Cirurgia de Epilepsia em cadáver reúne alguns dos melhores da Europa
É dos poucos cursos de cirurgia de epilepsia em cadáver na Europa e avançou para a sua 5ª edição. Pertence ao Campus e chama-se Alexandre Rainha Campos e está no terreno a acompanhar a componente prática de um curso que conta com a coordenação do Professor Catedrático Jubilado António Gonçalves Ferreira.
Depois de uma 1ª edição em Portugal, em Lisboa, em 2022, o sucesso foi tal que o número de vagas não permitiu dar vazão à elevada procura. Mais do dobro de inscritos pedia assim que se repetisse nova dose e ela chegou nos últimos dias.
Sala agitada, cada uma das 6 estações alterna em dinâmicas entre formador e três formandos. Todos da área da Neurocirurgia, alguns são recém-especialistas, outros internos. A ideia é formar neurocirurgiões com a capacidade muito específica de tratar epilepsia. As técnicas de treino são várias e enquanto as manhãs reforçam o conhecimento e a explicação teórica e científica num dos melhores hotéis de Lisboa, as tardes servem para a sua aplicabilidade em plena Faculdade de Medicina, dentro do Campus de Santa Maria.
Ali está ele, discreto, focado, mas sem tempo para vaidades ou dispersão com o acessório. Transita subtilmente entre grupos, observa e fala cirurgicamente apenas, tal e qual faz com as próprias mãos quando mais tarde lhe pedimos para ser o próprio a exemplificar uma técnica. As mãos mal mexem e, no entanto, estão a mudar o rumo de alguém, dança de minúcia entre 4 dedos e materiais que executam as técnicas.
Detalhe exato dado pelo microscópio, com incríveis lentes Leica, avança-se na técnica e assim é o procedimento. Cada passo com a prudência de se ter a vida em mãos, apesar de hoje, aqui, estarmos rodeados de cadáveres.
Pragmático e confortável, nestes dias diríamos que o azul costuma ser a sua cor predominante para vestir. Ténis confortáveis, não lhe tiram algum formalismo de quem leva muito a sério o que faz. Dá-nos alguns minutos para rápidas explicações, depois de lhe pedirmos ajuda para falar com a imprensa sobre as últimas notícias de Elon Musk e de um dispositivo a colocar no cérebro. Tem paciência para nos ajudar, sempre fora de horas e de rápida reação, mas se um tema lhe passa a parecer aparição por vaidade, deixa cair o assunto, sem grande aparato, só terminou o seu tempo de palco que não é o lugar onde gosta de estar.
Falamos então entre batas, tantos protagonistas e cabeças brilhantes, entre cadáveres e tanta ação.
Se pensarmos que cerca de 25% a 30% dos doentes com epilepsia não são tratáveis só com medicação, não é de estranhar que a opção mais eficaz seja a cirúrgica e que ela se torne tão desejável. Mesmo com terapêutica possível de administrar, havendo uma lesão como tumores, ou malformações, a cirurgia pode funcionar como eficaz na eliminação de crises, ou pelo menos atenuando o impacto dessas crises. A melhor das notícias é que, curada a doença, através da cirurgia, a medicação pode deixar de ter necessidade de ser administrada. Cirurgia funcional pretende-se que sejam capazes de devolver à pessoa a sua função total a longo prazo da vida. É isso que os reúne a todos, o treino pela vida.
São vários os tipos de abordagem que se apresentam e que nem a todos implica chegar ao cérebro.
Dispostos pelas diferentes estações do Teatro Anatómico, espaço considerado como um dos melhores internacionalmente para aplicação de técnicas e treino regular, estão, neste amplo lugar frio, devidamente cobertos e protegidos de qualquer exposição 6 cadáveres. Deles não conhecemos nada, nem nome, nem o tom de pele, naquele momento a única certeza é que aquelas pessoas doaram os seus corpos para que outros os estudassem para se tornarem ainda mais eficazes a tratar os vivos. Daquele espaço imaculado, não há um desconforto, não há um cheiro, um pedaço de pele exposta sem extrema necessidade. Há mesas que se alinham a meio do corredor, há caixas várias com luvas e materiais descartáveis que a todo o momento se substituem, para que não haja qualquer risco de contaminação.
Hoje apenas o pescoço de cada cadáver está à vista para a primeira intervenção. Microscópios minuciosamente apontados à jugular e carótida, é no maior nervo que atravessa o nosso corpo, do intestino à cabeça, o nervo vago, que se vai aplicar um elétrodo, enrolado todo ao seu redor e que será estimulado para que então comunique da forma correta até à cabeça. Aqui trata-se do meio para atingir o fim, é o mesmo que dizer que ao aplicar uma corrente elétrica no nervo vago, isso causará uma comunicação para o tálamo que difunde a informação ao restante cérebro. O objetivo? Diminuir o número de crises por epilepsia. “Há casos em que não se trata de vez a doença, porque nem todas as epilepsias são curativas, mas baixamos a probabilidade de ter uma crise e a sua própria intensidade”. Alexandre Rainha Campos explica quase que numa dança entre pensamento e ação, fazendo assim a discreta transição com o seu grande mentor da casa, o Prof António Gonçalves Ferreira, que mais tarde aparecerá para fazer alguns cumprimentos e assumir o papel de anfitrião e o grande responsável pela organização do curso.
Mais homens que mulheres, várias são as nacionalidades que se reúnem num só espaço. Bélgica, Suíça, Holanda, Espanha, Itália, França e da Coreia também deveria ter chegado alguém, não fosse o problema final com o visto.
A projeção internacional da ESSFN - a Sociedade Europeia de Estereotaxia Funcional tem a visibilidade lógica de uma Sociedade de alcance global, mas não é de menor importância dizermos que o Prof. António Gonçalves Ferreira, Past-President e depois de 5 anos a presidir a Sociedade e até 2023, foi muito responsável por colocar Portugal e a sua antiga Faculdade diante dos holofotes principais.
Aqui há uma herança de mestres e aprendizes, carimbo cravado na história da Instituição onde Alexandre aprendeu quase tudo o que lhe fez ir beber o mundo a seguir.
Mesmo ali à frente, Hans Clusmann, a trabalhar neste momento na Alemanha, foi um dos seus mentores. Agora são pares e Alexandre convida-o para se juntar nesta sequência de novos médicos aprendizes.
Um pouco mais ao lado Stephan Chabardes implantou, há 6 anos atrás, um dos primeiros elétrodos em humano, tal como se fala agora de Elon Musk e do aparente pioneirismo clínico.
Alexandre divide-se entre a explicação mais detalhada e logo passa ao seu segundo idioma de domínio, o inglês, onde explica a um dos recém-médicos que se não seguir à risca os passos, não será bem sucedido a enrolar no nervo vago a fita com o elétrodo.
“Estamos num Teatro Anatómico e nem se sente onde estamos”, diz-nos o neurocirurgião, mas não é só pela qualidade do espaço, garantido pela dupla Raquel e Pedro que assistem estes médicos e pertencem à Faculdade. Não são todos os cursos que conseguem garantir, em todas as estações, microscópios de alta precisão, aspiradores ultrassónicos, ou os craniótomos (materiais que permitem abrir os crânios). Apenas reservados para treino e preparação das técnicas, estes são materiais exclusivos para os grandes cursos hands-on, já que nas cirurgias reais e com humanos outros iguais são aplicados, evitando assim contaminações possíveis.
Mas não é só da Faculdade que vem o orgulho que nos fez ir atrás da reportagem, Santa Maria é um dos raros hospitais que mais condições reúne para aplicar estas cirurgias, como Alexandre Campos reforça. “Estamos em um dos melhores centros de epilepsia o que não é assim tão habitual. Destes grandes formadores nem todos têm esta capacidade de cirurgia nos seus centros, o que torna o nosso Hospital muito versátil, assim como as suas equipas médicas”.
Quanto aos nossos portugueses, Gonçalves Ferreira foi beber as técnicas a França e Canadá, seguiu-se o seu então aprendiz Alexandre que lhe seguiu os primeiros passos e também alargou a experiência, desta vez na Alemanha. De aprendiz passou a mestre, seguindo-o agora Diogo Simão, neurocirurgião que assume igualmente o papel de formador. Alexandre não está no quadro dos grandes, ainda exposto na sala do Professor e mestre Gonçalves Ferreira, “mas houve um qualquer esquecimento de imprimir as muitas fotos que temos”, explica o Professor mestre e nós asseguramos que de hoje em diante Alexandre fará parte desse quadro dos grandes, onde naturalmente já está e se quer manter, mas sem tantos elogios.
“É das coisas que me dão mais gozo e por isso continuo aqui, há sempre alguém que nos acompanha, ou porque nos ensinou, ou porque nos cabe a nós agora o papel de ensinar”, continua Alexandre. A ligação ao público não é apenas porque o coração pesa, a qualidade das técnicas e a possibilidade de algumas cirurgias só acontecem porque se está num hospital como Santa Maria, lugar onde, ainda assim se assumem as maiores responsabilidades tecnológicas, os melhores perfis técnicos e os maiores investimentos na melhoria dos doentes, custe o que custar ao Estado. “Quanto mais complexo, mais é acolhido pelo público”, reforça com o orgulho que o Campus merece receber, não é vão que se assina o orgulho por Santa Maria.
"São as pessoas que abrem cabeças, mas com o apoio de máquinas"
Sorriso tranquilo de mais um dia de formação. A frase é de Alexandre Rainha Campos. Não é tão terrível ouvir algo assim, assim se imaginarmos que ali se treina para melhorar a vida de pessoas reais, vivas, apenas doentes.
A visita guiada segue, mais do que pelas imagens que vão ampliando 6 cabeças abertas, Alexandre explica que é preciso atravessar várias camadas da cabeça e é então que depois se avista o cérebro.
Berbequins especiais que furam o osso do crânio e param exatamente antes de qualquer perfuração indesejada, a verdade é que uma das técnicas implica não só chegar ao cérebro, como remover e aspirar parte dele. A condução da técnica segue através do Diogo Simão. Removido o tumor, ou uma displasia que se entende por má formação cerebral, há ainda a cirurgia que pretende desconectar o hemisfério inteiro, esta sim uma das mais complexas da epilepsia. “Só se aplica esta cirurgia quando a epilepsia piorava a própria função do cérebro. Ao aspirar estamos a aspirar o defeito”, conta-nos o Diogo Simão, fruto de mais uma excelente exemplo de criação deste Campus onde o próprio se mantém orgulhosamente.
Desconectar hemisférios é uma das outras cirurgias raras quanto muito eficaz e treina-se neste curso.
A viagem segue agora na condução do neurocirurgião Simão, como é conhecido pelos seus pares. Aqui está o lobo temporal, e há casos muito específicos em que removemos uma parte mais interna deste lobo, a amigdalohipocampectomia, técnica muito frequentemente associada à cirurgia da epilepsia refratária”, ou seja, quando apenas a medicação não consegue controlar as convulsões causadas pela epilepsia. Entendendo que abordam várias técnicas, neste momento treina-se a cirurgia de remoção seletiva, em que se remove apenas uma parte interna do lobo temporal.
São mais de 20 pessoas que dão corpo real a estes 3 dias de pura adrenalina. Cara a cara entre vida e morte, os médicos desafiam a morte para poder chegar a mais tempo de vida, com qualidade, estudando a cada segundo o risco.
Deixamos todos nas suas funções e na azáfama das técnicas e das repetições seguidas e seguidas.
Chegada ao fim esta 5ª edição, temos por certo que uma nova voltará em breve a Portugal.
Hoje, dia 4 de fevereiro Alexandre Rainha Campos completa mais um ano de vida e que celebramos com orgulho pedindo que permaneça no Campus enquanto puder. Para nos inspirar, para criar mais soluções e levar mais vidas adiante. E assim terá sido tudo mais suportável, mesmo observando o Alexandre e o Simão, entre mortos e tantos outros gloriosos.
Obrigada Alexandre e parabéns!