Ao longo do tempo, o progresso científico tem-nos indicado novas direções, entre as quais aquela que aponta para um vasto leque de possibilidades no campo da genética. A análise de dados genéticos individuais e coletivos como ferramenta de diagnóstico, de forma a adaptar, com maior precisão, os cuidados de saúde é uma realidade dos tempos modernos. E não obstante a discussão ética que suscita, a terapia genética assume-se, hoje em dia, como uma prática bastante promissora, resultante de um amplo trabalho de investigação e da inovação tecnológica aplicada à Saúde.
Os genes têm estado no centro da investigação da Professora Maria do Carmo Fonseca, especialista em genética e biologia molecular, e principal responsável pelo Laboratório de Regulação Genética do IMM.
Para além de acreditar que, dentro de algum tempo teremos à disposição terapias genéticas "suficientemente seguras" para retardar o envelhecimento das células humanas, a Professora é acérrima defensora da sua aplicação noutras áreas da Medicina. Em entrevistas recentes, Carmo Fonseca explicou de que forma a terapia genética, bem como os projetos de investigação que têm sido desenvolvidos nesse âmbito, podem ser determinantes no diagnóstico e tratamento de várias doenças, nomeadamente cancro e algumas patologias do foro cardiovascular.
"Durante muito tempo, achámos que aquilo que herdávamos dos nossos pais era mais ou menos um destino gravado nos genes. Não é bem assim, nós temos capacidade de atuar sobre eles. A informação de base não é necessariamente uma fatalidade", destacou a Professora em entrevista sobre o tema.
E o fascínio de Carmo Fonseca pelo universo dos genes humanos conduziu-nos a uma feliz evidência na Pediatria do Hospital de Santa Maria, onde se reverte a sentença fatal de uma doença neuromuscular degenerativa rara com o recurso à terapia génica.
Estivemos à conversa com a Dr.ª Teresa Moreno, Neuropediatra responsável pela terapêutica génica da Atrofia Muscular Espinal, em estreita colaboração com a equipa de Pneumologia Pediátrica, Reabilitação, Gastrenterologia, Nutrição e Cirurgia Pediátrica. Compreendemos no que consiste esta doença, como se transmite, como se manifesta e como é que a Medicina evoluiu na resposta àquela que é, atualmente, a principal causa genética de morte.
O que é e como se caracteriza a Atrofia Muscular Espinal?
Teresa Moreno: É uma doença neuromuscular, degenerativa, autossómica recessiva, ou seja, os pais são portadores saudáveis e em 25% das gravidezes há um risco de surgir a doença. É também a doença genética recessiva mais grave e frequente nas crianças e apresenta uma incidência de, aproximadamente, um caso entre 6 mil a 10 mil nados vivos.
É uma doença que se caracteriza por haver uma perda progressiva dos nervos motores, ou seja, os nervos que comandam os nosso músculos entram em degenerescência e vão morrendo ao longo da vida da criança. O problema tem origem no corpo da célula do nervo motor que está na medula, por isso é que se designa Atrofia Muscular Espinal, porque é no corno anterior da medula espinal que estão os corpos celulares que começam a morrer, com degenerescência dos axónios que daí partem.
De que forma é que a doença se manifesta? É similar em todos os casos?
Teresa Moreno: É uma doença que tem uma particularidade genética muito marcada, ou seja, esta doença apesar de ter este mecanismo igual em todos os seus tipos, tem tipos muito diferentes de acordo com a gravidade. Para que a doença se manifeste é necessário a inexistência de um gene designado SMN1, que é o gene da sobrevivência do neurónio motor. Este gene é de tal maneira importante, que a sua inexistência não é compatível com a sobrevida. Portanto, neste caso, digamos que a Natureza, ao longo da evolução, criou uma cópia que se chama SMN2 e que todos nós temos. No entanto, o número de cópias de SMN2 é variável de pessoa para pessoa. Em suma, a doença evidencia-se quando as crianças não têm SMN1. Por outro lado, o SMN2 é uma cópia imperfeita, já que 85% da proteína não é viável e não tem interesse para o organismo. Os outros 15% são. Portanto, se nós tivermos uma cópia de SMN2, temos 15% de proteína normal, se tivermos duas cópias temos 30% e assim sucessivamente.
Assim, apesar de todos não terem SMN1, a gravidade da doença vai ser determinada pelo número de cópias aleatório que cada um tem no seu genoma. Na realidade, os fenótipos mais graves têm só duas cópias de SMN2, fenótipos menos graves têm quatro ou cinco cópias de SMN2.
É isso que vai definir o grau de severidade da doença?
Teresa Moreno: O tipo da doença é sempre definido pela etapa motora mais alta que se atinge. Classicamente, e trata-se de uma doença que foi descrita em 1891, a Atrofia Muscular Espinal divide-se em tipos clínicos, ou seja, existe o Tipo 1 que se manifesta nos primeiros meses de vida e nunca chegam a atingir a posição de sentado. O tipo 2 são as crianças que chegam a atingir a posição de sentado, mas nunca conseguem uma marcha independente. O Tipo 3 são crianças que atingiram a marcha independente, mas perderam-na de seguida e estes casos são muito variáveis, ou seja, podem perder a marcha aos 3 anos ou aos 18, e também a idade de aparecimento da doença é diferente. Há ainda, um Tipo 4 mais raro, que corresponde a menos de 5% dos casos, que aparece na idade adulta (por volta dos 30-40 anos) e que nunca perde a marcha.
É uma doença complexa que requer o acompanhamento de várias especialidades, não é assim?
Teresa Moreno: Para além do acompanhamento multidisciplinar que todos estes casos exigem, porque todos têm insuficiência respiratória, com ventilação noturna, uma vez que os músculos respiratórios perdem progressivamente a sua funcionalidade, e em alguns casos até se começa profilaticamente com ventilação noturna não invasiva.
A sobrevida destas crianças aumentou imenso desde que se começou a ventilação, porque eles morriam de insuficiência respiratória, e desde o momento em que, há 15 anos no mundo inteiro, se estabeleceram standards of care multidisciplinares de intervenção na ventilação, na nutrição, na terapêutica agressiva cirúrgica da escoliose, as crianças conseguiram sobreviver com uma qualidade de vida melhor e percurso escolar normal, numa cadeira de rodas é certo, mas a doença não afeta a parte cognitiva, pelo que são miúdos brilhantes, com um grande handicap motor e ao mesmo tempo muito interessantes e desafiantes.
E em que momento é que se começou a explorar a terapia génica?
Teresa Moreno: Quando se conseguiu perceber concretamente o problema genético começou-se a tentar encontrar uma solução. Até há pouco tempo não havia qualquer tratamento, mas nos últimos quatro anos foram já aprovadas três drogas para modificar a doença.
Esta terapia génica que se faz na Atrofia Muscular Espinal foi o primeiro tratamento génico aprovado no mundo para qualquer doença. Os primeiros medicamentos que surgiram, sendo que estão muitos ainda em ensaio clínico, resultaram da correção do pequeno defeito de SMN2, com vista à produção da proteína completa. Essa foi a primeira medicação aprovada em dezembro de 2016, com a designação de Nusinersen, e não atua ao nível do gene, mas age ao nível do RNA mensageiro, ou seja, no splicing do gene, indo corrigir aquele erro, fazendo com que a proteína produzida seja completa. E os resultados foram muito entusiasmantes para quem trabalha com esta doença. Os casos de Tipo 1 têm uma mortalidade de quase 95% antes dos dois anos de vida, 80% no primeiro ano de vida, portanto, quem viu morrer muitas crianças, de repente tem algo para oferecer.
O Nusinersen, porém, tem a desvantagem da administração por punção lombar. É uma injeção a nível da medula que se faz no início aos 0 dias, aos 15 dias, aos 30 e aos 60 dias e depois de 4 em 4 meses para a vida toda. Esta, não sendo aquela que designamos por verdadeira terapia génica, tem sido aplicada aos nossos meninos aqui na Pediatria.
Existe, neste momento, já aprovado nos Estados Unidos, um medicamento com o mesmo mecanismo de ação, o Risdiplam, mas com uma técnica diferente, já que é administrado via oral. Aguardamos agora que seja aprovado também na Europa.
A verdadeira terapia génica surge posteriormente então?
Teresa Moreno: Sim, foi aprovada em 2019, nos Estados Unidos, e em 2020 pela EMA, a verdadeira terapia génica e essa terapia consiste em introduzir o gene em falta, o tal SMN1. E o que acontece é que se procedeu à modificação de um vírus, um adenovírus, de forma a conseguir transportar o gene para o interior do núcleo. Nós "infetamos" a criança, digamos, com milhões de cópias de um gene, transportado por um vírus, que não é infeccioso por si, já que foi retirada a sua capacidade de replicação.
E como se aplica, na prática, essa terapêutica?
Teresa Moreno: Por via endovenosa, uma única vez, já que o vírus leva o gene para o núcleo e, apesar de não se inserir no genoma, fica autonomamente dentro do núcleo a replicar-se repetidamente.
E passados 5 anos desde o primeiro tratamento em ensaios clínicos, o mecanismo de ação continua a revelar-se eficaz. No nosso Serviço, aqui em Santa Maria, começámos a aplicar a terapia génica em 2019. Até ao momento, já aplicamos em nove doentes em Portugal, cinco dos quais no Hospital Santa Maria (dois em 2019, três em 2020) e fomos quase precursores a nível europeu. Na realidade, fomos o primeiro país da Europa, fora de ensaio clínico, a introduzir esta terapêutica.
Neste momento, recorrem apenas à terapia génica para o tratamento da Atrofia Muscular Espinal?
Teresa Moreno: Não, fazemos ainda injeções intratecais - que se insere no grupo das terapias modificadoras da doença - porque a autorização da EMA faz com que a terapia génica, neste momento, seja limitada aos mais pequenos, isto é, às crianças até 21 quilos com duas ou três cópias de SMN2.
Os ensaios clínicos só trataram crianças até 8 quilos e meio e a EMA emitiu uma autorização que espantou toda a comunidade científica, porque permitiu o tratamento de crianças até aos 21 quilos. Não há nenhum estudo em crianças com esse peso, estão agora a planear ensaios clínicos para provar que também é eficaz em crianças maiores. O grande problema reside na carga viral que é injetada, por quilo, em crianças tão pesadas, levantando a questão se é, ou não, tolerado pelo organismo.
Qual das terapias se revela mais eficaz ou adequada?
Teresa Moreno: Todas têm sucesso, porque todas modificam a evolução da doença, agora a medicação - seja qual for - é tanto mais eficaz quanto mais precoce, porque na verdade, como doença neurodegenerativa que é, provocando uma perda de neurónios motores abrupta nos primeiros 3 meses de vida, sendo que são células do nosso corpo que não se reproduzem nem regeneram, perdem-se para sempre - é quase miraculoso quando a terapêutica é muito precoce.
Qual é o valor de investimento implicado nestas terapêuticas?
Teresa Moreno: No caso do Nusinersen, são cerca de 100 mil euros cada toma, e a terapêutica génica custa 2 milhões de euros. Obviamente, para justificar estes custos, implica que o tratamento ocorra o mais rapidamente possível, de forma a garantir uma vida normal.
A luta que estamos agora a empreender, e que decorre já em alguns países da Europa (Alemanha, norte de Itália e outros), é introduzir o diagnóstico da Atrofia Muscular Espinal no Teste do Pezinho. Dessa forma, conseguimos tratar os meninos antes dos primeiros sintomas.
Nos ensaios clínicos que estão a fazer terapia génica pré-sintomática, as crianças estão todas a andar e com etapas motoras iguais a uma criança normal, então, aí é que vale a pena.
Ao longo de mais de 20 anos de atividade dedicada à Neuropediatria, Teresa Moreno assistiu à perda de mais de duas dezenas de vidas que, na ausência de uma cura ou de outra solução viável, tiveram o único e o mais infeliz dos desfechos à data. Porém, nos dias de hoje, a evolução é outra e Teresa Moreno reconhece, com evidente entusiasmo, que "é uma felicidade poder assistir a esta revolução".
Como é que tem sido a evolução dessas crianças, após a terapêutica génica?
Teresa Moreno: As nossas crianças não são casos em que nós esperemos que, milagrosamente, comecem a andar de um dia para o outro. Os follow-ups mais longos registam-se 18 meses após a terapêutica, e é verdade que são crianças que já estão em pé e estão a começar a dar os seus primeiros passos.
Com que idades?
Teresa Moreno: Entre os 18 meses e os 2 anos e meio. São crianças que já teriam falecido, segundo a evolução natural da doença e, neste momento, já estão a começar a comer pela boca, já falam, conversam, estão em pé, começam a dar os primeiros passos com apoio e é muito gratificante. Obviamente que, algo muito importante até para os mais crescidos (que mantêm o Nusinersen), foi moderar as expectativas, inclusive das próprias crianças, uma vez que iniciaram o tratamento numa fase evoluída da doença. Não se consegue reverter a doença, pelo que a ideia é que não piore e progrida até à tetraplegia, a fim de conseguirem ser pessoas independentes, ainda que em cadeira de rodas.
Resultados a longo prazo ninguém tem, porque é tudo muito recente no mundo inteiro, portanto, na realidade, estes doentes têm um follow-up muito apertado até para a comunidade científica perceber como é que eles evoluem a longo prazo, se a medicação continua a fazer efeito, o que é que vai acontecer à função respiratória, se vão deixar de precisar de ventilação, ou não...Tudo é uma incógnita e o futuro está completamente em aberto nesta área.
Teresa Moreno acredita que o futuro da Medicina passa pela terapia génica, "embora nem todas as doenças genéticas e há muitas, no campo das neuromusculares, apresentem resultados eficazes". "A sorte da Atrofia Espinal é que o gene é muito pequeno, é transportável", explicou, salientando que “houve outras tentativas com veículos de transporte que não os vírus, mas não têm sido eficazes”.
Atualmente, o Serviço de Pediatria do Hospital de Santa Maria acompanha cinco crianças com Atrofia Muscular Espinal de Tipo 1, que foram sujeitas à terapia génica, em contexto pós-sintomático, e que inspiram cuidados permanentes com base numa intervenção multidisciplinar ao longo da vida.
Sofia Tavares
Equipa Editorial