É o primeiro dia de um novo período.
Podíamos estar no pico do verão onde todos já partiram de férias. Ou podia ser o começo de um filme de ficção onde a humanidade se escondeu num qualquer lugar que não aqui.
É o dia que se segue à reunião entre Direção e responsáveis de curso de cada ano. O dia que se chegue ao comunicado das Escolas Médicas Portuguesas e o da Universidade de Lisboa. As Escolas fecharam o atendimento presencial e as aulas são à distância. O número de casos infetados aumentou e é preciso travar o circuito de interação entre pessoas para que um vírus ainda quase desconhecido não galgue os limites traçados pelo instinto humano de sobrevivência.
Ouvem-se números atrás de novos números. Itália passa para um dos países do topo dos mais preocupantes em mortes e infetados, Espanha segue-se pouco mais atrás.
Sem esperar pela concordância conjunta de parceiros ou concorrentes, o Diretor Fausto J. Pinto sente que tem responsabilidade cívica, de tutor diante de centenas de vidas sob a sua alçada. Pouco à frente todos o seguirão com os mesmos passos. Só posteriormente o Governo também cede. Todas as Escolas fecharão em poucos dias.
Já foram traçados os planos de aulas para todas as turmas do 1ª ao 5º ano, todos por videoconferência. Coordenado pelo Professor Joaquim Ferreira e com o apoio técnico dos Audiovisuais e Informática, bem como com o suporte de muitos alunos da AEFML e responsáveis por cada ano, na primeira hora da manhã a adesão é tanta que, a 15 minutos da aula começar, já 150 se encontravam online. Nem todos se conseguiram juntar à aula. Poucas horas passaram até esse problema ficar resolvido.
O 6º ano em estágio interrompe a sua ligação ao hospital afiliado. Quanto tempo de espera? Talvez duas semanas. Talvez um mês? E adia-se a Prova Nacional de Seriação?
É preciso esclarecer todos e criar um documento com as maiores dúvidas e respetivas respostas. O desafio é não sabermos quase nada, porque nunca estivemos assim.
A noite começa a chegar. Fecham-se as últimas salas de estudo e os papéis voam dos placards brancos deixando antever que também as eleições de novas listas de estudantes ficarão adiadas.
É o começo do dia zero.
Ninguém entra no Edifício e há finalmente tempo para que alguns se juntem e bebam café, enquanto persistem ficar porque não sabem não viver parte das suas vidas naquele espaço. Fecham-se os bares e bibliotecas e a papelaria que antevia as filas para a corrida solidária, está inundada em escuro.
Continua-se a trabalhar enquanto se caminha na incerteza do que mais poderá estar para vir. Não toca o telefone. Não há contactos do exterior. Entra a equipa de limpeza munida de frascos com desinfetante e luvas. Limpam-se telefones, ratos, mesas e teclados, ”desculpe incomodar menina”. “Não me está a incomodar, está a ajudar”, digo enquanto me habituo ao cheiro do álcool em substituição do perfume. “Não, ajudar só se for Deus neste momento…”, diz à despedida a Palmira, enquanto segue com calma já que o tempo muda a cada hora.
Equipas reúnem-se nos Audiovisuais para formação. É preciso saber trabalhar em teleconferência. Há equipas que se desdobram, a Informática é prova disso porque passa o dia a configurar sistemas de trabalho para que cada pessoa possa aceder remotamente. É preciso colar cartazes sobre a higienização das mãos nas paredes que casam a Faculdade com o Hospital. Parece que ninguém o quer fazer. Calçamos luvas e preenchemos corredores com a sensação que o fio da navalha está diante de nós e fintamos o risco como achamos que se finta sempre a morte.
Tudo corre num grau de pressão como se as decisões de agora tivessem de ser empurradas para ontem. Sucedem-se reuniões atrás de reuniões de equipas. Estão todos lá. Planeiam-se os primeiros trabalhos para quem vai aprender as informações à distância. Afinal é “até amanhã”, porque o trabalho de uma Instituição inteira não se completa e reorganiza em 2 ou 3 dias. “Até amanhã” ouve-se ao mesmo ritmo das teclas aceleradas dos vários computadores que persistem estar ligados.
Nova reunião de emergência é pedida para o dia seguinte. Publicam-se últimas decisões, respondem-se aos últimos pedidos de ajuda de diversos alunos que não sabem o que fazer. Cada segundo pesa como se nos relembrasse que a vida está a conta-gotas e tem riscos evidentes.
A tarde chegou aos corredores. Nem alunos, nem o doente de cadeira de rodas que fumava sempre na mesma esquina, nem o grupo de clínicos que bebia café. Não há ninguém. Ninguém atravessa as imagens que capto através de uma lente e do olhar. Passa uma senhora que trabalha naquela Faculdade há quase 20 anos, olha triste, “sinto um vazio, uma angústia, parece que há qualquer coisa que não está bem”.
Desaparece no horizonte a chorar. Diz-me que regressará ainda amanhã porque esqueceu algo. Talvez a saudade… diria eu.
Hoje foi o dia zero. De uma nova era que nos obriga a ser sérios e a ter consciência que não comandamos a nossa própria vontade, mas seguimos a corrente do tempo, decidindo na linha do imprevisível o que possa vir a ser o mais sensato.
Talvez daqui a semanas. Talvez quase de regresso.
Amanhã é o dia 1. Menos um dia que já ultrapassou o zero.
Joana Sousa
Equipa Editorial