Presidente do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas e Diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, Fausto J. Pinto tem sido um ativo protagonista, cujas mensagens de alerta não parou de pulverizar, até as sentir recebidas.
No sentido dos ponteiros do relógio: Joana Sousa, Isabel Varela, Catarina Monteiro, Sofia Tavares e Cristina Bastos.
Preocupado como médico e líder de diversas equipas e grupos de trabalho, assim como o grande responsável pelos seus próprios estudantes, Fausto J. Pinto nunca largou o papel de médico e mantém-se ao lado da sua equipa hospitalar. Foi de lá que nasceram alguns dos melhores vídeos dos últimos tempos, de ânimo, de sensibilização, mas acima de tudo com uma mensagem sempre muito presente, “estamos todos juntos e a fazer o melhor”.
Entrevistá-lo era ensejo nosso. Não ouvir um dos grandes impulsionadores dos movimentos mais aguerridos numa fase em que o governo não queria ouvir falar de interrupção presencial nas Escolas e ainda menos de emergência nacional, este foi o homem que encarou sempre que a sua missão era alertar, alertar e alertar.
A equipa do Gabinete de Comunicação juntou-se e cada uma lançou aquilo que gostaria de lhe perguntar se estivesse diante dele. E assim foi, mesmo à distância, ficámos ainda mais perto.
Sofia Tavares
Como e quando é que o Professor despertou ou percebeu que o que estávamos a enfrentar era algo inédito e sério na medida da gravidade da problemática?
Fausto J. Pinto: Quando as notícias da China e Macau começaram a chegar e falando com os meus colegas chineses e de Macau, principalmente, comecei a ficar preocupado. Tal acentuou-se de forma dramática quando o vírus chegou à Europa e quando se começou a perceber que se se tomassem medidas reativas, em vez de proactivas, o resultado era o da catástrofe em Itália. Dadas as minhas vastas ligações internacionais, comecei a receber notícias muito alarmantes e também a avaliação por parte dos meus colegas, da forma ineficaz como as autoridades, por exemplo em Itália, estavam a encarar o problema. Foi aí que comecei a procurar influenciar e alertar para a necessidade de aprendermos com os erros dos outros e não cometermos os mesmos. É mais um exemplo da condição humana, como Andre Malraux a descrevia, onde vemos todas as matizes de comportamentos e atitudes. Vem também mostrar a importância de ter os líderes certos nos lugares certos quando é necessário enfrentar crises da gravidade da que vivemos. Governar em tempos fáceis, qualquer um faz, é nestes momentos que se veem os verdadeiros líderes. Mostrou a vulnerabilidade do sistema, sobretudo a incapacidade dos políticos lidarem com uma situação que lhes escapa totalmente, respondendo sempre muito a medo, direi mesmo com mais medo de si próprios do que da situação. Também mostrou que, infelizmente, ainda temos em Portugal uma espécie de oligarquia que, como um polvo, embrenha o nosso sistema, o que faz que sejam quase sempre os mesmos a tomar conta das situações, baseados mais em critérios de cor partidária, ou membros de organizações ou amizades, do que propriamente de competência. Esta foi a razão que fez o CEMP vir a público, quando constatámos que quem estava a aconselhar o governo, nomeadamente o obscuro Conselho de Saúde Pública, não fazia a mínima ideia do que se estava a passar, de tal forma que foram desautorizados pelo próprio Primeiro-Ministro, após uma grande pressão da nossa parte, para evitar uma catástrofe ainda maior. Aqui o Primeiro-Ministro esteve bem, apenas pecou pelo atraso. O que é espantoso é como aquele grupo de senhores e poucas senhoras, tem cara sequer para sair à rua. Eu teria apresentado a demissão na hora. Poderiam ter sido responsáveis por uma catástrofe de dimensões ainda superiores ao que estamos a ver em Itália, uma vez que o nosso sistema de Saúde não tem a robustez do italiano (que está em colapso!!!).
Nesta guerra, designação que desde cedo o Professor utilizou para descrever a pandemia que enfrentamos atualmente, quem são os maiores aliados?
Fausto J. Pinto: Desde o início os meus colegas do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas perceberam a dimensão gigantesca deste problema, bem como o nosso Reitor, o que resultou na suspensão das aulas presenciais em todas as Faculdades de Medicina, e algumas Universidades, como a nossa, suscitando, na altura, algumas críticas. Mas os grandes aliados, que perceberam o que estávamos a enfrentar foram, desde o início, os nossos alunos, os nossos docentes e os nossos funcionários, que desde a primeira hora, têm tido uma postura de grande responsabilidade. Escusado será dizer que internamente tive o apoio incondicional, desde a primeira hora, quer da minha direção e dos presidentes dos vários órgãos, bem como dos seus membros, e da AEFML. Finalmente, a postura do Presidente da República foi, até agora, embora um pouquinho tardia, a de maior responsabilidade por ter sabido ouvir e decidido o estado de emergência, que não sendo uma vacina, nem resolva o problema, vai seguramente atenuá-lo.
Isabel Varela
Como viu a vontade dos nossos estudantes de ajudarem os seus os médicos mais experientes no combate ao Covid-19?
Fausto J. Pinto: Tenho um orgulho indescritível nos nossos estudantes. Numa primeira fase, em que muita gente ainda pensava que isto era uma “brincadeira” de imediato tivemos uma adesão total por parte dos nossos estudantes, não só na adesão ao que íamos determinando, mas também por espontaneamente se terem disponibilizado para toda e qualquer ajuda, incluindo no contacto com doentes, o que é de uma generosidade notável. Também a sua adesão de forma maciça ao programa de aulas virtuais que foi montado, na nossa Faculdade, encheu-me de contentamento, pois foi um sinal da maturidade e sentido de responsabilidade dos nossos alunos.
Que conselhos daria a jovens médicos que estão a enfrentar uma crise desta dimensão, pela primeira vez, e com pouca experiência clínica?
Fausto J. Pinto: É para este tipo de situações que nós médicos somos treinados e é nestes momentos que temos de mostrar porque é que é fundamental ter um sistema em que os médicos são devidamente valorizados e apoiados. Nós somos os soldados nas trincheiras combatendo o inimigo que não dá tréguas. Somos nós que temos que o derrotar. E é também aqui que o nosso juramento e a nossa ética é uma referência para toda a sociedade. Não viramos a cara ao combate nunca, mesmo pondo em risco as nossas vidas e a dos nossos familiares. Mas é essa a massa de que é feito um médico. O nosso único objetivo é aliviar o sofrimento, combater a doença e dar esperança a quem de nós tanto precisa neste momento, não discriminando ninguém. Para os mais jovens é um tratamento de choque, é verdade, mas é também uma espécie de catalisador do que é ser médico.
Catarina Monteiro
Como é que as redes sociais estão a mudar o paradigma da partilha de experiências? Seja entre profissionais de saúde ou a população em geral? Grandes redes de partilha e solidariedade têm-se gerado a partir destas redes. Na sua opinião, qual tem sido a importância deste novo meio de comunicação neste momento que vivemos?
Fausto J. Pinto: A forma mais eficaz de chegarmos hoje em dia a qualquer ponto do mundo, um segundo depois, é através das redes sociais e é por isso que tenho tentado passar tantas mensagens assim. No Twitter, onde a comunidade académica e médica está muito ativa e, onde trocamos diversos artigos científicos que fundamentam as nossas mais profundas convicções, mas também no Facebook onde há uma comunidade muito alargada e mais habituada com esta plataforma. É na partilha de artigos, muitos deles relatos de amigos e colegas meus de outros países, que conseguimos ir mostrando a verdade do que se está a passar. Veja o caso de Itália.
É esta catástrofe que queremos evitar em Portugal e é por isto que nos temos batido, contra alguma bonomia inicial das autoridades, que levou tempo a reagir apropriadamente e sempre com alguma desconfiança. Ainda agora, apesar do Estado de Emergência, há muita gente que está mais preocupada com a sua situação pessoal do que em evitar uma catástrofe anunciada, se nada se fizesse.
Cristina Bastos
Enquanto médico e Professor, todos os dias tem pela frente um novo desafio. Até agora, e na situação especial que vivemos, qual foi o mais desafiante?
Fausto J. Pinto: Diria mesmo que o mais desafiante é continuar a convencer e a explicar que o principal combate está na prevenção, que só se consegue, neste momento e como já referi várias vezes, se for decretada quarentena obrigatória. Tem que ser longa e para todos, não apenas os considerados de maior risco, são todos. Não se resolvendo completamente o problema, pelo menos vamos conseguir diminuí-lo.
Catarina Monteiro
Recentemente o DN publicava um artigo, onde mencionava o Professor com uma manchete que dizia, “é preciso ter acesso aos dados do covid-19 para ajudar na luta contra a epidemia”. Não se tem acesso aos dados reais?
Fausto J. Pinto: É fundamental ter acesso aos dados de quantos infetados temos para ajudar a compreender melhor a situação em Portugal e poder confrontar e complementar com o que se passa no resto do Mundo. Tal deve ser coordenado por entidades credíveis e não pelos senhores do costume, geralmente nomeados, logo com obediências restritivas. O CEMP (Conselho de Escolas Médicas Portuguesas) que inclui todas as Escolas Médicas Portuguesas, onde está reunido o maior número de peritos reais e independentes do nosso País, para além das redes internacionais respetivas, ofereceu os seus préstimos à tutela, como estrutura independente para garantir que a análise dos dados, que é complexa, obedeça a regras bem definidas pelo mundo científico e não sejam truncadas por medos políticos. Infelizmente, a resposta por parte da tutela foi, mais uma vez, titubeante, e receamos profundamente que seja criada mais uma comissão, possivelmente coordenada por um dos senhores ou senhoras do costume, que irão obedecer a critérios políticos e não científicos. É altura de, mais vez, erguer a voz da independência e da autoridade académica que uma estrutura como o CEMP tem, para exigir que sejam seguidos critérios de grande rigor na atribuição duma tarefa de interesse vital para o futuro. Monitorizaremos os passos seguintes com toda a atenção e o País continuará a ter no CEMP uma entidade responsável e totalmente independente que pugnará única e exclusivamente pelo que entende ser mais adequado para o País. Não nos inibiremos nunca de exercer aquilo que consideramos ser um dever cívico de intervenção. Isto é o que muitos de nós têm vindo a propor e que, parcialmente ainda, temos conseguido convencer os políticos. Mas falta ser mais agressivo na quarentena, insisto, na proteção efetiva dos profissionais de saúde, é preciso um reforço maciço do Serviço Nacional de Saúde, o uso da máscara deve ser obrigatório. E repito é preciso, testar, testar e testar. Depois é preciso insistir que as pessoas têm de ficar em casa, porque não há um Plano B.
Cristina Bastos
Que melhorias é que o SNS poderá implementar para estar melhor preparado no caso de haver uma repetição desta crise?
Fausto J. Pinto: Esta é uma oportunidade de ouro para um reforço substancial do sistema nacional de saúde. Como já disse publicamente, nesta guerra que travamos, o Ministério da Saúde deveria concentrar todo o esforço de guerra e ser uma espécie de Ministério de Guerra. Como em qualquer guerra, todo o esforço tem de estar canalizado para essa mesma guerra, que ainda não está ganha. Por isso, é fundamental haver um reforço muito substancial do orçamento do Ministério da Saúde, incluindo desburocratização de processos, nomeadamente nas contratações de recursos humanos, serviços, materiais, e muitos outros exemplos mais. Obviamente que esta reorganização exige uma cadeia de comando bem preparada e capaz de tomar as decisões que têm de ser tomadas, não olhando a outros interesses que não seja o das pessoas e do país.
Joana Sousa
Para aqueles que o possam estar a acusar de ser demasiado alarmista com as mensagens públicas que passa, o que lhes quer dizer?
Fausto J. Pinto: Sabe que eu fico pasmado com a forma ainda descrente, ou, pelo menos, pouco convicta com que alguns dirigentes políticos ainda olham para esta situação. Alguns até tentaram politizar a situação e outros entretiveram-se em exercícios intelectuais fúteis, que apenas levam a distrações do problema, tão desnecessárias e perigosas neste momento. E ainda fico mais pasmado, quando vejo as mesmas caras, que não foram capazes de interpretar os vários sinais que lhes foram sendo mostrados, podendo ter conduzido o País para uma situação idêntica ou pior do que a italiana, continuarem a ser chamados e consultados, não tendo sequer a humildade de assumir o chorrilho de disparates que foram dizendo, e desaparecerem de cena. Refiro-me ao famigerado e obscuro Conselho de Saúde Pública, completamente desacreditado na praça pública, e na comunidade médica e científica e que só por razões muito obscuras e que nos escapa a todos nós, que estamos na linha da frente, ainda se mantém de pé e, aparentemente voltar a ser consultado!!! Para quê? Qual é a credibilidade que pode ter uma estrutura que já mostrou não estar minimamente à altura da conjuntura actual? Mas não esqueceremos e contas terão de ser prestadas um dia. Como já escrevi, há uns dias, há líderes que ao tomarem decisões corajosas no momento próprio, o País ficar-lhes-á eternamente grato; mas se as tiver de tomar tarde de mais, o País nunca lhes perdoará.
Agora é, contudo, tempo de nos unirmos e ajudarmos, todos em conjunto, o nosso País a sair desta situação, que vai levar muito tempo (Bill Gates prognostica 2-3 meses e ele raramente falha).
Costuma dizer-nos muitas vezes que “prefere sempre ver o copo meio cheio em vez de meio vazio”. Qual é o copo meio cheio diante de toda esta adversidade que o mundo está a passar?
Fausto J. Pinto: É na adversidade que se revela a fibra das pessoas. E ela mostrou-se. Não tenho como agradecer à minha equipa clínica tudo aquilo que dão aos outros, agradeço o empenho que todos têm demonstrado para mantermos a atividade na nossa Faculdade, alunos, funcionários e docentes. Em menos de 24 horas fomos fortíssimos a implementar um regime de aulas todo por videoconferência. Tem sido um esforço notável que mostra que, mesmo em períodos difíceis nos sabemos superar e responder à chamada. Enche-me de orgulho a minha Faculdade e todos que a compõem, sem exceção. Enche-me de orgulho as equipas que me rodeiam e os meus pares das outras Escolas Médicas. E enche-me de orgulho o meu País.
Vemo-lo ativamente presente no Hospital de Santa Maria, longe da família e no epicentro do perigo. Não tem medo dos danos colaterais que pode sofrer com isso?
Fausto J. Pinto: No dia do pai gravei um vídeo precisamente para encorajar todos aqueles profissionais de Saúde que, como eu, estão a cumprir a sua missão. E ela passa por não podermos estar, neste momento, com as nossas famílias, tanto quanto gostaríamos, mas esta é agora a nossa fase de atuar. Todos temos os corações cheios e a certeza de estarmos a fazer todos estes sacrifícios para um bem coletivo e onde encaixamos as nossas próprias famílias. A minha equipa de Cardiologia publicou também um vídeo de ânimo e esperança, mas sempre orientado a pensar no público em geral, a ideia é que nós ficaremos bem se a população estiver bem. É esta a fibra que precisamos para vencer os obstáculos que, por vezes, parecem intransponíveis. São estes os que lutam nas trincheiras, por vezes em condições bem difíceis e expondo-se a todos os riscos, para que os nossos cidadãos sintam que não os abandonamos e nem nunca os abandonaremos. Tenho um orgulho ilimitado na minha equipa. E connosco podem contar sempre. Não fugimos nem arranjamos subterfúgios.
Equipa Editorial


