O ensino da Medicina foi classicamente centrado em grandes hospitais universitários e na transmissão de um conhecimento científico, combinado com uma dose variável de opinião pessoal dos mestres, naquilo que se confunde com um componente de arte. Assumiu-se que depois desta mescla de conhecimentos técnicos e imersão em enfermarias em contacto com mestres clínicos teríamos como produto final um médico. Mas a medicina mudou muito. A base científica continua fundamental, mas expandiu-se enormemente, muito para além do que um ser humano pode abarcar e com uma progressão constante que invalida a utilidade de um treino simples de memória. Por outro lado, a medicina atual não se compadece com “laivos artísticos” e está profundamente enraizada na evidência científica que justifica o diagnóstico e a terapêutica. Evidência essa permanentemente em evolução. Adicionalmente, a medicina infiltrou-se na comunidade. Primeiro, através de uma valorização crescente da prevenção e do diagnóstico e tratamento fora do ambiente das enfermarias, reservando os hospitais para as situações agudas e complexas. Segundo, através da enorme acessibilidade a informação médica de qualidade variável acessível a todos através da internet. Os doentes informam-se de forma complementar à interação com o médico e este tem de saber utilizar esta variável para a promoção da saúde e para uma maior efetividade do contacto com o doente. Por isso, o modelo de um médico opinativo e paternalista não encaixa numa nova realidade de uma medicina mais interativa e participada.
Por estes motivos os alunos de medicina são atualmente treinados para evitar respostas rápidas e simples e conseguirem conviver com respostas complexas e incompletas. No fundo, adaptarem-se à incerteza das franjas do conhecimento humano. Perder o medo de fazer perguntas e não ter medo de respostas que deixam ainda mais perguntas no ar.
E nesta mesma linha os estudantes de medicina têm de se preparar para conviver com a inteligência artificial no suporte à decisão médica e a novas formas de explorar a imagem em medicina, que se encontram neste momento em várias fases de desenvolvimento e expansão e que geram elas próprias mais dúvidas do que certezas.
Paralelamente, para além do conhecimento nuclear técnico (médico e tecnológico) os alunos de medicina necessitam de solidificar valores fundamentais. É essencial abraçarem e incorporarem os valores primordiais da empatia, compaixão e comportamento inclusivo, respeito pelos outros, honestidade, responsabilidade, credibilidade, profissionalismo e compromisso com a excelência.
Os jovens médicos do século XXI têm de ser capacitados com a visão e a flexibilidade necessárias para uma vida profissional e pessoal em que tudo vai mudar, mas sem perderem a alma da prática médica, que é a interação humana.
João Eurico Cabral da Fonseca
22.10.23