Na FMUL, os debates sobre saúde estão à distância de um clique. Desta vez, e por ocasião da celebração do Dia Mundial das Doenças Raras, assinalado a 29 de fevereiro, reunimos novamente um painel de excelência na Sala Dr. Paul Janssen para mais uma edição do e-Conversas, que decorreu no dia 27 de fevereiro.
O debate foi coordenado pelo Doutor Luís Brito Avô, Chefe de Setor da Medicina 1D do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN) e também Fundador e Coordenador do Núcleo de Estudos de Doenças Raras (NEDR), da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (SPMI).
Como é já habitual, juntaram-se convidados e colegas de profissão para debater o panorama das doenças raras em Portugal.
Das perspetivas atuais à visão para o futuro, foram muitos os temas em discussão, nomeadamente, as condições de diagnóstico, formas de tratamento e novas possibilidades terapêuticas, a importância dos centros de referência nacionais para a prestação de cuidados de saúde aos portadores de doenças raras, o papel de relevo assumido pelas associações de doentes que, trabalhando em estreita colaboração com médicos e profissionais de saúde, ajudam a compor a realidade de um futuro muito promissor no que diz respeito à investigação e intervenção direta com os doentes.
Presentes na mesa estiveram a Dr.ª Anabela Oliveira, responsável pelo Centro de Referência de Doenças Hereditárias do Metabolismo (CR-DHM) do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central (CHULC); a Dr.ª Isabel Conceição, Neurologista do Centro Académico Médico de Lisboa e Coordenadora do Centro de Referência da Paramiloidose Familiar; a Dr.ª Patrícia Nunes, Diretora do Serviço de Dietética e Nutrição do CHULC; o Prof. Simão Rocha, Biólogo e Investigador no Instituto de Medicina Molecular e, ainda, o Dr. Patrício Aguiar, Médico de Medicina Interna no Hospital Santa Maria e docente da FMUL.
Os restantes convidados participaram de outros pontos de país e do mundo, num novo sistema webinar.
O ponto de partida para o debate foi a reflexão sobre o conceito “puramente estatístico” de doença rara, constatando-se que há 30 anos este não constava do léxico clínico, para além de que um médico pode passar uma vida inteira sem diagnosticar um caso, uma vez que são tremendamente invulgares.
É apelidada de rara a doença que tem incidência de um caso a cada 2 mil pessoas. Existem, no mundo, cerca de 300 milhões de pessoas portadoras de doença rara, dos quais 36 milhões europeus. Estima-se que, em Portugal, haja entre 600 a 700 mil portugueses com diagnóstico de doença rara. De referir que, até à data, não há uma base de dados ou uma forma oficial de registo do número de casos. Um dos critérios quantitativos reside no Cartão da Pessoa com Doença Rara. Desde 2014, adiantou a Direção-Geral da Saúde (DGS) recentemente à imprensa, somam-se 7177 as pessoas com este registo, um número manifestamente mais reduzido face à estimativa atual.
Foram muitos os desenvolvimentos da Medicina que permitiram, ao longo das últimas décadas, avaliar, reconhecer e desmistificar a informação em torno desta temática. Atualmente, estão registadas entre 7 a 8 mil doenças raras, sendo possível detetar através de análise laboratorial cerca de 3600.
Os objetivos estabelecidos pelo Consórcio Internacional para a Investigação sobre Doenças Raras (IRDiRC) determinam que, até 2027, seja possível fazer o diagnóstico de todas as doenças raras descritas num espaço de um ano, a disponibilização de mil medicamentos órfãos (de momento temos cerca de 200) e um conhecimento alargado destas doenças para que as estratégias de atuação sejam cada vez mais abrangentes.
Brito Avô é da opinião de que Portugal “é um bom exemplo nesta área”, aludindo à estratégia implantada através da abordagem integrada dos Ministério da Saúde, Segurança Social e Educação, que pretende responder às necessidades sanitárias, sociais e educativas destes doentes. É objetivo desta estratégia garantir que as pessoas com doenças raras tenham melhor acesso, e qualidade, nos cuidados de saúde e tratamento, com base nas evidências que a ciência tem vindo a produzir, e maior celeridade e variedade de respostas sociais adaptadas a cada caso. O primeiro passo foi a implementação de centros de referência que prestam cuidados diferenciados, de elevada especialização, com dispensa de medicamentos órfãos, capacidade formativa específica de profissionais de saúde, organização de registos e investigação médica, e integração em redes de conhecimento europeias, como a European Reference Network (ERN).
Estão designados no nosso país, atualmente, centros de referência para oito áreas de Doenças Raras, centros esses que trabalham em estreita colaboração com as associações de doentes (vistos como os principais recrutadores de pacientes para ensaios clínicos) para, juntos, unirem esforços na tentativa de melhorar a qualidade de vida de quem é portador de doença rara.
Brito Avô ressaltou que cerca de 80% destas doenças são de natureza genética e quase 50% manifesta-se na infância, tratando-se de um tipo de doença, muitas vezes, grave e incapacitante, sendo responsável por 35% da mortalidade infantil no primeiro ano de vida.
A Dra. Anabela Oliveira, na qualidade de coordenadora da área do adulto do Centro de Referência de Doenças Hereditárias do Metabolismo, alertou para a importância do rastreio neonatal e as implicações positivas que tem ao nível da saúde pública. O rastreio neonatal faz parte do Programa Nacional de Diagnóstico Precoce e existe desde 1979. Nessa altura, eram rastreadas apenas duas doenças: a fenilcetonúria e o hipotiroidismo congénito. Hoje, é possível rastrear cerca de 24 doenças hereditárias do metabolismo. Anabela Oliveira referiu, ainda, que são conhecidos “600 erros hereditários do metabolismo”, tratando-se de “um tipo de doença que não é muito falada na própria formação graduada e não graduada” dos médicos.
O Centro de Referência de Doenças Hereditárias do Metabolismo foi reconhecido em 2016 e conta com uma equipa multidisciplinar, onde a nutrição e ação social não foram negligenciadas. Trabalha em parceria com laboratórios de renome nacional com uma vasta experiência neste tipo de doenças, tendo sido enaltecidos o Centro de Genética Médica Doutor Jacinto Magalhães, do Centro Hospitalar do Porto, a Unidade de Genética do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge e o Laboratório de Genética da FMUL.
Por sua vez, Isabel Conceição falou sobre o trabalho desenvolvido no Centro de Referência da Paramiloidose Familiar, que foi oficialmente reconhecido em 2015, mas cujo trabalho remonta a finais dos anos 80, realçando que Portugal é o país do mundo com maior prevalência da Polineuropatia Amiloidótica Familiar (PAF), vulgarmente conhecida como Paramiloidose ou Doença dos Pezinhos, concentrando-se no nosso país 20% dos casos a nível mundial.
Hoje em dia, “a Paramiloidose começa a sair um bocadinho da nomenclatura ou quase totalmente”, prosseguiu Isabel Conceição, “porque a maioria dos doentes não tem Polineuropatia. Curiosamente, a maioria dos doentes tem Cardiomiopatia. Calcula-se que cerca de 40 mil doentes, mundialmente, têm uma forma cardíaca de amiloidose hereditária”. Acrescentou, ainda, que “a ideia de só termos uma mutação em Portugal é errada e o panorama tem mudado”.
Tratando-se de uma doença “multi-sistémica”, o Centro de Referência da Paramiloidose Familiar acompanha os doentes “em todo o circuito e especialidades” (da Neurologia e Genética à Oftalmologia, Nefrologia, Psiquiatria, Nutrição, entre muitas outras), desempenhando também um papel importante na formação de jovens médicos, assumindo essa mesma responsabilidade formativa e educacional junto dos doentes e público em geral. Este centro de referência dispõe de consulta aberta e segue, de momento, 400 doentes, dos quais 150 portadores assintomáticos.
Isabel Conceição assistiu na primeira fila aos avanços científicos e clínicos em resposta à Paramiloidose e partilhou connosco a experiência. “O primeiro tratamento proposto foi o transplante hepático, e que continua como uma indicação terapêutica nas fases mais iniciais da doença, e é gratificante eu ter passado por todas as fases: a fase em que não havia qualquer tipo de terapêutica, a fase em que o transplante hepático era a única opção terapêutica e a fase que vivemos hoje em dia, a fase do desenvolvimento que ocorreu, passando pelos estabilizadores da proteína para as últimas novidades de silenciadores de RNA”, esperando continuar a oferecer “mais e melhor” aos seus doentes.
A nutrição, particularmente nas doenças metabólicas, assume um papel de grande relevo e neste e-Conservas falou-se da importância da alimentação no controlo e tratamento deste tipo de patologias tão invulgares. Patrícia Nunes revelou que o acompanhamento nutricional é indispensável para garantir que o desenvolvimento estaturo-ponderal dos doentes ocorre da forma mais adequada.
Os mais de 20 anos de experiência no nosso centro hospitalar, cujo trabalho se liga estreitamente com as aminoacidopatias, em particular a fenilcetonúria, permitiram a Patrícia Nunes evidenciar que as doenças raras são um desafio constante para os nutricionistas, que “têm que estar muito atualizados com todas as questões nutricionais, perceber os hábitos e necessidades nutricionais dos doentes”. “Há um leque bastante grande de patologias no qual a nutrição tem um peso bastante significativo e, neste momento, o centro hospitalar conta com 5 nutricionistas especializados nesta área”, um número significativo que vem mostrar a importância atribuída pelo CHULN a esta problemática, ressaltando também o Mestrado em Doenças Metabólicas e Comportamento Alimentar disponível na nossa faculdade. “Há duas alunas atualmente nesta área e têm feito um contributo excelente”, rematou Patrícia Nunes.
Em conversa estiveram, também, os avanços notáveis da medicina genética e molecular ao longo dos últimos anos, assim como a evolução dos modelos de experimentação terapêutica tão importantes para o cuidado dos portadores de doença rara.
Simão Rocha dedica-se à investigação da Síndrome de Angelman, uma patologia neurogenética que afeta severamente o desenvolvimento físico e intelectual, sendo conhecidos 75 casos em Portugal. Considerando a importância de criar “modelos pré-clínicos que permitam testas drogas nestas doenças”, explicou o trabalho que tem vindo a desenvolver nesse campo. “O que estamos a fazer no laboratório da Professora Carmo Fonseca no iMM é, tendo acesso a doentes com Angelman – através da médica Sofia Duarte no Hospital Estefânia – nós fizemos recolha de material biológico, fizemos uma biópsia de pele, e a partir daí conseguimos fazer crescer células em laboratório, sob as quais nós conseguimos, hoje em dia, transformar essas células nas chamadas células estaminais. A grande vantagem dessas células, que são células indiferenciadas que vieram dos doentes, é que conseguimos agora diferenciá-las em tipos celulares que nos interessa investigar. No contexto de uma doença como o Angelman, uma doença do neurodesenvolvimento, nós podemos agora, em laboratório, transformar essas células em neurónios ou até formar estruturas tridimensionais de modo a perceber melhor a complexidade da doença”. Simão Rocha mostrou-se esperançoso em relação a este modelo pré-clínico, nomeadamente, com a possibilidade de vir a ser aplicado noutro tipo de doenças, ressalvando, porém, que o trabalho de investigação em curso “não trata os doentes atuais, mas esperamos que num futuro próximo possa vir a tratar e até mesmo curar este género de doenças”.
Perante avanços tão favoráveis, o passo seguinte reflete a interação entre as ciências biomédicas e a sua aplicação médica prática, o que determina o verdadeiro sucesso no tratamento da doença. Tal como explicou Brito Avô, “é fundamental a traslação deste conhecimento para a atuação clínica e farmacológica/terapêutica, a fim de identificar a forma de tratar a doença”.
Muitos têm sido os ensaios clínicos e tratamentos desenvolvidos ao longo dos tempos e Patrícia Aguiar destacou que é, precisamente, na área das doenças raras que o desenvolvimento terapêutico se mostra mais promissor. “Porque o conjunto de novas terapêuticas desenvolvidas é muito grande e tem permitido, em algumas doenças, modificar de forma muito importante a doença natural, tornando doenças que eram mortais em idade muito precoces até há poucos anos, em doenças crónicas, mas que permitem uma qualidade de vida bastante razoável”.
Entre outras, Patrício Aguiar citou a terapêutica de reposição de enzima criada em laboratório, adiantando que “o futuro neste tipo de doenças vai passar por terapia génica, também esta uma forma de reposição enzimática”, estando já em curso ensaios em humanos para algumas doenças genéticas. Salientou, também, a “edição genómica” – “algo impensável há alguns anos atrás” – como uma nova e mais abrangente perspetiva terapêutica a desenvolver no futuro. No encalce estão, ainda, as terapêuticas domiciliárias e a neurodegeneração de células estaminais para correção de problemas do sistema nervoso central, entre outras terapêuticas que têm vindo a ser testadas. Entre algumas “novidades” estão os significativos avanços no estudo da permeabilização da barreira hematoencefálica a diversas formas de terapêutica. “Vivemos numa época de transformação da forma como tratamos os nossos doentes. É muito gratificante e já estamos a modificar a forma como estes doentes são tratados”, concluiu.
No final da sessão, foi possível o entendimento unânime de que é esta visão interdisciplinar de várias áreas que melhor permite traçar uma estratégia de atuação eficaz face às Doenças Raras, que afetam cerca de 300 milhões de pessoas no mundo inteiro. O futuro mostra-se auspicioso e caminhamos na direção certa, porque cada dia é uma nova oportunidade de evolução para a Medicina e um incitamento à esperança para quem enfrenta, diariamente, os desafios de viver com uma doença rara.
Sofia Tavares
Equipa Editorial
