Chama-se Alda Guimarães, desde que veio para a Faculdade de Medicina em 2016 que se divide entre dois departamentos, de manhã recebe e separa todo o expediente, e tratamento dos processos individuais dos funcionários aposentados e saídas. Da parte da tarde vai para o seu lugar de "conforto" a Biblioteca, onde faz tratamento de espólios. Visito-a no piso 7 da Biblioteca e só aí se materializa o que é o seu trabalho pioneiro nesta Faculdade. Desafia-a agora um vasto arquivo composto por fotografias, folhas soltas, relatórios impercetíveis escritos à mão, filmes antigos, desenhos de traço manual e até plantas de túmulos de um Professor. Tudo terá de ser devidamente limpo e separado, inventariando individualmente cada documento, seja qual for o formato, assinalando a sua localização para se saber da sua existência e como aceder, para mais tarde vir a ser catalogado. Para saber tratar da História das mil histórias que guarda, Alda teve de aprender técnicas novas e saber tratar do papel ou aprender como se limpam e arquivam materiais delicados.
Mas engana-se quem pensa que a Alda é aquisição recente na Universidade de Lisboa. Há 35 anos a trabalhar, parte da sua vida foi passada no Edifício da Reitoria, na Biblioteca.
A Alda tem a habilidade de rasgar o seu sorriso como quase ninguém. Discreta e sem nunca querer incomodar ou marcar a sua presença, mal sente um raio de alegria em alguém, lança uma gargalha espontânea, como se não a controlasse mesmo que quisesse. Há no entanto algo curioso, alguns temas contorna-os como se os revisitasse de longe, como as memórias da Reitoria, ou da família e é aí que percebemos que atrás do riso genuíno há outras emoções mais resguardadas.
Não é de ânimo leve que me conta que quase todo o espólio da Biblioteca da Reitora transitou para o Caleidoscópio. Faz um silêncio quando lhe pergunto se lhe custou a separação dos seus grandes amigos, os livros. Os olhos enchem-se de tristeza, como se de alguém se recordasse como uma perda incalculável para os afetos.
Interrompemos a ligação aos livros do passado para que reconquiste o espaço atual onde está sempre a sorrir.
A primeira vez que a vi tinha luvas brancas de algodão nas mãos e mexia em livros antigos, como jóia preciosa, ou bebé, cuja pele delicada quase rompe ao toque. Parece que dança uma valsa enquanto me diz que gosta "do seu acondicionamento, trato, da maneira como o livro foi feito, ou como foi redescoberto". As luvas que usa servem para não se danificar o papel antigo, aprendeu que é o papel japonês que se usa para restaurar qualquer outro tipo de papel.
Desde pequena que se fascina com livros, que rica então diria, porque sempre se libertou graças à leitura e aos mundos imaginários que criou. Mãe de três filhos, o mais velho é enfermeiro nas Urgências em Santa Maria e só as duas mais novas vivem ainda com ela. Habituados desde sempre a ver livros por todo o lado, perguntavam sempre à mãe por que razão não os ia vendendo, "quando eu morrer façam o que quiserem", mas por agora os livros não saem da sua posse. Novos, velhos, edições antigas, encontrados em alfarrabistas, angariou alguns cujo conteúdo desconhecia profundamente, não é só a história do livro que a encanta, é a história do papel e do cheiro antigo que traça a personalidade das muitas mãos a quem já pertenceu.
A Alda não vê no digital o inimigo número um do livro, afirma convicta que "um não tira o lugar do outro, já que um é para algo rápido e o antigo para quem quer investigar a origem das coisas". Numa das suas gargalhas diz que no seu imaginário podia ser PJ dos livros e dos espólios, para desvendar todas as suas raízes.
Talvez não se imagine tudo o que Alda faz, mas o que me levou a falar dela este mês não foi a sua dança com os livros, mas sim a paixão pelo teatro e a preparação da sua mais recente personagem que será inspirada nos recentes estudos da Professora Carmo Fonseca sobre a amortalidade.
O teatro apareceu há 10 anos atrás, como um escape para a morte súbita por acidente do marido. As filhas, uma de 12 e a outra 18 e o filho mais velho que já não vivia em casa, aprenderam a ser suporte uns dos outros, mas foi a mãe que abraçou essas dores individuais e levou a batalha para a frente, adiando para ela própria a dor da perda e da gestão de uma família grande, na escassez de um orçamento de uma só. Apesar de ter sempre incentivado a família a fazer teatro, Alda foi, durante anos, a única que nunca o praticou, diz em mais uma aliviante gargalhada que "fazia apenas direção de atores caseira". Abria-se finalmente o seu caminho como atriz. A Reitoria lançava um mail a incentivar todos os funcionários a entrar num novo projeto, o teatro. Pediu "licença" às filhas para poder falhar duas vezes por semana à hora do jantar, não só foi incentivada como a mais nova passou a dar generosas ajudas no som e a mais velha na bilheteira, cada vez que faltam meios. Estar em palco é como se viajasse como acontece nos livros, entrando noutros mundos e colocando-se no papel do outro. Refere a importância de entrar na personagem construída a partir de uma vida real já que isso lhe dá uma visão das dificuldades que cada pessoa tem e nem sempre é entendida.
Nem de propósito num dos últimos almoços em que partilhamos ideias e assuntos, pediu-me se lhe fazia chegar as mais recentes notícias de estudos da Professora Carmo Fonseca sobre a reversão do envelhecimento. Explicou que para construir a sua personagem precisava de perspetivar a continuidade da humanidade, perceber para onde caminha a Ciência e como pretende ela criar um Homem amortal. Em breve Professora de Geofísica Quântica Oriental, Alda terá de perceber de física quântica. Para quem nunca gostou de Física como aluna, agora lida com ela como aliada. Quer mostrar-se sem ser a fingir e para isso entra nos temas a fundo. Ao recordar a Física percebeu que têm afinal pontos comuns. Faz Tai Chi onde pratica movimentos de energia entre a Terra e o Sol, aprendendo a sentir o magnetismo que circula à nossa volta. Ao perceber o que causará a amortalidade da espécie humana, ou seja, o seu prolongamento de vida, questiona se nascerão ainda menos crianças, se o planeta ruirá, ou se vamos ver esgotados os recursos para subsistirmos.
Mas para já e até que se esgote a fórmula rara que prolongará a vida, a Alda diz que vai envelhecendo e como tal mudando, mesmo fisicamente. E se alguém que não a veja há mais de 20 anos e que porventura já não a reconheça de perto, basta ouvir uma das suas gargalhadas para saber que só pode ser ela.
Podia ter perdido o otimismo e a alegria natural, mas não perde tempo a pensar nas memórias que já passaram. Por certo quebra e nem nesse momento se detém isolada como se um pilar sólido não pudesse chorar em público. Chora sim, e por vezes algo ainda lhe dói como se fosse ferida aberta, fresca.
Para alguém que viveu parte da sua vida a confrontar-se com a súbita mortalidade e que ficou sem referências para se agarrar, sabe bem que viver "é um caminho precioso e que só pode ir em frente". À pergunta se a física quântica lhe alivia a ideia da perda, Alda afirma apenas que fisicamente não nos juntamos mais a quem já perdemos e mesmo que o Homem um dia se torne em energia, não se reconhecerá entre pares porque perdeu a identidade e o rosto.
Peço-lhe que na peça de teatro que acabámos de ir construindo juntas imagine que entra na nossa sala a Professora Carmo com um comprimido que, tomado, nos faça durar mais décadas do que a média prevista. Ao perguntar-lhe se tomaria esse comprimido, fazendo parte de uma experiência pioneira, responde-me sem qualquer hesitação, "se fosse para ficar muito, muito tempo não quereria, porque poderia durar mais do que os meus filhos e isso eu não suportaria".
E agora faça-se silêncio.
Porque vai cair o pano e os atores entrarão em cena.
Joana Sousa
Equipa Editorial