É Professora Auxiliar na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e Investigadora na área das Neurociências, no iMM, e pertence ainda à Direção da Sociedade Portuguesa de Neurociências.
Sara Xapelli estuda o cérebro, esse surpreendente órgão que ao longo da vida pode continuar a gerar novos neurónios, mostrando que pode ter plasticidade. A Bióloga por vocação - é a bióloga que gosta de usar bata, como me diz a rir - nasceu e formou-se em Coimbra. Já mais no final do curso quando é apresentada às Neurociências, percebe que seria um Professor que teve durante o seu período de Erasmus, especialista em Metabolismo, que lhe marcaria o caminho, firmando-lhe as certezas que seria investigadora. Do embate inicial de ter de saber fazer testes em animais, percebeu que esse sacrifício era um meio para uma razão maior e que passava pela melhor compreensão da espécie humana.
Doutorou-se na área de epilepsia e nesse período transitou entre Portugal, a Dinamarca e o Canadá. Afirma com um certo olhar distante que esses foram os tempos mais enriquecedores da sua vida profissional, mas principalmente pessoal. Mais à frente explicar-me-á porquê, já que agora é ainda cedo demais para mo contar.
Chegada a Portugal fazia agora um Pós-Doc, ainda em Coimbra, onde olhava agora para as células estaminais. A sua presença num grupo que estava nessa altura interessado na Neurogénese i.e. na formação de novos neurónios e, a sua participação num congresso internacional abrira-lhe uma porta da sua vasta curiosidade. Percebeu que era graças a um elemento endógeno positivo do nosso corpo, os canabinóides, que as pessoas sentiam sensações como a recompensa e a satisfação. Estas aparentes evidências podiam ser um caminho que fazia sentido para quem olhava melhor para a Neurogénese. Os dez anos seguintes foram passados a estudar este tema.
Alegre e sorridente, a relação empática que estabelece com facilidade faz com que a própria quebre quando recorda os tempos em que veio para Lisboa ter com o marido, trazendo consigo a primeira filha de dois que viria a ter.
Escolheu tudo, a cidade, o Laboratório e Ana Sebastião, a Professora e Investigadora Principal em Neurociências e Subdiretora da Faculdade de Medicina. Emociona-se quando fala da Prof.ª Ana, que considera ter-lhe proporcionado a grande mudança da sua vida. Entrar num grupo como o de Ana Sebastião viria a abrir-lhe portas para ter uma linha de investigação própria, mas também para a docência.
Atrapalha-se e ri enquanto negoceia com os seus próprios sentimentos para que ali não apareça a comoção. É fácil entender os riscos que correu, já que só há pouco tempo tem um contrato estável, em 2016 teve uma posição de investigador FCT e é desde 2018 Professora Auxiliar, tendo vivido até então de bolsas e financiamentos pontuais por cada projeto que desenvolvia. Seria a Ciência sedutora o suficiente na sua vida para a manter presa ao risco?
Entrou e ficou. Por cá está ainda e tem a sua própria equipa, no entanto, toda ela financiada por bolsas e com a mesma sensação de risco de Sara no passado. Propôs uma linha de investigação nova, que ainda não existia no grupo, permitindo-lhe explorar os seus próprios caminhos de dúvidas. "Sabe, acho que a Professora Ana Sebastião nem tem bem noção do espaço que me deu e do que me mudou... agora que penso nisso", diz-me como se, pela primeira vez e ao fazer um passeio pelas memórias, descobrisse que o sentido das coisas se descobre realmente apenas algum tempo depois de tudo se vivenciar.
Dos canabinóides, já observados, passou a olhar também para a adenosina, área de eleição de Ana Sebastião e outra molécula que tem papel preponderante na Neurogénese. Fala do espírito de equipa que se vive no Laboratório, o que é de um grupo de trabalho, na verdade pertence a todos, é essa a política de partilha e entreajuda que se vive. Atualmente a questão que coloca a si e ao grupo de trabalho é qual a relação da aquisição de novos conhecimentos, durante a vida adulta, com a formação de novos neurónios? Apesar do número de novos neurónios em humanos não ser ilimitado, Sara Xapelli admite existir regeneração cerebral e que ela pode também ser ajudada através de estímulos ou com recurso a fármacos.
É perfecionista, admite, gosta pouco de errar, ou não saber a resposta de algo e é isso que a faz estar sempre a estudar e atenta ao que a rodeia, sente que não quer falhar com os outros. Mas também porque ao acumular o papel de Professora Auxiliar, sabe que deve estar sempre um passo mais à frente do que aquilo que ensina.
Habituou-se a ter alunos de pós-graduação e só nos últimos dois anos passou para o pré-graduado com Farmacologia e Neurofarmacologia. Está a referir-me a preciosa ajuda de uma Professora, igualmente investigadora, que a convidou a assistir a algumas das suas aulas teórico-práticas, quando esta acaba por entrar na sala para lhe dar os "bons dias".
É Maria José Diógenes, são amigas desde que Sara Xapelli ali entrou. Têm investigações de laboratório que as ligam, mas também o papel de mães tantas vezes mais atribulado que as juntou em períodos mais difíceis. Gosta do informalismo que se vive no iMM, lugar onde já vincou de tal forma algumas amizades que me diz ter duas famílias, a biológica e a do grupo do Laboratório.
A Sara que investiga o cérebro e o tenta descodificar a cada dia da sua vida, é a mesma Sara que gere dois filhos, apenas com a ajuda do marido e sem a presença dos pais de ambos em Lisboa. Todos sabem que na maioria dos dias das 18h às 22h o papel de mãe é o predominante, mas depois disso o trabalho retoma, sacrificando diariamente as horas de sono. Como adora o que faz, recicla a força anímica para representar todos os papéis sem se imiscuir de nenhum.
Diz-me que o tempo nos ensina a tirar ilações e isso remete-me para os tempos em que me falou da Dinamarca e do Canadá. Algumas das ilações foram mais demoradas, mas chegam quando assumimos novos papéis ou novas responsabilidades. Agora que orienta alunos de Doutoramento sente que só quando se amadurece se sente o privilégio das vivências passadas, valorizando cada pormenor com uma dimensão muito mais profunda do que o momento identifica.
Reforça que é a comparação das experiências noutros países que a faz dar mais valor ao seu próprio, bem como aos recursos humanos que tem e que, apesar dos escassos financiamentos, se somos competitivos diante dos melhores laboratórios da Europa, à qualidade das pessoas o devemos.
Numa era em que já perguntamos à Ciência daqui por quanto tempo haverá resposta para o rejuvenescimento dos nossos órgãos, impõe-se agora perguntar à cientista Sara Xapelli se, apesar da sua plasticidade, conseguirá o cérebro acompanhar o progresso do restante corpo.
Já temos na Medicina casos de transplante de alguns órgãos. Até ver e nada aponta para que um dia seja possível, não se transplantam cérebros. Mas e mesmo que ele fosse transplantável, a Sara deixaria de ser a Sara, seria uma Sara.02 sem a mesma identidade?
Sara Xapelli: Imaginemos que havia um transplante de cérebro, a pessoa nunca seria a mesma, só na ficção científica, porque as memórias, a aprendizagem e a experiência não poderiam ser transferidas. E mesmo que fossem, a pessoa deixaria de ser aquela que conhecíamos até ali e seria outra, a outra que habitava o antigo corpo. O cérebro tem inúmeras ligações, neste momento é impossível voltar a ligá-las todas.
Será que um dia, quimicamente, vamos conseguir dar inputs ao cérebro para que ele dure muito mais tempo?
Sara Xapelli: Esse é um dos grandes debates hoje em dia na nossa área. Temos duas regiões do cérebro onde há a possibilidade de se gerarem novos neurónios na fase pós-natal. Estas zonas são o hipocampo e a zona subventricular que, em humanos, está muito relacionado com a formação de novos neurónios no corpo estriado. O hipocampo está relacionado com a aprendizagem e memória enquanto o corpo estriado está mais ligado à coordenação motora. Neste momento, no nosso grupo estamos interessados em perceber se há outras zonas do cérebro onde existam outros nichos neurogénicos (local onde ocorre neurogénese a partir de células estaminais neurais). No entanto, temos noção que o número de células estaminais não é suficiente para restabelecer uma grande lesão.
Como as Doenças Neurodegenerativas?
Sara Xapelli: Sim, por exemplo. Porque nesses casos quando são diagnosticados já estão numa fase muito avançada.
Mas voltemos à busca dos tais nichos...
Sara Xapelli: Há grupos que já testaram em modelos animais transplante de células estaminais do cérebro, e estes, mais do que formar novos neurónios, funcionaram também como suporte, dando nutrientes àquela zona do cérebro que está danificada. O que é interessante agora é tentar, sem fazer transplante, conseguir que os nichos consigam fazer com que as células se dividam e originem novos neurónios. Por exemplo, no caso da epilepsia há inicialmente uma grande proliferação das células no hipocampo e depois elas tendem a diminuir porque há um gasto do pool, sendo que os novos neurónios fazem circuitos aberrantes promovendo uma maior excitabilidade.
Por outro lado, tem-se demonstrado que apesar de haver formação de novos neurónios, eles acabam por morrer porque não conseguem estabelecer ligações funcionais. Estamos por isso à procura de fármacos que consigam que estas novas células se estabeleçam onde há o dano e, assim, criem ligações funcionais, sem morrer.
Qual a razão da sua morte?
Sara Xapelli: O principal fator diria que é o ambiente onde as células estão que não é favorável.
Deixe-me fazer uma analogia para ver se percebi. É como se tentássemos plantar uma árvore num terreno todo ardido?
Sara Xapelli: É. E mesmo que seja essa a imagem, o que pretendemos é que, mesmo que demore mais tempo, essa árvore possa crescer em terreno ardido. O que também importa saber é que há outros tipos de células muito importantes e que não são só os neurónios. Há também as células da glia, como os astrócios ou os oligodendrócitos, sendo estes últimos responsáveis pela produção das bainhas de mielina, no Sistema Nervos Central, que revestem os axónios dos neurónios protegendo-os. (Estes perdem-se em doenças como a esclerose múltipla). O que importa referir nas células estaminais neurais é que, consoante os estímulos, conseguimos obter diferentes tipos de células. Isso faz-nos usar compostos como os canabinóides e seus derivados tentando obter deles apenas os resultados positivos, e permitindo que eles sirvam de estímulo. Então como primeiro passo podemos fazer uma experiência in vitro com canabinóides, incubamos as células, e avaliamos se o que conseguimos obter são neurónios, oligodendrócitos ou astrócitos.
E que assumem papéis diferentes?
Sara Xapelli: Nós nem sempre queremos produzir mais neurónios, consoante a doença, podemos querer extrair diferentes tipos de células. Deixe-me dar-lhe outro exemplo, num AVC não são só os neurónios que morrem, são todas as células que ali estão. O que nós pretendemos é reproduzir cada tipo de células, mediante as necessidades.
Precisam de criar o meio ambiente todo de novo?
Sara Xapelli: É isso.
E ainda não conseguiram encontrar a resposta?
Sara Xapelli: Temos as experiências em ratinhos. E é preciso ter noção que a translação para o homem depois pode falhar. Nos ratinhos temos de fazer várias réplicas para perceber se há um efeito padrão, mas um humano tem muitas derivações. Sabemos que para quase cada ser humano teríamos de aplicar um estímulo diferente. E é por isso que já se fala muito em Medicina personalizada, onde podemos obter as células da pessoa, testamos essas células em laboratório e verificamos se um fármaco pode ser eficaz. Esta parte já não é ficção e pode vir a ser cada vez mais possível.
Disse algo muito interessante numa entrevista recente ao DN, é que mesmo no quadro atual e não havendo ainda todas as respostas, há uma coisa que sabe, é que se houver um estímulo de aprendizagem constante, pelo menos, retardam-se alguns efeitos de desgaste do cérebro. O que não impede as Doenças Neurodegenerativas, mas pode retardá-las.
Sara Xapelli: Existe o conceito da Reserva Cognitiva, principalmente na Doença de Alzheimer, e uma das premissas que se pensa poder sustentar esta reserva é a neurogénese do hipocampo. Vários estudos, feitos com modelos animais, mostram que: animais que nunca saíram da mesma gaiola e nunca estiveram sujeitos a enriquecimento ambiental, têm mais problemas cognitivos a longo prazo do que aqueles animais que estão expostos a enriquecimento ambiental. Quando dou aulas tento sempre transpor para o caso de uma pessoa que tenha estado sempre fechada numa cave, com alguém que pode sair de casa, observar o mundo, ler, expondo-se a estímulos vários. E isso até me levanta de imediato a questão de existirem estudos que mostram que pessoas com literacia mais elevada terem menos risco para o desenvolvimento de Doença de Alzheimer.
Esse último ponto está comprovado?
Sara Xapelli: Vários dados mostram que pessoas com literacia mais elevada, mesmo vindo a ter a Doença de Alzheimer, têm uma progressão mais lenta da doença. Além disso, a exposição ao longo da vida a estímulos também parece ter um papel determinante. Os estímulos podem ser vários, o simples facto de ouvir música, ou manter atividade física, são estímulos para o cérebro. E os dados comprovam essa questão da reserva cognitiva. Mas até aqui nesta questão temos um contraponto que é o burnout e o excesso de informação. Como é que se vai comportar o cérebro aí... É uma pergunta que levanto para já sem ter onde me basear, mas que me faz prever alguma abordagem nova para o futuro.
Essa é uma grande pergunta. O que é que acontece ao cérebro quando ele recebe excesso de estímulo e de conhecimento?
Sara Xapelli: Ainda não sabemos, mas conto-lhe uma notícia que deu há poucos dias sobre um investigador que acabou por ficar perdido num aeroporto onde estava a fazer escala, porque já não sabia onde estava. A quantidade de informação que tinha e de coisas que tinha para fazer foi tanta que ele teve um burnout. É possível estarmos 24 horas do dia ligados à informação e a trabalhar. E veja, na Ciência mesmo que quiséssemos estar 24 horas a absorver todos os artigos que saem, seria impossível estar a par de toda a atualidade. A quantidade de informação que está ao nosso dispor é impossível de controlar. E o uso do telemóvel veio agravar este excesso, se reparar já mal usamos o telefone para chamadas.
E as consequências dessa absorção toda de conhecimento em simultâneo ainda não sabemos?
Sara Xapelli: Não, ainda não sabemos. Há um ditado que diz "o saber não ocupa espaço", mas não é bem verdade, ocupa sim.
É um overloaded não do computador, mas do cérebro?
Sara Xapelli: O volume do cérebro não aumenta de forma visível, mas é muito plástico sim e isso nós já sabemos. Vamos ter que, pelo menos, “colocar” as memórias “noutros sítios” para conseguir ter outros espaços livres de armazenamento. Já temos uma certa defesa da memória que, ao assimilar tanta informação ao mesmo tempo, esquece as informações menos importantes.
O paradigma da velhice está a mudar. A Organização Mundial de Saúde refere que até aos 65 anos somos jovens, só entramos na meia-idade aos 66. E só depois dos 80 atingimos a velhice. Ouvimos há poucos dias a Professora Carmo Fonseca a falar da genética e da forte probabilidade de virmos a retardar o envelhecimento do corpo. E o cérebro acompanhará este ritmo?
Sara Xapelli: Excelente questão, conseguirá o cérebro manter o ritmo do corpo... Lembre-se do nosso realizador Manoel de Oliveira e aí temos um exemplo, ou o Professor Walter Osswald que tem 92 anos e tem uma cabeça extraordinária e faz discursos atuais e de uma inteligência e lucidez sem comparação. São pessoas que se mantiveram tão ativas que nada nelas foi ficando para trás.
Significa que cerebralmente também temos uma mudança de paradigma? Mas parece que há aqui uma balança desequilibrada porque também temos cada vez mais Doenças Neurodegenerativas...
Sara Xapelli: Temos porque as pessoas no passado morriam antes de chegar à idade de terem estas Doenças, mas como vivem mais tempo têm mais propensão a todos os problemas Neurodegenerativos. Pode-se dizer que por agora, muitas vezes o cérebro não acompanha o ritmo do corpo. Mas continuo a insistir no estímulo e no tipo de vida que levamos. Não é por acaso que se insiste na prática de exercício físico, o cuidado com a alimentação, mas a falta de tempo faz-nos errar muito. Temos muita informação, mas não a aplicamos por falta desse tempo. Sabe que tenho verificado que nós vivemos numa espécie de "bolha", ou seja, principalmente pelo meio onde trabalhamos, vivemos perto de um grupo de pessoas verdadeiramente informadas. E bem perto de nós há muitas pessoas que ainda não têm assim tanta informação e cujo mundo se mantém muito fechado. O contexto marca as pessoas, mas muito também a saúde mental delas. Em termos experimentais quase que podíamos estudar dois grupos diferentes de pessoas devido aos diferentes estímulos e concluiríamos coisas diferentes certamente.
Quando era criança Sara Xapelli pensou que podia ser hospedeira de bordo só para poder conhecer o mundo, confidenciou-me. Cada vez que fala da experiência de poder conhecer outras culturas, vivenciando outras realidades sabe que isso será estímulo para ela. E quem sabe razão da sua própria plasticidade para o cérebro.
Será então que é aqui que reside a solução para as Doenças Neurodegenerativas, estimulando a regeneração neuronal? E como o fazer, de forma ativa e natural, ou através de uma indução planeada?
E nesses estímulos talvez até induzidos por fármacos, poderias rejuvenescer o cérebro no mesmo compasso que o corpo terá?
Longe de poder concluir estas leituras de quem tentar ler o futuro, talvez um dia as respostas sejam encontradas.
Para já tem-se uma certeza, o estímulo servirá sempre de prevenção para os problemas cognitivos, adiando a própria validade e lucidez cerebral.
Joana Sousa
Equipa Editorial