 ou 12 ambulâncias à espera, mesmo depois de uma noite de trabalho intenso. E isto custa, custa muito – sobretudo psicologicamente.
O que é que sentiu nessa altura?
Catarina Correia: Senti várias coisas. A primeira de todas foi pensar em todos os que estão, todos os dias, a trabalhar nestas áreas, desde o começo da pandemia. Estas pessoas são os meus colegas da Medicina Interna e dos Cuidados Intensivos, são também os técnicos de diagnóstico e terapêutica, médicos, enfermeiros, auxiliares, de todos os serviços que foram afetados, mesmo aqueles que às vezes nos esquecemos e estão mais “na retaguarda” mas são essenciais; nos internamentos, nas urgências, no laboratório e áreas de colheitas de análises, nos centros de saúde e na gestão de saúde pública - todos. Pensava que aquelas equipas deviam estar em completa exaustão e burnout. Se eu que fazia uma urgência COVID, numa só noite por semana, para além do meu horário de trabalho médico habitual, e já ficava cansada, imagine como não estaria alguém que, meses a fio, fez sempre estes horários, teve sempre horas a mais, sem férias, sem pausas, sem teletrabalho. Ao ter a noção desta realidade eu só podia ir ajudar, ajudar mais com o que pudesse. Fui chamada, como outros colegas internos e especialistas, mas já estava muito motivada para tal, pois sentia que podia ser um contributo extra e ajudar a reduzir o impacto e exaustão em equipas mais afetadas. E assim foi. Vários de nós foram chamados, cada caso vindo de um diferente lugar, das mais diversas especialidades e áreas médicas. Uns são internos do início da sua especialidade, ou já do fim, outros já são mesmo especialistas. E eu, como já fazia urgência e já dava essa ajuda, que continuei a dar, fui chamada para fazer internamento a full time em adição a isso. Isto quer dizer que o meu internato, neste momento, está em pausa; estou no serviço de Medicina Interna a cuidar de doentes Covid. E estou, claro, a trabalhar bem mais do que as horas habituais do meu internato. (sorri)
Estava preparada para lidar com este ritmo de trabalho?
Catarina Correia: Acho que nunca se está 100% preparado, porque há sempre um momento em que nos sentimos cansados. Mas eu tenho a vantagem de ser jovem, ainda consigo não dormir muito e manter-me relativamente funcional. Mas acho que para quem já é mais velho ou tem algumas questões de saúde, ou mesmo quem já está neste ritmo há muito tempo, sem pausas (mesmo sendo jovem),que estes horários já são muito difíceis de gerir. A verdade é que tenho dias em que me sinto muito, muito cansada. Depois há outros dias em que a motivação me empurra para eu ir ajudar, mesmo em exaustão, e isso dá-me força. Outro fator que ajuda muito é ter uma equipa como aquela onde eu estou inserida. É uma equipa fantástica, as pessoas são muito empenhadas, simpáticas. Receberam-me todos muito bem e penso que ficaram felizes verem chegar nova ajuda. Por fim, ajuda ter um namorado que também é médico e que também está na enfermaria de Medicina Interna atualmente, e como tal sabemos bem os horários que ambos temos e que são tudo menos normais e isso permite que haja compreensão e respeito de parte-a-parte; não é fácil gerirmos a vida em casa, mas vamos aguentando.
Diante de um momento tão histórico como este que estamos a viver, pesa mais viver o momento atual, ou inquieta o facto de não se cumprirem todas as metas profissionais no timing que idealizou?
Catarina Correia: Sem dúvida pesa sempre mais cuidar dos doentes. É claro que nesta fase, isso significa atrasar os meus planos profissionais, e até pessoais, sim, mas é para ajudar quem precisa. Repare, se eu fosse mãe e tivesse outras responsabilidades, atrasar um ano, ou ano e meio, talvez tivesse consequências mais gravosas, mas não é o meu caso. Tenho 29 anos, acho que ainda sou jovem. (Ri) Agora as pessoas precisam de mim aqui e isso faz com que eu não sinta que é tempo perdido. Eu escolhi isto, e que melhor fase do que esta para ajudar pessoas? Se eu não ajudar agora, que estamos neste catástrofe, quando é que vou ajudar? Este é o momento. Não me faz confusão as metas terem ficado para trás, o que me incomoda mais é não conseguirmos dar resposta a todos os doentes – os que têm e os que não têm Covid. Não digo que não penso nisso, porque penso, no futuro – mas a vida também é sabermos lidar com os imprevistos e com o que não podemos controlar.
Em relação aos doentes não-Covid, tenho essa preocupação, como todos temos julgo. Na minha especialidade as consultas não têm sido canceladas, o nosso Hospital de Dia continua a funcionar a 100%, e importa também louvar que os colegas têm feito um esforço grande para manter tudo, mesmo com várias pessoas fora a prestar apoio a atividade covid, os que ficam também merecem um louvor por estarem a “aguentar a casa” – também é uma grande ajuda, e também é essencial manter cuidados a todas as pessoas que precisem. E eu, mesmo estando a tempo inteiro com doentes covid, continuo a acompanhar os meus doentes do hospital de dia e da consulta, nem que seja por telefone, ou algumas consultas entre atividade covid. Felizmente também tenho colegas que têm sido incríveis e que me ajudam e acompanham os meus doentes, e a quem tenho só de agradecer.
Mas as prioridades mudaram, porque o SNS não responde a tudo, não consegue; há muitas carências físicas e a nível de recursos humanos. Simplesmente não se consegue. E é nisto que gostaria que as pessoas pensassem. Temos todos de remar para o mesmo lado de forma a que todos tenhamos os melhores cuidados possíveis.
Dizia-me há pouco que as pessoas que chegam ao hospital já vêm num estado mais avançado da doença, mais do que era o habitual. E neste momento estamos a falar apenas em doentes covid. Que doentes são estes que chegam agora que não chegavam tão doentes no início?
Catarina Correia: Há uma diferença muito grande dos doentes de agora, relativamente aos do início. No começo da pandemia eles vinham muito mais cedo, numa fase da doença precoce – pelo menos era essa a perceção que eu tinha na urgência. Muitas pessoas tinham uma dor de cabeça e vinham logo para fazer um teste. Havia mais receio de estar infetado. Agora não é assim. Agora recebemos essencialmente doentes muito mais graves. Claro que recebemos grande suporte dos Centros de Saúde e da própria linha Saúde 24, e que tem ajudado bastante também a gerir doentes com sintomas mais ligeiros, e nesse aspeto a selecionar os mais graves para observação hospitalar – e claro que isso influencia a nossa perceção, mas não é só isso. As pessoas, mesmo tendo sintomas, têm atrasado muito a procura por ajuda. Vêm muito mais tarde e têm aguentado mais até chegar aqui. E depois o que acontece é que quando chegam, a doença já está numa fase crítica e tende a piorar. Chegam-nos ainda muitos doentes que já sabiam da doença, mas estavam em vigilância, só que agravaram e precisam de vir. Mas nota-se que o padrão de casos que temos mais são doentes já com hipoxémia grave (níveis muito baixos de oxigénio no sangue), alguns a precisar de ventilação não invasiva, e outros mesmo que vão diretos para os Cuidados Intensivos e são entubados. E mesmo pessoas mais jovens, menos doentes.
Chegam doentes nesse grau tão elevado da doença?
Catarina Correia: Sim. Chegamos a ter de fazer reanimação no próprio "Covidário" (que felizmente no nosso hospital, tem uma Sala própria para isso com todas as condições), isto porque a extensão da doença já é tão elevada, ou porque as comorbilidades são tantas, que precisamos mesmo de intervir invasivamente de forma emergente. Na enfermaria de Medicina onde estou, temos doentes mais graves – é uma enfermaria de Cuidados Intermédios a bem ver, e quase todos estão a fazer ventilação não invasiva ou oxigenoterapia de alto fluxo, ou são doentes mais instáveis com potencial de agravamento ou necessidade de técnicas de suporte como diálise, por exemplo. Muitas vezes são pessoas que depois precisam de ir para os CI, porque há necessidade de serem entubados para ventilação mecânica invasiva, ou serem sujeitos a outros procedimentos e monitorização. E na fase mais pesada, chegámos a ter dias com vários doentes a descompensar em simultâneo e a necessitar de entubação orotraqueal; doentes jovens. São situações pesadas e que exigem muito da equipa. Neste aspecto, a enfermaria onde estou também tem este fator de me dar uma visão mais pesada da situação, porque são doentes graves que precisam de muitos cuidados.
Uma das imagens que mais me impressionou até hoje foi ver um bombeiro sentado junto à ambulância à porta da Urgência do H. Santa Maria; estava a nascer a manhã e ele olhava para o vazio. O pensamento que me ocorre muitas vezes é, o que sentirão as equipas depois de um dia / noite de caos? Fica apenas um vazio sem qualquer ruído? O que é que se passa na sua cabeça no pior dos momentos?
Catarina Correia: É muito difícil... No início foi mesmo complicado gerir as minhas emoções, porque não estava na minha especialidade, uma especialidade habitualmente com doentes mais estáveis, em contexto de consulta, e que não me causa este confronto com Cuidados Intermédios diariamente. Foi ver a vulnerabilidade das pessoas, que estavam convencidas que iam morrer, mesmo quando o cenário nem apontava para algo tão grave, mas ver o desespero delas – o medo de estarem ali, de estarem infetadas, longe da família, e de verem outros à volta deles em estado grave. Ver o desespero das pessoas é terrível. A verdade é que veem outros a morrer à sua volta, chegam pessoas de lugares com surtos e já com a noção da perda de familiares, ou conhecidos, todas estas situações fragilizam os doentes. Da nossa parte há outros constrangimentos e que nos custam, como falar às famílias que aguardam notícias de quem está mal. Tentamos sempre que, estando algum doente mal - com prognóstico reservado, que possa haver "uma despedida" de alguém familiar, de alguém próximo. Mesmo tendo todos os cuidados em termos de saúde pública, tentamos que os familiares se possam despedir de quem amam. Pelo menos ali, na experiência que tenho tido no meu hospital, tenta-se sempre não perder esse lado humano. Quando não é possível presencialmente, tentamos fazer chamadas por telemóvel ou videochamada entre os doentes e as famílias também. E tentamos sempre dar notícias todos os dias, sejam boas ou más, a quem tem um familiar internado connosco. Mas custa muito ver este quadro. Assim como custa ver que vamos perder um doente depois de tudo o que fizemos para o salvar. Esses momentos dão-nos um grande vazio... Sabe que os doentes ficam um pouco "nossos", porque são muitas horas de ligação, em que passamos juntos. Pelo menos, pessoalmente, sinto muito estas coisas. Depois, o défice de sono e o cansaço causam-nos dias em que só há um vazio, ou só apetece chorar. Há outros dias em que se sente revolta, sobretudo quando vemos as notícias e percebemos que o público em geral não está a ter cuidado, que não há cumprimento das normas de segurança ou que continuam a pensar que esta situação não é real, que é uma teoria da conspiração. Deixa-me zangada, frustrada, irritada, mas também triste...só quem não vê o que se passa nos nossos hospitais, pode achar que isto não está a acontecer. Esta pandemia pode tocar e chegar a qualquer um de nós, não escolhe o perfil de quem vai atacar e por vezes parece-me que as pessoas ainda não entenderam bem isso. Depois preocupo-me muito com a minha família.
A família, interessante o cuidado que todos têm revelado com a família e não com os próprios...
Catarina Correia: Queremos muito que não lhes aconteça nada e a distância causa imensa saudade. Eu que ia almoçar todas as semanas aos meus pais, deixei de o fazer e sinto falta deles, também me faz falta ter aquele mimo. Estou longe da minha avó que está num lar no Alentejo e não a posso ir ver - não a vejo há mais de um ano. Claro que há chamadas, mas nunca substituem o contacto pessoal. A minha própria avó teve Covid, felizmente com sintomas leves, e eu nem a pude ir ver ou ajudar. O meu avô está em Lisboa, mas a viver sozinho em casa, e desde que esta pandemia aconteceu, que noto um grande impacto nele, físico e psicológico; como ele, nota-se que são os mais frágeis, ou mais isolados que sentem mais o impacto – tudo isto tem implicações a nível mental, mas também se nota os mais idosos a “envelhecer muito e mais rápido” por causa do isolamento. O medo causa muitas coisas nas pessoas... Depois há também o contrário, os nossos familiares (dos profissionais de saúde) também sofrem muito; penso sempre na minha mãe que também sofre imenso porque tem medo que eu fique doente e que se preocupa com o número de horas que trabalho, o meu cansaço...
E a Catarina tem medo?
Catarina Correia: Eu não tenho medo, no sentido em que nós protegemo-nos, usamos toda a proteção adequadamente. Tento racionalizar. Claro que há sempre receio de me infectar, mas não é um medo paralisante nem que alguma vez fosse algo que interferisse na vontade de continuar a ser médica e ajudar. Entretanto já fui vacinada, já tenho a segunda dose, o que também me dá alguma esperança; mas não me deixei de proteger por isso, nem pensar! E isso é uma mensagem que tem de passar para todos – há-que manter as medidas mesmo com vacina. Temos de ir criando uma imunidade de grupo, mas com cuidado e calma e sempre tendo em conta o que temos aprendido desde o início, sem descurar os cuidados. Agora, medo não tenho. Ou melhor, acima do medo está uma vontade grande de ajudar as pessoas que estão frágeis. Ter medo não adianta de nada. E se tenho algum é pelo receio de contagiar a minha família, os que me são mais próximos, ou os de quem cuido.
Interrompe o internato para vir tratar de doentes de uma área que não é a sua. Como é esta transição de áreas da medicina para si? Estava pronta para isto?
Catarina Correia: Nunca estamos 100% preparados. O que me deu alguma vantagem foi nunca ter deixado a urgência geral, mesmo não sendo parte da minha especialidade, por gosto. E por isso, nunca perdi o contacto com a Medicina Interna. Logo, quando comecei a fazer urgência Covid, aquilo que tive de aprender foi tão inicial quanto para qualquer outro médico que fazia urgências – era uma doença nova, nesse aspeto estávamos todos no mesmo barco – ainda que quem tenha mais experiência ou uma formação base numa especialidade que lide mais com este tipo de doentes e patologias, tenha sempre vantagem claro. A verdade é que ninguém sabia bem como se tratavam doentes com este perfil. Depois tenho a sorte de no meu internato já estar incluída a Medicina Interna, essa formação que já completei há uns anos deu-me ferramentas. Mas todos os dias aprendo muitas coisas diferentes - diria que é mais “hora a hora” que aprendo algo novo, e muitas são coisas que não se ligam à minha especialidade, mas que tenho tido gosto em aprender. Estou a gostar muito de aprender novos tratamentos e terapêuticas aos quais não estava habituada. Mas há pontos comuns, o SARS-CoV-2 é uma doença muito trombogénica, e a trombose e hemostase é uma das principais áreas de especialização do médico imunohemoterapeuta. Logo, acho que acabei por poder evoluir nessa minha área de eleição e também poder contribuir para a equipa, uma vez que tenho podido ajudar a gerir a parte de complicações trombóticas e hemorrágicas dos doentes que temos tido na enfermaria – e tem sido muito positivo o feedback dos colegas e a troca de ideias e conhecimentos; agradeço muito à equipa por me darem essa oportunidade também. Acho interessante como áreas tão diferentes se cruzam na enfermaria e se complementam, isso também foi uma descoberta. Sobretudo sou eu que aprendo com a equipa. Aprendi a mexer num ventilador, ir gerindo modos de ventilação não invasiva, mexer oxigenoterapia de alto fluxo e a gerir outro tipo de terapêuticas que não geria no meu dia-a-dia, a colocar cateteres e a ‘colher sangues’ todos os dias - tudo isto dinâmicas que já não tinha há muito tempo. Tenho também aprendido a gerir doentes com várias co-morbilidades, numa perspetiva muito menos estanque do que numa especialidade muito mais específica como a minha, ou seja, doentes com várias características e muito mais abrangentes - tudo "setings" que me obrigam a uma aprendizagem constante. Estou a crescer muito como médica e acho que não cresceria tanto e tão rápido se não fosse esta pandemia. É ainda importante para mim referir que todos os doentes são muito bem geridos, porque toda a abordagem e estratégia terapêutica é sempre discutida e partilhada entre a equipa e com pessoas mais experientes, e são essas que nos encaminham, que nos ajudam a decidir e que partilham o seu conhecimento permitindo-nos aprender e crescer.
Esta decisão de integrar médicos das várias áreas nas enfermarias, ainda que tenha sido por necessidade, acabou por muito importante – temos verificado que talvez fosse útil um modelo onde médicos de várias especialidades estivessem diariamente com os colegas do internamento da medicina, pois há uma entreajuda e uma gestão dos diversos aspetos do doente muito mais multidisciplinar e facilitada pela co-existência de diversas áreas de conhecimento no mesmo espaço físico. Pode ser algo que saia de bom desta pandemia – conhecermo-nos mais uns aos outros, entre especialidades diferentes, e começarmos a ter uma visão mais multidisciplinar. Para além disso, a integração de novos elementos foi também muito importante porque permitiu prestar uma ajuda essencial aos que estavam no terreno e que já não aguentavam sozinhos.
E assim cruzam-se experiências e diversas áreas da Medicina. Ganhamos todos.
Última nota pedida pela Catarina:
Gostava de agradecer à UICIVE – Serviço de Medicina I, em particular Sector I-D onde fui integrada, por me receberem tão bem, e por me ajudarem diariamente. Também à minha equipa na Urgência Central. E por fim, aos meus colegas e mentores do meu Serviço de ImunoHemoterapia.
Joana Sousa
Equipa Editorial