Um dia, lembrámo-nos de criar uma rúbrica que falasse das pessoas que estão nos bastidores, mas que sem elas as rotinas não aconteceriam. Chama-se “do lado de cá” e é através desta janela aberta que espreitamos algumas pessoas da Faculdade e para quem olhamos todos os dias e muitas vezes não sabemos o que nos contam por detrás de um “bom dia” dito à chegada.
No trabalho chamam-na Inácia, a família prefere que seja só a Maria. Todos os dias das 07h até às 15h a Maria Inácia diz “bom dia” às dezenas de pessoas que por ela passam. Mais atenta do que só ver caras e cartões que identifiquem de onde são, a Inácia sabe se alguém vem mais triste num dia, ou se está com alguma preocupação. Foi a atenção aos outros que fez com que recebesse diversos presentes de natal dos colaboradores e estudantes da Faculdade.
Com 53 anos a farda não lhe podia fugir do destino que algumas vezes contrariou, mas que viria a ser cumprido mesmo que de maneira enviesada.
Conheço-a no dia em que a Faculdade organiza um simulacro nas instalações do Edifício Egas Moniz. Ficamos sozinhas por uns minutos suficientes que me permitem satisfazer a curiosidade de a conhecer. Comunicativa por natureza não se importa de contar quem é e explica-me a sua paixão antiga por fardas, paixão repetida pelo Tiago, filho mais novo, que é agora da GNR.
Distraio-a por instantes, tenho noção, a Inácia precisa de estar atenta ao começo do simulacro, mas consigo roubar-lhe mais uma informação. Aos 23 anos concorreu para a Polícia de Segurança Pública, passou em todas as provas, mas esbarrou no último obstáculo físico, propositadamente, para ser eliminada. Ia casar e a pressão já era muita para que não se aventurasse nessas profissões masculinas, como trataria dos filhos quando eles viessem? Quem lhe pôs o problema foi o futuro marido, já que por fim o seu próprio pai, que outrora a proibira de entrar em casa se fosse estudar à noite e lhe fechou mesmo a porta, estava agora orgulhoso por imaginar uma filha da força de segurança pública.
Começa o simulacro e fotografo-a fardada, afinal é aquilo que mais gosta. A Inácia pousa discreta enquanto observa os monitores todos da sala de segurança. Sim, agora é segurança de uma empresa externa que garante a segurança da Faculdade de Medicina. Foram os filhos que insistiram com ela para que fizesse uma formação. Com grande esforço dividiu-se entre o trabalho e horas ao fim do dia de curso, pagou-o a pulso, aliás como pagou sempre tudo na sua vida. Completa que estava a aprendizagem, era preciso fazer provas e desta vez não havia obstáculos físicos para neles tropeçar. A pressão para não falhar fez com que bloqueasse nas provas e chegou a temer cair, mas desta vez na teoria. Passou, talvez por um fio, mas foi esse fio que poucos dias depois lhe permitia receber uma chamada para vir trabalhar para a Faculdade de Medicina.
Ainda há poucos meses cá, já conhece mais pessoas que a maior parte de nós. É feita de afetos, genuína, mas tem qualquer coisa de menina que lhe cria um certo protagonismo.
Filha mais nova de uma família só de rapazes, contrariou o conservadorismo alentejano da família que não via com bons olhos que fosse demasiado independente. A vida nunca lhe fora financeiramente fácil, no entanto, passou-a sempre a ajudar todos à sua volta, para isso era preciso trabalhar, muito, e o estudo foi sendo prejudicado. Dava dinheiro à mãe às escondidas para haver mais do que uma sopa para todos ao jantar. Em alturas mais duras em que o emprego lhe falhou e tinha dois bebés para sustentar e a casa para pagar, foi pedir ajuda à igreja da sua residência. Não a recebeu e conta-me esse detalhe com enorme espanto, como se esperasse generosidade de alguém. Fiel crente nos valores fundamentais cristãos, entende que curou a traqueia do filho João quando este fez 20 anos e fez uma anafilaxia, quase morrendo asfixiado à sua frente por ter comido caracóis. Vendo o filho em coma rezou a Deus e pediu uma corrente de apoio para que todos pedissem pela vida do filho. Crê que os médicos foram incansáveis, com a mesma crença que a outra Maria que não ela, mas a mãe de Jesus lhe devolveu o filho. Como crê também que a água benta que lhe deu a beber lhe curou as feridas da traqueia quando foi socorrido.
Das desilusões que somou com os outros e assistindo durante anos enquanto criança a comportamentos de grave violência doméstica do pai com a mãe, continuou sempre a ver magia na vida e nos outros. Talvez tenha razão em ser menina ingénua, mesmo com 53 anos, porque se a igreja não a ajudou, já um padre amigo o fez. Reuniu um carro de alimentos, financiados por quem quis ajudar, e entregou-o completo a Maria Inácia.
Não se arrepende de ter tropeçado no obstáculo que a impediu de ser PSP, mas hoje talvez se afirmasse de outra forma, explica-me sem mágoas.
O casamento, esse, perdura e hoje diz-me serem grandes amigos. Acorda ainda mal a noite descansou e é o marido que a leva todas as madrugadas aos transportes que apanha na margem sul até chegar à cidade universitária. Nunca gostou de andar por Lisboa sozinha porque diz perder-se com facilidade, mas hoje já passou mais esse medo. Orgulhosa dos filhos, agradece ao filho mais velho João o papel de avó de uma pequena de pouco mais de ano e meio.
E apesar de ter, na verdade, tropeçado em vários obstáculos que se lhe atravessaram sem os querer ter, continua a sorrir todos os dias e ver magia na vida e pergunta a quem passa, “então, hoje o que tem para estar com essa cara?”.
Não, a Inácia não é da Faculdade, mas trabalha cá e deu-lhe mais um rosto que sempre que aviste ao longe teremos de gritar, “Inácia, bom dia para si também!”.
Joana Sousa
Equipa Editorial
