Depressão, crise ansiosa e burnout são temas diferentes, mas todos eles estados mentais potencialmente observáveis nos estudantes de Medicina.
Em mês de exames e depois de termos ouvido os estudantes a falar sobre a pressão da Prova Nacional de Seriação, fomos ouvir um dos especialistas que estando ligado à área da saúde mental, é quem mais contacta com os estudantes.
Rui Martins é o Psicólogo residente do Espaço S, um espaço criado a pensar no bem-estar dos estudantes e que pertence ao Gabinete de Apoio ao Estudante (GAE). Apesar dos diferentes papéis do Gabinete, todos têm uma preocupação comum, identificar precocemente casos de burnout, falta de integração, ou afastamento do grupo e aproximar-se desses casos.
Apesar de facilmente podermos derrapar para outros conceitos como a depressão, a verdade é que a nossa mira incide nos processos de burnout que ocorrem cá dentro.

O que podemos entender por burnout e quais os limites que o definem?
Rui Martins: Burnout é o síndrome de exaustão, de alguém que chegou ao limite, esgotando os seus recursos. Na perspetiva mais clínica o burnout acontece em situações profissionais e académicas, esta é a principal diferença dos outros quadros depressivos e que normalmente incluem outras dimensões da vida do individuo. É a exigência do desempenho que esgota a pessoa. São os meses e anos prolongados de excesso de exigência que esgotam a pessoa. O diagnóstico de burnout excluí aquele que é feito na depressão. Mas o diagnóstico de depressão pode conter o de burnout. O senso comum falava da depressão como esgotamento, na verdade significava tudo o mesmo e o burnout até há pouco tempo pertencia a uma das categorias da depressão. Tipicamente caracterizado como consequência da pressão profissional o burnout isolou-se da depressão, apesar de apresentar muitas características depressivas. Da apatia e da falta de energia, se fizermos uma viagem aos momentos que marcaram aquela pessoa, ouviremos sobretudo relatos profissionais e não as várias áreas dos campos mais pessoais e emocionais.

Conseguimos traçar o perfil de alunos que chega com características de burnout?
Rui Martins: Geralmente o Espaço S recebe perfis de, alguns deles, com perturbação de humor, com uma componente académica já muito afetada, deixam de frequentar as aulas e isolam-se, tornando-se incapazes de gerir todo o seu dia. Sabem, contudo, que estão limitados nas faltas já que há muitas aulas cuja presença é obrigatória e não podem falhar. Não havendo uma fobia social, o desespero e a angústia pelo perfecionismo dão a ideia que enfrentar um dia normal é tarefa quase impossível. Queixam-se muito do nível de exigência de algumas matérias, da falta de tempo para preparar previamente as aulas que ainda vão ter. Depois há outros momentos em que os alunos são questionados diretamente e isso intimida-os. Sentem que a qualquer momento vão mesmo ser questionados diante dos seus pares e temem ouvir alguns comentários mais depreciativos por não saberem responder.
Será que as pessoas sabem identificar em si próprias que estão a atravessar um processo de burnout?
Rui Martins: Este é um processo lento e gradual, logo geralmente as pessoas não o conseguem identificar. Sentem-se muito cansadas e tristes e perdem a motivação, mas não são facilmente identificados pelos próprios. Tudo se torna difícil e tudo o que ainda conseguem fazer, fazem-no com enorme dificuldade. Tudo causa enorme impacto na vida destas pessoas porque depois não querem sair nem socializar, não querem receber telefonemas, nem ver televisão lhes dá ânimo, querem apenas dormir e alhearem-se de tudo o que os rodeia. Caminha-se para um quadro depressivo grave.
Estamos num mês de exames e sendo este mês de janeiro muito exigente é costume chegarem aqui ao Espaço S com queixas de burnout?
Rui Martins: A verdade é que se o curso tem uma exigência muito grande, os alunos também são muito competentes. Raras são as vezes em que recebemos só casos isolados de burnout. Há aqui um perfil de alunos que sempre fez parte dos melhores da escola, da turma, com médios muito boas, isto enquanto estavam no secundário. E quando chegam aqui não conseguem aguentar a pressão. Em paralelo existem outros fatores que não estão a funcionar bem. Há um quadro inicial de um aparente e apenas burnout, mas atrás temos mais elementos que já lá estavam guardadas anteriormente e que não são consequência do burnout. Eu diria que grande parte dos quadros de burnout acabam por se revelar depressivos, com diagnósticos, alguns, já de uma gravidade elevada.
Quais são os alunos mais propícios para estes quadros?
Rui Martins: Nos primeiros anos é mais difícil um aluno entrar em burnout, porque ele ainda está longe de estar a atingir o final do seu processo de estudo e por isso de cansaço. Podemos assumir que os primeiros anos nos trazem mais casos de perturbação de ansiedade, têm muito medo de não serem capazes. Já nos últimos anos, inclusivamente no 5º e 6º anos, aparecem-nos quadros mais depressivos e já com alguma cronicidade, em que as exigências do curso muitas vezes já estão a contribuir para esse estado. Quer os estudantes dos anos mais iniciais, quer dos mais tardios, há aqui um peso de o estudante ser ou não deslocado. Aqueles que vêm de fora têm por um lado um dia mais sobrecarregado, chegam a casa e ainda têm que a arrumar e fazer as suas refeições, depois há uma pressão psicológica acrescida e que é o peso que sentem ser para a família. Sentem que são um estorvo económico para a família, mesmo que esta não lhes tenha colocado qualquer pressão. Muitos deles pensam, "eu não posso falhar porque não posso ficar cá mais 6 meses ou um ano". O facto é que os custos são mesmo elevados, é o custo de uma casa ou quarto, a alimentação e algumas ajudas de custo, sabem por isso as dificuldades que podem causar aos pais. Estes momentos repetem-se quando surge o exame final, ou seja, a Prova Nacional de Seriação. Diante desta última prova questionam, "e se eu não conseguir, o que vou fazer?", este é um peso acrescido sobretudo nos estudantes deslocados.

Como é que se trabalha com alguém que se apresenta com um quadro de burnout?
Rui Martins: Há aqui dois níveis importantes a reter. Um deles é quando os estudantes apresentam um quadro de ansiedade e preocupação, e aí é preciso ajudá-los a entenderem que eles têm as ferramentas que precisam e que, havendo dificuldades, quem chegou aqui é porque é muito capaz. Muitas vezes podemos ajudá-los a perceber que aquilo que têm de resolver não é tanto a questão académica, já que eles costumam ser bons a criar estratégias para estudar, é sim o processo de adaptação deles que nos merece a maior atenção. Esta fase de adaptação leva o seu tempo, porque eles precisam de assentar, de criar a sua própria rede social, não se podendo isolar do mundo e ficar apenas a estudar. Também as rotinas sobre o bem-estar devem fazer parte do dia deles, é importante a vivência desportiva e cultural. Acontece a muitos que, no secundário, saiam várias vezes, tocavam instrumentos musicais, ou eram atletas, alguns de competição, depois chegam à Faculdade e como não conseguem conciliar tudo, esse lado mais lúdico desaparece e faz-lhes muita falta. O segundo nível, em que se observa um quadro psicopatolágico com alguma duração, então já há uma perturbação e nesse caso têm de entrar num processo psicoterapêutico onde se identificam os fatores que contribuíram para a chegada da depressão, mas sobretudo aqueles fatores que a estão a manter. Muitas vezes precisamos de encaminhá-los para outro tipo de acompanhamento, já que aqui no Espaço S não conseguimos fazer uma psicoterapia com o acompanhamento necessário para esses casos, casos alguns que precisam inclusivamente de medicação.
Como é estabelecida a ponte com a equipa do Hospital de Santa Maria?
Rui Martins: Com o HSM existe uma ligação protocolar formalizada, mas os estudantes têm várias hipóteses de acompanhamento e a partir do momento em que aceitam esse acompanhamento é feito um procedimento interno para os indicar para a equipa que os vai seguir. Depois aguardam pela marcação e só depois mantêm o acompanhamento no Hospital. Nós vamos fazendo um follow up. De 3 ou 6 em 6 meses chamamos o estudante e tentamos entender como está a decorrer todo o processo e se os padrões mínimos para seguir o curso estão acautelados. Mas há também outros serviços de apoio, em que facilitamos os contactos e que são fora de Santa Maria.
O follow up é feito com o estudante e não com o médico que o está a seguir?
Rui Martins: Exato. Se bem que no protocolo com o HSM temos salvaguardado esse feedback por parte da própria equipa do Hospital, mas nós fazemos sempre o contacto com o estudante, pelo menos uma vez por semestre.

Enquanto Espaço S há algum feedback à própria Faculdade para que se reajustem eventualmente algumas ações conjuntas com os estudantes? Consegue o Espaço S ser interventivo com a Faculdade tentando ajustar pontos que possam ajudá-los?
Rui Martins: Como sabe o Espaço S está integrado no Gabinete de Apoio ao Estudante. Neste Gabinete há várias atividades, uma delas é a discussão de ideias sobre os temas que nos surgem aqui em conversa. Tentamos entender aquilo que os estudantes nos pedem tecnicamente, mas também aquelas questões que técnicos e mentores que seguem os estudantes observam e pensam ser pertinentes para eles. Dou-lhe um exemplo, no início do ano fizemos uma sessão de esclarecimentos especial para os estudantes deslocados e isto porque percebemos que os primeiros anos tinham muitas pessoas deslocadas e era necessária uma ação quase preventiva para dizer que há dificuldades acrescidas a quem está deslocado. Quem chega de novo está sempre mais isolado e precisa de ir explorando a cidade, os transportes e o que o rodeia, aproveitámos também para falar do Espaço S que tem consultas individuais. Mas é importante dizer que também o Mentoring e as tutorias e que estão dentro do GAE são tudo formas de integração e já com soluções encontradas pelos mais velhos.
Os próprios mentores podem vir alertar para algum caso mais preocupante e que sozinho não vem pedir ajuda?
Rui Martins: Já aconteceu essa situação. Recebemos um aluno que vinha acompanhado por colegas mais velhos. Os mentores estabelecem laços na vida dos alunos de forma mais constante e podem apoiar muito neste início de vida aqui. Há também elementos da parte administrativa da Faculdade, que interagem muito com os alunos e podem ser bons observadores. Os próprios professores podem também ser elementos referenciadores, como já o foram. Há situações de alunos isolados na aula que começam a chorar, nestes casos é preciso avaliar se aquele estado de espírito já se arrasta, ou se é pontual. Mas temos mais atividades pensadas e que passa por dar algumas ferramentas a um conjunto de pessoas que estão próximas dos alunos para que sejam mais sensíveis aos comportamentos destes, servindo como referenciadores. Na minha ausência enquanto Espaço S ou da Rita Sobral enquanto GAE, estes são os elementos de ligação que vão intervir se for necessário. Podem ou telefonar-me, ou em casos graves levar alguém de imediato às urgências.

Para Rui Martins observar no 1º ou 2º anos estudantes com traços de aparente receio pela pressão académica é muito importante para que não degenere numa depressão mais profunda. Quanto mais inicial for identificado um problema, menor será o tempo de ação e tratamento. E se todos temos estados depressivos, como ambos explicam, então há que falar desses estados e criar dinâmicas de comunicação que permitam a autoreflexão e a análise vista de fora.
O Espaço S funciona no Instituto de Medicina Preventiva (ao lado do Edifício Egas Moniz), gabinete 71, com o seguinte horário:
3.ª | 4ª – 8h30 às 11h30 // 5.ª – 15h às 19h
Para marcar lugar para uma avaliação no Espaço S basta enviar um e-mail espacos@medicina.ulisboa.pt com os seguintes dados: Nome Completo, Data de Nascimento, Curso e Ano de Frequência, Telefone de contacto. A este e-mail apenas terá acesso o Psicólogo que efetua a avaliação inicial, sendo completamente sigiloso e interdito a qualquer outra pessoa externa ao Grupo de Trabalho.
Joana Sousa
Equipa Editorial
