É um documento vivo, de uma energia e vitalidade intrigantes. Sabia mais tarde ou mais cedo que nos encontraríamos para conversarmos sobre o seu longo percurso profissional e para me contar algumas das muitas histórias que lhe marcaram a vida, mas, também, a da Faculdade e do Hospital.
É na Biblioteca de Doenças Infeciosas, onde espalha os seus vastos artigos, mails impressos e projetos de investigação, que o encontro. Enquanto espreito, discretamente, os inúmeros papéis que tem em cima da mesa, percebo que continua a escrever muitas das informações à mão. O pormenor da bonita e desenhada letra escrita explica, facilmente, o espírito lúcido e sábio deste Professor Catedrático Jubilado que foi Diretor do Serviço de Doenças Infecciosas do CHULN-HSM e Diretor da Clínica Universitária de Doenças Infecciosas da FMUL durante 20 anos.
Comentador quase residente, nestes últimos tempos, nos canais de televisão sobre a nova estirpe do Coronavírus, SARS-CoV-2, sabemos que em 2002 e 2004 já se falava de um Coronavírus, responsável pela SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave), em que a doença grave era o quadro clínico mais frequente, com isolamento de quase todos os casos, reduzindo, assim, o risco de transmissibilidade. A perversão agora com o SARS-CoV-2, diz-nos que, só apenas, os casos mais graves, que ocorrem em 20% dos infetados, 5% dos quais com necessidade de cuidados intensivos, é que são manifestamente detetáveis, dos restantes 80%, muitos podem passar despercebidos e estão por aí a circular e nem sabem que estão infetadas, pois a COVID-19 nestes casos evolui de uma forma ligeira ou são mesmo assintomáticos. Não se sentindo doentes e fazendo a sua rotina diária, vão sair e andar de transportes, frequentar restaurantes e lojas ou cinemas e trabalhar, participando em reuniões várias. Desencadearam assim, e sem o saber, uma corrente de transmissão do agente infecioso, que pode chegar a um hospedeiro cujo risco de adoecer com gravidade é elevado, porque pode estar mais debilitado. O grande perigo deste vírus é que ele não tem rosto, porque se desconhece qual é o número de portadores transmissores, a sua arma mais poderosa é a invisibilidade.
Diante deste cenário, seria impensável não aproveitar a diária presença do Professor Francisco Antunes, na Faculdade e Medicina e vir aprender muito da COVID-19 (doença associada àqueles vírus) sobre SARS-CoV-2.
Esta estirpe de vírus já nos era conhecida…
Francisco Antunes: Esta é uma grande família de vírus que circulam em animais e nos homens. Nos homens o comum é causarem doença respiratória ligeira, como a banal constipação, frequente na altura do inverno. Nos animais também circula e aquilo que é raro e que tem acontecido nestes últimos 20 anos, e por 3 vezes, é a passagem de um vírus que se transmitia, apenas, no seio dos animais, subitamente adaptou-se e passou para o Homem. Tal parece ser raro e, em particular, a sua capacidade de transmissão sustentada de homem a homem. O que acontece é que este novo coronavírus, responsável por uma doença respiratória grave, e o coronavírus que circulou há uns anos e responsável pela Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) foram ambos episódios com a característica de fenómeno raro, mas previsível. Ambos são do género Beta Coronavírus, tendo origem ancestral nos morcegos. Depois podem ter circulado em reservatórios animais intermediários, não se sabendo, ainda, qual foi esse animal (tartaruga, cobra, pangolim?), que terá servido de passagem do morcego para o Homem. Os gatos e cães são portadores de coronavírus, que não causam doença ao Homem. Mas é, também, importante dizer que outros agentes víricos passam de animais para o Homem, como a gripe dos suínos em 2009 (com uma mortalidade de 0,02%-0,4%) por H1N1 ou a gripe das aves em 2013 (com uma mortalidade de 39%) por H7N9. Aliás, várias zoonoses têm ocorrido nestes últimos 40 anos, como doenças infecciosas emergentes.
A própria gripe que vai ela também evoluindo de ano para ano.
Francisco Antunes: São transmissões de homem a homem e que, no caso da gripe sazonal, têm uma mortalidade que ronda os 0,1% e que, mesmo assim, é alta, tendo em consideração o número elevado de pessoas infetadas. Os que morrem pelo vírus da gripe sazonal são os mesmos que estão a morrer agora por COVID-19, ou seja, os mais idosos e aqueles com doenças crónicas, em particular cardiovasculares. Para além destes, as crianças são, também, na gripe sazonal um grupo de risco para doença grave e morte.
Mas pertence a esta família de vírus?
Francisco Antunes: Não. A gripe das aves teve uma mortalidade extraordinariamente elevada porque passou de um reservatório animal para o homem, com elevada agressividade. Estas passagens a que chamamos de transposição da barreira da espécie (quando passa do animal para o homem) são, geralmente, situações que se revelam de extrema gravidade e mortalidade. Porque são considerados organismos novos, que nunca tiveram contacto com o novo hospedeiro e, portanto, não tendo este, ainda, imunidade para se defender. Já os vírus da gripe que circulam há muitos anos no Homem, em que existe a chamada imunidade de memória, na maioria dos infetados passa despercebida, o que faz com que, na sua maioria sejam casos assintomáticos.
Isso significa que o ser humano é a espécie da qual falamos que se adapta ao meio ambiente?
Francisco Antunes: A maior parte das pessoas tem alguma imunidade residual e responde energicamente ao agente infecioso. Mas o vírus influenza (vírus da gripe) é, totalmente, diferente deste coronavírus.
Intriga-me a razão de um vírus que aparentemente deveria manter-se num animal, ou em alguns animais consiga, de repente, passar para o Homem e ter este efeito tão nefasto. Onde é que esteve este vírus até agora que não tocou no Homem antes?
Francisco Antunes: Esteve adormecido, contido no seu ambiente original, mas o Homem na sua evolução (crescimento populacional, globalização, efeito de estufa, desflorestação, necessidade de recurso a fontes alimentares à escala nunca vista), criou abertas no que diz respeito às barreiras de transmissibilidade destes agentes infeciosos. Alguns agentes infeciosos, como é o caso do Coronavírus, estão adaptados aos hospedeiros animais, por já haver uma relação secular entre agente e hospedeiro. Assim, estes animais têm uma coexistência pacífica com estes vírus e não adoecem. Mas, se por qualquer razão, forem criadas condições que facilitem o seu contacto com o Homem e se tiverem mecanismos que permitam a sua adaptação e multiplicação revelam-se com uma agressividade que não demonstravam no reservatório animal.
Como se dão estas brechas que permitem a ocorrência destes fenómenos?
Francisco Antunes: Muitas epidemias como estas aconteceram no passado, chegando a dizimar ⅓ da população mundial, como a peste negra, no século XIV. Mas, a partir do século XIX, no início da época industrial, com a melhoria das condições sanitárias e no século XX com os antibióticos e com as vacinas considerou-se que as doenças infecciosas deixariam de ser uma ameaça para a humanidade. A sida foi o primeiro sinal de que não seria bem assim. O aumento exponencial da população, a globalização, com circulação muito fácil de região para região e de continente para continente e os comportamentos e hábitos das pessoas são algumas das causas da emergência das doenças infecciosas. Com o crescimento da população, aumenta, também, a corrida ao consumo de animais selvagens (na China fazem parte das preferências alimentares), que servem de reservatório destes agentes infeciosos e, como tal, é cada vez maior o contacto entre Homem e estes animais. Assim se criam estes surtos, cada vez mais frequentes (Ébola, SARS, MERS e COVID-19). É preciso dizer que SARS-CoV-2 é muito contagioso, tal como o Coronavírus responsável pela SARS ou pela Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS, sigla em inglês). Sendo agentes infeciosos diferentes, a gravidade (patogenicidade) está relacionada com múltiplos fatores, um deles com a porta de entrada. Se a infeção se processa ao nível da árvore respiratória superior, a infeção poderá ser mais ligeira do que para aqueles casos em que a entrada do vírus é o pulmão profundo, podendo haver no primeiro caso maior risco de transmissão e no segundo maior risco de gravidade. SARS-CoV-2 tem taxa de gravidade menor do que aquela que esteve associada ao SARS. O SARS registou uma mortalidade muito elevada com uma taxa entre os 9-12%. No caso de SARS-CoV-2 a taxa é de 2-3%, que se aproxima da mortalidade dos vírus associados a vírus da gripe sazonal. (Nota importante: esta entrevista foi realizada no começo de março, pelo que os dados que se dispunham não são iguais aos atuais)
Deixe-me reforçar essa ideia, que este é um vírus com grande impacto, porque, como me dizia, ele não se manifesta em todos os seus portadores humanos e como tal é mais incontrolável porque "anda à solta".
Francisco Antunes: Sabe que a ideia inicial de “medirem” a febre nos aeroportos era boa, "se tem febre é suspeito". Mas neste vírus isso não funciona assim, porque a febre pode estar ausente, no início do quadro clínico ou, mesmo, decorrer sem sintomas. Tratando-se de uma doença relativamente benigna, para a população em geral, tem maior gravidade se o infetado tem uma doença crónica, ou se, pelo envelhecimento, tem doenças subjacentes, como doenças cardíacas, renais, pulmonares ou diabetes. Mas na população de idosos (mais de 65 anos), com doenças crónicas de base pode ser uma tragédia, porque implica maior gravidade da COVID-19, necessitando de internamento em unidade de cuidados intensivos.
E as crianças curiosamente parecem não ser grupo de risco.
Francisco Antunes: Em relação à gripe são um grupo de risco importante, mas neste caso em concreto aparentemente não o são. Aquilo que se tem verificado é que as crianças são pouco afetadas ou, então, não são diagnosticadas, tendo em consideração a benignidade do quadro clínico. De acordo com os dados epidemiológicos da China, de um modo geral, são afetadas pessoas com mais de 20 anos, sendo a gravidade crescente a partir dos 60 anos.
Da sua vasta experiência quer hospitalar, quer no ensino e investigação, consegue sentir qual é o tempo estimado para se descobrirem as primeiras soluções de tratamento no combate a este vírus?
Francisco Antunes: Um fármaco que era utilizado para a infeção do vírus da sida, o lopinavir/ritonavir e outros antivíricos têm sido utilizados em doentes com COVID-19. No entretanto, nenhum fármaco, até agora utilizado “em desespero de causa” está sustentado por evidência científica de eficácia para SARS-CoV-2. Porém, convém dizer que é mais fácil descobrir algo (um antivírico) eficaz para o tratamento do que para a prevenção (uma vacina). Na prevenção há várias vacinas em estudo, mas é necessário algum tempo para verificar da sua eficácia (lá para o fim do ano?). A evolução deste surto, à escala global, é desconhecida, mas pode seguir um de dois caminhos, isto é, o que aconteceu com a SARS no passado em que surto foi extinto em menos de um ano ou como na gripe sazonal, em que o vírus se instale no ser humano e possa circular nas mesmas condições que circulam outros vírus respiratórios. Com os dados disponíveis, penso mais na segunda hipótese. Como para a gripe, para a maioria dos infetados a doença é ligeira, o que significa que muitos casos passam despercebidos e não é possível isolá-los, perpetuando-se, assim, o risco de transmissão, com surtos a perpetuarem-se no tempo. No que toca ao futuro, não sabemos prever o que acontecerá quando ao inverno se seguirem estações mais quentes, atenuando a sua transmissibilidade, dado que SARS-CoV-2 é muito sensível ao calor.
Há alguma diferença nos primeiros sintomas entre uma gripe comum e a COVID-19?
Francisco Antunes: Não. Nenhuma.
O quadro clínico da gripe sazonal (que estamos, ainda, a atravessar), cursa com dores no corpo, tosse e, por vezes, febre, semelhante ao da COVID-19. O que devem as pessoas fazer?
Francisco Antunes: A primeira coisa é manter-se em casa e cortar qualquer tipo de socialização, inclusivamente com a própria família. Depois, tomar paracetamol, para aliviar as dores no corpo e a febre e contactar a linha Saúde 24. “Tirar” a temperatura 3-4 vezes ao dia e só tomar paracetamol se tiver mais do que 37,5ºC (não tomar medicação antipirética antes de “tirar” a temperatura). Um outro sinal de suspeição é o agravamento da tosse (cada vez mais frequente e com maior duração). Nesse contacto com os serviços de saúde, vão-lhe fazer uma série de perguntas em que vão tentar identificar alguns laços de ligação a situações de risco. Estes inquéritos estruturados tentam identificar a origem da infeção e os contactos. Não havendo suspeita não há caso de alarme. Em caso de suspeição, é contactado por uma equipa de saúde para a realização de um teste de confirmação e, depois orientado para o seguimento. No caso de positividade para COVID-19 o seguimento pode ser feito em casa (para os casos menos graves), cumprindo um isolamento familiar e social rigorosos até à melhoria clínica e dois testes negativos para SARS-CoV-2. Nos casos mais graves será internado. Não esquecer algo sempre muito importante, a higienização das mãos, dado que estas são um dos principais veículos transmissores de infeção. Não se deve levar as mãos à cara, muito menos espirrar e tossir para as mãos. E lavar, lavar muitas vezes as mãos!
Alguém que apanhe este vírus pode voltar a apanhá-lo, ou fica imune?
Francisco Antunes: Ainda não se sabe ao certo. Mas a experiência de outras doenças com as mesmas características e em vírus muito semelhantes diz-nos que se cria imunidade e que ela se pode manter até três anos depois. Mas tal pode não ser assim, dependendo do estado imunitário do hospedeiro e da capacidade do vírus escapar aos seus mecanismos de defesa. Na gripe há sempre mutações do agente, para o qual o hospedeiro perde a imunidade adquirida anteriormente.
Pode ser uma pergunta completamente primária e talvez não a devesse fazer. Mas para alguém que não é de Ciências como eu, o que me parece é que os vírus são organismos altamente "inteligentes". É possível dizermos isto?
Francisco Antunes: (Fica em silêncio um longo tempo). Sabemos que este agente infecioso tem uma elevada capacidade de se adaptar ao hospedeiro, impedindo que ele o reconheça de imediato e acabe por o eliminar, antes de causar alguns estragos. Ora essa capacidade de escapar aos mecanismos de defesa do hospedeiro é muito maior do que o esperado. A capacidade de mutação pela sua maquinaria genética de sobrevivência é, praticamente, ilimitada. Veja-se o que acontece com o problema das resistências aos antibióticos, aos antivíricos e aos antifúngicos, que são, também, uma ameaça à escala global.
Porque ele aprendeu a defender-se?
Francisco Antunes: Sim. Para se defender da morte causada pelos diversos mecanismos de defesa do hospedeiro, ele próprio desencadeia meios que impedem o seu reconhecimento. Esta capacidade de se defender é muito mais reduzida para o ser humano.
E não poderíamos nós descodificar a forma como o vírus se autorreconstrói e virá-lo contra ele próprio?
Francisco Antunes: É uma ciência relativamente nova e que investiga as características genéticas e moleculares dos agentes infeciosos, mas apesar dos avanços do conhecimento sobre o agente, a sua complexidade não permite, de imediato, ter à disposição meios de prevenção e de tratamento. Tem que ver muito com a inter-relação que se estabelece entre o agente infecioso e o hospedeiro e esta é muito complexa, sendo muitas delas desconhecidas. No entretanto, no caso concreto da COVID-19, devo reconhecer que os avanços têm sido muito rápidos, abrindo horizontes para a descoberta de terapêutica eficaz e de uma vacina.
Faço-lhe uma última pergunta em modo de provocação. Estará a Natureza a dar-nos recados?
Francisco Antunes: Eu acho que o que se está a passar não é, apenas, um fenómeno natural, o homem tem dado o seu contributo. Neste momento, a população mundial é de 7 biliões de pessoas, com probabilidade de, ainda, neste século ultrapassar os 10 biliões – é um mundo superpovoado e o planeta pode não aguentar este crescimento acelerado. Este crescimento populacional concentra-se nas grandes cidades que não estão preparadas do ponto de vista sanitário e de acesso a água potável, com acréscimo do risco para doenças transmissíveis. Por outro lado, a globalização não é, apenas, a mobilidade das pessoas, mas, também, a circulação de microrganismos e de genes desses microrganismos, de reservatórios e de vetores de agentes infeciosos. Além disto, é cada vez mais frequente, a interação do Homem com a vida selvagem, muito em particular pela desflorestação para ganho de terreno arável para cobrir as necessidades alimentares. Quer um bom exemplo? A varíola foi erradicada quase há 50 anos e no início deste século, em regiões remotas de África, apareceram casos semelhantes aos da “varíola”, com origem em macacos africanos. Estes casos ficaram circunscritos nestas regiões remotas de África, agora imagine se fosse na Europa? O contacto que se estabelece com os reservatórios e vetores de doenças infeciosas é cada vez mais frequente. E alimentar toda esta população? Há toneladas de alimentos que circulam por todo o mundo e esses próprios alimentos podem ser veículo de agentes infeciosos. Por fim há um fator que pode ter grande impacto na emergência das doenças infecciosas e que é o aquecimento global, principalmente, em relação a doenças transmitidas por vetores, como mosquitos e carraças. Como a sobrevivência destes está muito dependente das condições climatéricas, quanto mais quente estiver o mundo, maior o risco de expansão para aqueles vetores que sobrevivem melhor com temperaturas mais elevadas. Estes vetores multiplicam-se cada vez mais e alimentam-se cada vez mais. E de que se alimentam eles? Do sangue dos hospedeiros e, ao mesmo tempo, inoculam, durante a refeição, os agentes de que são portadores.
Joana Sousa
Equipa Editorial


