Encontrei-me com a dra. Emília Vieira, cirurgiã geral, no Edifício da Associação Amigas do Peito situado no campus do Hospital de Santa Maria, do Centro Hospitalar Lisboa Norte, associação da qual é fundadora. Neste espaço, com muita cor, especialmente o rosa, muito confortável e com ar alegre, tivemos uma conversa sobre o que é ter cancro de mama, o que mudou ao longo do tempo e como hoje em dia há muita vida para lá do diagnóstico de cancro de mama. A dra. Emília Vieira, é, nota-se, uma entusiasta em relação ao desenvolvimento que aconteceu nas últimas décadas nos tratamentos oncológicos, e vive, sem dúvida, para melhorar as condições das doentes oncológicas da mama, para cuidar da mulher, muito para lá da doença.
Qual foi o seu percurso de vida, e porque escolheu esta especialidade?
Emília Vieira: Eu, toda a vida, sempre quis ser cirurgiã. E inicialmente pensei em cirurgia ginecológica. Nos anos 80, não havia ainda esta divisão de especialidades que há agora. Lembro-me do nascimento da urologia, da cirurgia vascular, da ortopedia, entre outras, tudo estava englobado num grande caldeirão que era a cirurgia geral. Daqui nasceram depois todas as especialidades cirúrgicas. Escolhi a cirurgia geral e, entretanto, comecei a interessar-me pela patologia mamária.
Por alguma razão em especial?
Emília Vieira: Talvez por ter muitos doentes do sexo feminino, talvez por começar a despertar, a ver coisas diferentes em termos de tratamento de mama, com inovações estimulantes e talvez fosse isso que me despertou para essa patologia. Acontece que a minha tutora era uma mulher, das primeiras cirurgiãs em Portugal, e talvez por isso, num mundo de homens naquela altura, nós talvez tivéssemos muitas mulheres, porque se sentiam mais à vontade. E por isso tínhamos muita patologia mamária. Tanto benigna como maligna. Havia um problema qualquer, uma dor, havia uma infeção, vinham ter connosco. É óbvio que hoje em dia temos muito mais patologia maligna do que no passado. E talvez também por isso comecei a achar interessante esta patologia. E depois, principalmente nos anos 90, houve um grande boom. Nos anos 80… quando iniciei, a qualquer mulher que tivesse um tumor, tivesse o tamanho que tivesse, ainda se retirava a mama. Fazia-se uma mastectomia. Sabia-se que a mastectomia curava 60% das mulheres. Depois, entretanto, começou a grande difusão da radioterapia e aí verificou-se que não era preciso retirar a mama toda. Desde que se retirasse parte da mama, seguida de radioterapia havia a mesma segurança que fazer a mastectomia total.
Quando fala de segurança fala de sobrevida?
Emília Vieira: Sobrevida e sobrevida livre de doença. Em termos de longevidade e em termos de tempo livre de doença. Em termos de segurança, sabe-se que uma quadrantectomia (resseção parcial da mama) seguida de radioterapia tem a mesma segurança e sobrevida de uma mastectomia. E isso abriu-nos um mundo completamente diferente. Uma mulher até então era condenada a tirar a mama toda. A partir de finais dos anos 80, princípios de 90 abriu-se um mundo completamente diferente. E começou-se a ver o Cancro da Mama, não como algo que amputava a mulher de alguma maneira, mas algo que conseguíamos ultrapassar e a doente também sobreviver à doença e morrer de outra coisa de corpo completo. Quase em simultâneo começou a quimioterapia adaptada ao Cancro da Mama. A doente, era internada para fazer quimioterapia. Contactávamos o oncologista, a quem solicitávamos colaboração para uma doente com as características do tumor que tinha indicação para Quimioterapia. A doente era internada, fazia o tratamento e depois tinha alta. Falo nos anos 86, 87, 89 [do séc. XX]. Hoje em dia, esse tipo de tratamento é efectuado em ambulatório. Com a Radioterapia e Quimioterapia e a evolução do cancro da mama foi diferente. Assim como com a hormonoterapia. A quimioterapia consta de fármacos endovenosos, citostáticos que destroem as células malignas, tem uma atitude curativa e profilática, enquanto a hormonoterapia é um medicamento oral e só tem importância para tumores que são hormonodependentes, que tem receptores hormonais positivos. O fármaco mais conhecido é o Tamoxifeno, de que já toda a gente ouviu falar. Com este medicamento “as células tumorais deixam de reconhecer as hormonas e morrem porque não se alimentam”. Como tal, é um medicamento que alterou radicalmente o prognóstico deste tipo de tumores. Então surgiram três elementos fundamentais, a radioterapia, a quimioterapia e a hormonoterapia, para a mama. Foi um boom. E o cancro da Mama, apesar de ser o tumor mais frequente, e continue a ser, na mulher não é o que mais mata. O que mais mata é o pulmão. E na mama temos de agradecer em parte ao Tamoxifeno. Desde os anos 80 a mortalidade desceu 25%. Um tumor descoberto em fase inicial pode ter 90% de probabilidade de cura. O que é um tumor em fase inicial? É um tumor descoberto por rastreio e não porque a mulher o palpou. Um tumor palpável tem cerca de 2 anos no mínimo. Um tumor que ainda não é palpável pode ter de 6 meses a um ano. Claro que depende do tamanho da mama da mulher. Um tumor pequeno numa mama grande é mais difícil de palpar do que se for numa mama pequena. Um tumor palpável já não é um tumor em fase inicial e embora possa ser um tumor mais indolente e não tao agressivo, já tem um tempo apreciável de existência. Por isso, passou nos anos 90 a existir um grande incentivo ao rastreio, para se descobrir os tumores antes de serem palpáveis. E a partir daí houve as primeiras corridas da mulher que foi em Boston, e tudo se começou a generalizar. Temos, atualmente, o Outubro Rosa, mês dedicado à prevenção do Cancro de Mama. Portanto, foi uma época de ouro e eu vivi essa época de ouro, por pouco não assisti ao nascimento. Senti que estava a fazer a diferença e isso foi um grande incentivo. Costumo dizer às minhas doentes que é muito importante a época em que se vive e o sítio onde se nasceu, porque se fosse há 30 anos a maioria das mulheres atingidas por esta patologia tinha sido mastectomizada. Hoje em dia, a maioria das mulheres já fica com a sua mama, e nas ocasiões em que temos de a retirar, pode-se fazer reconstrução imediata na mesma cirurgia. Portanto, em termos de cancro de mama, por muito agressivo que este seja, na maioria dos casos temos uma visão positiva dadas as armas terapêuticas ao nosso alcance, como sejam citostáticos, hormonoterapia, vários tipos de radioterapia, vários tipos de cirurgia. Talvez por ser o cancro mais frequente também se investiu muito.
E essa realidade é como uma força anímica que se dá às doentes com cancro da mama, que sabem que existem várias “armas” para combater a doença?
Emília Vieira: Como disse anteriormente, temos muitas armas ao nosso alcance. Em relação ao cancro do pâncreas já não acontece o mesmo. E isso sente-se. Em relação à mama não. Há variadas coisas e há muita investigação em termos de prevenção. Existe agora uma nova investigação em que por análise sanguínea se consegue detetar células cancerígenas em circulação. Já me estão a perguntar como é essa análise e quando é que sai. As pessoas estão todas muito despertas para as novas maneiras de se poderem detectar os tumores o mais precocemente possível.
E a pessoa também pode ter as células e não desenvolver a doença…
Emília Vieira: Exactamente, e há muita investigação em mama exatamente nisso. O que é que faz com que uma célula cancerígena esteja adormecida 20 anos e de repente acorda e surgem metástases ósseas ou pulmonares? Ao fim de 20 anos acorda um tumor que esteve 20 anos adormecido. As células estavam lá, o que as fez despoletar? O que as faz adormecer? O que as fez acordar? Ainda não sabemos. Tenho doentes que estiveram bem, 20, 25 anos e depois têm metastização óssea. A axila é para onde “caminha” primeiro. Por isso, quando se tirava a mama também se fazia o esvaziamento dos gânglios da axila. No entanto, a metastização, em baixa percentagem, também se pode fazer por via sanguínea. Assim, num tumor de 2 ou 3 anos, já palpável, pode haver células em circulação. E nós sabemos quais são os tumores com características mais propícias a isto acontecer. Por isso, quando a probabilidade é maior temos que contra-atacar com quimioterapia, que além de curativa se torna também preventiva, no sentido de destruir as células em circulação, diminuindo a probabilidade de posteriormente termos metastização a distância.
Há diferença das doentes dos anos 80, para agora?
Emília Vieira: As mulheres são mais interessadas na sua doença. Querem ir ao fundo da questão. Querem perceber o seu tumor e foi por isso que em outubro lancei um livro. O título é “O QUE FAÇO? TENHO CANCRO DA MAMA”. Principalmente para tentar responder um pouco, ou pondo em palavras simples, as perguntas que as doentes me fazem. Elas querem perceber cada característica do seu tumor. O que quer dizer aquilo, porque é que me fizeram isto, porque é que eu faço quimioterapia e a outra não fez. Hoje em dia, com o estudo molecular e genómico dos tumores conhecemos cerca de 72 subtipos, por isso o termo cancro de mama é muito lato. E isto para dar a perceber às doentes porque é que podem estar 10 mulheres juntas e nenhuma delas ter tido o mesmo tratamento. Eu costumo dizer que é um tumor muito feminino e por isso tão variado (risos). Já em homens, a percentagem de aparecimento é de 1%, portanto por cada 100 mulheres há um homem. Pode estar relacionada com a parte hormonal. É pouco frequente, os fatores de risco são iguais aos da mulher, homens que fumem, homens que bebam, têm imunidade mais baixa, têm uma maior labilidade do fígado, do sistema cardiovascular, como tal têm uma maior facilidade em ter tumores. Em relação à mama, não há propriamente uma causa efeito em relação ao homem. O que sabemos é que num homem com cancro de mama é sempre feito estudo genético. Um homem com cancro de mama tem com frequência mutação genética. Quando isso acontece, toda a família tem que ser estudada. Tenho, por exemplo, um doente com cancro de mama que tem dois filhos homens e os dois filhos têm a mutação BRCA. A mutação BRCA nos homens não dá só cancro de mama, dá cancro do pâncreas, cancro do intestino, cancro de estômago, tiroide. Por isso, esses homens que têm mutação têm que ser vigiados para a probabilidade de ter cancro nesses lugares. Tem que se andar sempre em vigilância tenham a idade que tiverem. Nas mulheres só cerca de 10% dos cancros têm característica genética e familiar. Tenho umas dezenas de mulheres que são filhas de mulheres com mutações genéticas e que têm de ser vigiadas. Umas têm, outras não. Quando há mutação parte-se a curto prazo para a cirurgia profilática das mamas e ovário. Estuda-se a pessoa que tem o tumor, e se a mesma tem mutação vão ser investigados os descendentes, colaterais e ascendentes. E as pessoas querem conhecer. É muito diferente, as pessoas hoje querem prevenir, “se há a possibilidade de não ter a doença não tendo as mamas porque é que eu hei de estar nesta angústia e sofrimento”? É um processo complicado, mas é uma questão de sobrevivência. Se não vai fazer uso das suas mamas em termos de amamentação, se tem uma grande probabilidade de vir a ter cancro, porquê manter as mamas? As mulheres que tiram as mamas profilaticamente porque têm uma mutação BRCA, são mulheres que não se importam de o fazer. Querem prevenir. As que, devido à doença, são mastectomizadas e depois reconstruídas referem, muitas vezes, que não as sentem como delas. Psicologicamente, é diferente. Tem a ver com a escolha. Tenho doentes com mamas lindíssimas e dizem “estas não são minhas, é um corpo estranho que tenho aqui”. Sentem-se na mesma amputadas, sentem que algo saiu delas. Mesmo que mais ninguém repare. É a cabeça. É como, por exemplo, não terem mama, terem uma prótese e sentirem a dor fantasma, a mama doí-lhes. E eu pergunto: “Dói o que? A pele?”, e dizem “Não, dói cá dentro”.
Nesse livro que escreveu que questões coloca?
Emília Vieira: Há de tudo um pouco. A célebre pergunta “porquê eu?”, não há resposta a esta pergunta. “O que é que faço?”, que é o nome do livro. Primeiro é o choque da notícia, depois o que há a fazer? Vamos à luta. “Não posso ficar assim”. A maior parte das mulheres são combativas, algumas são derrotistas, mas são poucas, e nós tentamos incutir o instinto de sobrevivência. Até porque sabemos que na maioria dos casos há uma grande probabilidade de sobreviver. Eu costumo dizer “a senhora vai morrer de outra coisa”. E a grande maioria morre de outra coisa. Claro que depende do tipo de tumor, mas é por isso que os tumores são tao bem caracterizados, para podermos ter uma fasquia. Algumas mulheres acham que não vale a pena lutar, há mulheres que negam fazer alguma coisa, é a chamada “negação da doença”. É claro que também tivemos duas grandes guerras no século passado. A medicina evolui sempre após as guerras e isso também é importante, o desenvolvimento da medicina. Generalizou-se a anestesia após a primeira guerra mundial, o que permitiu logo uma grande abertura para a cirurgia. Em relação a oncologia foi isso, a evolução da medicina, não é uma época de ouro, mas com muitas possibilidades. Há prevenção e as mulheres estão despertas para isso. Nós, na associação, fazemos muito em termos de prevenção. Informamos, fazemos palestras, vamos a escolas, a juntas de freguesia e autarquias, e fazemos rastreios clínicos. Hoje em dia, a mulher está mais informada, quer muito mais conhecer, toda a gente sabe ler. Temos atualmente o mundo digital. Costumo dizer que conhecimento é poder. Digo isso no livro. Quanto mais nós sabemos, mais conhecimento e poder temos sobre nós, e mais estamos interessados em conhecer. O conhecimento é aditivo, eu quanto mais conheço mais quero conhecer. E quanto mais sei, mais noção tenho da nossa limitação e isso é maravilhoso, termos essa capacidade de saber mais.
E esta associação, Amigas do Peito, como aconteceu?
Emília Vieira: Foram as doentes que me pediram para criar esta associação. É um percurso duro, primeiro era um ramo que não conhecia, sou cirurgiã, aprendo todos os dias. Não é um ramo fácil, porque vive do voluntariado, principalmente, mulheres. Todas elas têm um carácter forte, o que é bom, mas muitas vezes temos de saber trabalhar em equipa. Mas nem toda a gente tem capacidade para ser voluntária. Tem de haver uma curva de aprendizagem e agora temos aqui uma excelente equipa de voluntárias, é positivo. E temos as nossas instalações desde 2016. Foi ao abrigo da lei do mecenato que fizemos tudo isto. E agora temos a Casa de Acolhimento no Bairro Padre Cruz, em Carnide, inaugurada em outubro de 2019, e que tem capacidade para 5 pessoas. É destinada a doentes oncológicas, deslocalizadas e com carências económicas. Queríamos muito que tivesse surgido no centro hospitalar, no espaço físico do Hospital Pulido valente, que tem ali espaço. Seria algo que daria para colmatar uma falha grande. Recebemos pessoas de todo o país, e para as pessoas deslocalizadas seria importante. Há pessoas que vêm fazer quimioterapia de 3 em 3 semanas e vêm de ambulância, ou fazer radioterapia todos os dias. O IPO tem um centro de acolhimento e nós, sendo o maior hospital do país também devíamos ter.
E as mulheres que recebem aqui têm varias atividades…
Emília Vieira: Temos apoio de ginástica, apoio psicológico, psico-oncologia, apoio nutricional e apoio espiritual quando é necessário. Também, às vezes, temos algumas medicinas complementares. E depois temos a via rosa, que é a possibilidade de encaminharmos qualquer mulher que não tenha uma consulta, que não saiba onde há de ir. As mulheres conhecem a nossa associação. Por exemplo, alguns dias atrás, alunos da Escola Superior de Saúde de Santarém mostraram interesse em vender os nossos brindes e eu irei fazer uma palestra sobre prevenção em Cancro da Mama. Vivemos de donativos e quotas, não temos nenhum apoio estatal, por isso temos que ser proativos. Vamos ter, também, um concerto com o patrocínio da embaixada de Cabo Verde. Recebemos muitas doentes dos PALOPS e a embaixada vai colaborar connosco num concerto solidário dia 18 de março, no espaço “LISBOA AO VIVO”, no Poço do Bispo, em Lisboa. Estas pessoas, vindas de determinados países, são muito carenciadas e nós ajudamos no que podemos.
Que mensagem gostava de deixar aos doentes de cancro da mama?
Emília Vieira: Eu penso que em termos de cancro de mama estamos numa fase positiva de evolução. Cada vez temos mais probabilidade de cura dos tumores, desde que sejam descobertos cedo, por isso as pessoas têm que estar despertas para prevenir, para os rastreios e para conhecer o seu corpo também, para caso haja alteração, ir ao médico. Havendo cada vez mais probabilidade de ter cancro, pelo factor idade, entre outros, cada vez temos mais armas para lutar contra ele. Acho que é uma fase positiva, embora sendo a doença do século, e talvez por isso, temos cada vez mais armas para lutar contra ele. Estamos a viver mais tempo, estamos a investir na prevenção e há tanta investigação, não podemos desanimar, quero deixar uma palavra de esperança. Estamos numa época maravilhosa em termos de investigação e novos fármacos, e isso é positivo.
Sónia Teixeira
Equipa Editorial