A infertilidade é fácil de diagnosticar, uma vez que, se ao fim de um ano a mulher não engravidar, tendo uma atividade sexual regular e sem contraceção, essa é a conclusão.
Quem o explica é Carlos Calhaz Jorge, Professor Catedrático da Faculdade de Medicina, Diretor do Departamento de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina da Reprodução assim como, do Centro de Procriação Medicamente Assistida do Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHULN). O Departamento é constituído por dois serviços, de Obstetrícia (diretor: Prof. Diogo Ayres de Campos) e de Ginecologia, que o Professor também dirige. Este Serviço, além da Unidade de Medicina da Reprodução, tem cinco sectores: Uroginecologia (única unidade desta área no SNS a sul), Mastologia (que faz cerca de metade das intervenções de casos de cancro da mama no Hospital), Ginecologia Cirúrgica em geral, Ginecologia Oncológica e Ginecologia Médica (com a maior área de ambulatório).
No total, o Departamento conta com 32 especialistas e cerca de 11 internos fixos.
Só na área da Reprodução, o Serviço recebe por ano, perto de 700 casais pela primeira vez. Entre os que acabam de chegar, e com os quais se geram novas consultas, e os que já estão a ser tratados, podemos afirmar que há mais 8 mil consultas (anuais) de casais que querem ter um filho e não o conseguem naturalmente. É, nessa altura, que se dirigem ao CHULN, onde os seus caminhos se cruzam com os do Professor, que pisa o Hospital de Santa Maria há 44 anos e há 32, como especialista em doenças de infertilidade.
Calhaz Jorge sempre pensou seguir Endocrinologia, pois era fascinado pelos mecanismos complexos e interativos do organismo. Mas depois decidiu que a área da infertilidade era ainda mais atraente e ampla, além de ter enorme componente de endocrinologia. Estava a terminar a especialidade, quando surgiu a fertilização in vitro em Portugal; isso permitiu-lhe "viver a história desde o seu princípio", como diz. Olhando para a Reprodução com especial interesse, apanhar esta nova flexa de inovação de ciência, não só sobre a Reprodução mas também da Genética, fez com que se dedicasse em pleno a esta área da Medicina. Carlos Calhaz Jorge fez assim parte do grupo que iniciou os tratamentos com essa técnica usando o laboratório de Reprodução instalado, com apoio financeiro da Fundação Gulbenkian, no Hospital de Santa Maria.
Membro consultor de comités científicos em diversos anos será, em 2021-2023, o Chair da Sociedade Europeia de Reprodução Humana e Embriologia (ESHRE), desempenhando atualmente o cargo de Chair-Elect.
Como não conhecer os bastidores do seu Serviço, numa entrevista que permite a visita guiada à realidade, que continua ainda a ser pouco divulgada?
Discreto que baste, para não gostar de marketing a seu respeito, ou do papel que tem desempenhado, é rigorosamente metódico em tudo o que faz, a pontualidade não lhe é exceção. Assim, como rigorosamente convicto de princípios, não sabe enfeitar dados ou ficcionar a realidade, no entanto, na sua missão não lhe cabe virar costas à adversidade.
Procuro o Professor num mês em que se organiza um Colóquio do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), do qual é membro desde o seu início. Falamos sobre os problemas de quem quer ter filhos e não consegue, da dor emocional de quem tenta realizar um grande sonho e das preocupações que o fazem relembrar que a Unidade de Medicina da Reprodução do CHULN recebe pessoas de quase todo o país e não só. De facto, com o fim das áreas de influência de cada hospital, o acesso é geograficamente livre. Se acrescentarmos a este quadro, um escasso investimento na Saúde e a falta de meios técnicos e humanos para colmatar tanta procura, então isso, traduz-se em listas de espera longas, para os tratamentos sofisticados de infertilidade. A boa notícia é que, para já, os tratamentos menos complexos ainda não têm tempo de espera. Perante esta fórmula, onde se encontram tantos desajustes, percebemos na perfeição que, quase tudo se torna complicado.
Quem é o público que mais o procura?
Calhaz Jorge: Fazendo nós parte do Serviço Nacional de Saúde, recebemos aqui todas as pessoas. As que nos chegam de Países de Expressão Portuguesa, outras com dificuldades imensas e que nem conseguem completar o tratamento pelos custos muito elevados da medicação, até aquelas de uma classe mais elevada e que decide usufruir do mesmo direito de todas as outras. E, toda esta procura, significa que há um problema, que é a dimensão da lista de espera.
Estamos a falar de quanto tempo de espera?
Calhaz Jorge: Entre 15 a 18 meses para os tratamentos mais sofisticados. Porque a infertilidade, não é sinónimo de precisarmos de fertilização in vitro, ou microinjeção em todas as situações. Cerca de 30% a 40% são casos cuja resolução é possível, através de meios médicos, sem precisar de laboratório complexo, ou através de cirurgia, ou mesmo alguns casais com problemas de infertilidade, cuja causa nunca se conhece acabam por resolver o problema espontaneamente. Mas, quando os tratamentos são os mais sofisticados, incluem muita medicação onerosa, o que leva a que alguns casais, só se tiverem apoio social é que conseguem ter acesso a eles. Por isso, com as listas de espera existentes, quem tem mais recursos, acaba por vezes, por ir fazer os tratamentos para o setor privado.
Conseguimos ter uma ideia real do custo de um destes tratamentos mais sofisticados?
Calhaz Jorge: A fração dos fármacos é igual em regime público e em regime privado, ronda os €500 / €600, apesar da comparticipação em 69%. Os 31% restantes já atingem esses valores. Depois, as técnicas em si variam dependendo da sua complexidade. Há ainda subtécnicas adicionais, mas a fertilização in vitro tem um custo aproximado dos €4 mil euros e a microinjeção dos €5500. A este custo acrescem os fármacos.
Tratamentos que podem muito bem não ter resultados positivos logo à primeira vez.
Calhaz Jorge: Por vezes nem à terceira... A probabilidade global é de cerca de 30%, dependendo da idade das senhoras. Se a idade é menor, aproxima-se mais dos 35% / 40% de sucesso, se é mais tardia (mas antes dos 40 anos), fica entre os 25% / 30%. Depois, há que ter em conta as restrições do SNS, em que os tratamentos mais sofisticados só são possíveis antes das senhoras completarem 40 anos, até ao dia antes do seu 40º aniversário.
Um dos temas que tentámos entender este mês é a questão da dor. Podemos falar de dor nos seus dois sentidos, a física e a emocional, quando falamos destes tratamentos?
Calhaz Jorge: Se falar de dor, é na realidade sobre a angústia existencial. Agora, claro que a infertilidade é um contributo major para isso. Mas dor física... Há doenças que provocam infertilidade e se associam a dor, mas diria que é uma subpopulação, da área essencialmente da endometriose (quando as células que constituem camadas no útero estão fora da sua localização normal), situação que se manifesta muitas vezes por dores pélvicas. Fora isso, fisicamente não é habitual que a pessoa sofra incómodos significativos.
Dos relatos que assisti das mulheres que passaram por tratamentos de infertilidade, a dada altura, algumas dizem desistir porque não aguentam o próprio tratamento físico. Ele também é gerador de dor?
Calhaz Jorge: Nesses casos, penso que essa desistência é resultado sobretudo do cansaço, da frustração.
Mesmo as que falam no processo do tratamento e que se torna duro de suportar?
Calhaz Jorge: Aí, o que estamos a falar, são dos tratamentos onde as mulheres têm de fazer todos os dias injeções na barriga, durante um período de tempo. Claro, há uma agulha que é introduzida na pele, mas isso causa a mesma dor que a um diabético que tem de fazer todos os dias injeções com insulina. É evidente, que são incómodos, mas diria que se está a viver pela negativa, o momento que se está a atravessar. Colocaria essa dor na área psicológica. Não sendo agradável, as injeções, que são subcutâneas, tal como nos diabéticos a insulina, fazem-se com agulhas mínimas e com sistemas sofisticados e o incómodo habitualmente dura no total duas a três semanas, depois acaba. Se falarmos de dor mental, ela muda muito de pessoa para pessoa. Pode chegar quase à obsessão. Pode também ser causada pela simples diferença de empenho entre os elementos do casal. Sabe que, há casais, que chegam ao fim do tratamento e quando a mulher engravida, separam-se? Há ainda questões culturais de mulheres de algumas etnias que, se não engravidarem, são repudiadas pela comunidade, mesmo que a causa seja masculina. Aliás, muitas vezes a questão que os casais levantam é de quem é a culpa, como forma de espiar a própria dor.
Mas de base, todas as pessoas que têm infertilidade sentem uma incapacidade própria e claro, que isso traz um sofrimento grande.
Tem atualmente casos de mulheres que procuram ser mães sozinhas?
Calhaz Jorge: Desde há 3 anos que a legislação mudou. Como tal, há acesso legal a mulheres sem parceiro ou parceira, e a mulheres casadas com mulheres; todas têm direito a ter acesso a estas técnicas. E aí, precisam de dador de esperma. Nestes casos, e no SNS, isso é extremamente complicado, porque não há dadores, questão que se agravou, principalmente, desde há um ano, quando cessou o anonimato dos dadores. Já as dadoras femininas, neste caso de óvulos, têm manifestado um nível mais elevado de resposta. Atualmente, posso dizer-lhe, que tenho uns 12 casais à espera de esperma, mas o banco público não está a conseguir dar resposta. Há que dizer que, como estas inseminações não têm os custos elevados que lhe referi há pouco, algumas candidatas conseguem recorrer ao regime privado e aí podem importar esperma do estrangeiro.
Quando é que se toma a decisão de "com este casal não podemos tentar mais"?
Calhaz Jorge: Temos três critérios, o etário, o que diz que só se podem fazer três tratamentos por casal, e finalmente aplicado só com muita ponderação e não tão frequente, o critério clínico quando se constata que os ovários não respondem ao tratamento, ou que os óvulos não têm qualidade compatível. Mas note que, estas últimas situações são muito raras.
Perante um cenário de uma procura vastíssima onde todas as pessoas vêm cá, com um investimento até 2019 de 4% na Saúde e que é depois diluído por várias áreas deste vasto Hospital, como é que continua a gerir um Serviço destes?
Calhaz Jorge: Há três formas de lidar com o assunto. Uma, é encolher os ombros e deixar andar, algo que não é compatível comigo. Outra, é dizer adeus e sair, porque há mais do que condições para isso, o que também não faz parte da minha personalidade. Portanto, a última, é tentar resistir ativamente embora com a noção que as perspetivas de melhoria, estão ausentes no horizonte. Há mais de 10 anos, que temos plantas e planos de ampliação do laboratório, para as técnicas mais sofisticadas, a nossa grande limitação. Mas nunca houve dinheiro para as obras, nem para equipamento necessário, nem para a contratação de mais pessoas. Estamos inclusivamente a assistir à falta de reposição de clínicos que saem e não são substituídos. Há anos que estamos no limite máximo das nossas capacidades de resposta, em consequência dos esforços feitos para maximizar os procedimentos o mais que pudemos. Agora, vamos ter que diminuir essa capacidade com a saída de uma especialista.
O que é que está a acontecer na Saúde?
Calhaz Jorge: Eu não sei. Sou um realista e sei que a área da Reprodução é muito importante para as pessoas que precisam dela, mas numa visão social alargada é evidente que o cancro, ou os transplantes são mais visíveis e recebem os maiores investimentos. Na verdade, esta área consome pouco dinheiro, porque a fração da população é relativamente pequena. Embora sejam técnicas onerosas são, comparativamente, ainda assim, muito menos dispendiosas que outras. E é preciso ter em conta, que os nossos casais são dos que pretendem ter filhos e não dos que, por opções legítimas de vida, decidiram não os ter. Não sendo a resolução, nós somos um contributo para a atenuação da baixa natalidade.
Professor, o Colóquio que se realizou no passado dia 22 deste mês e que tinha como tema "As perspetivas técnicas, éticas, sociais e legais da procriação medicamente assistida" ajuda a passar alguma mensagem para o exterior? Porque não foi um encontro só de pares.
Calhaz Jorge: Não era de facto um encontro médico. E foi extremamente profícuo abordando aspetos técnicos, mas não médicos, e temas sociais e éticos, além da dimensão política. Oradores nacionais e internacionais possibilitaram uma visão muito alargada sobre a PMA e a discussão foi muito viva. Este já é o III colóquio que organizamos e, como os anteriores, teve a participação de representantes dos partidos políticos. O problema é que os políticos que habitualmente participam já estão envolvidos na área, conhecem os problemas e dizem aquilo que ouvimos, enquanto entidade reguladora, quando vamos à Comissão de Saúde da AR. Apesar de uma participação relativamente reduzida (um pouco menos de 100 inscritos) estes colóquios são sempre muito interessantes e constituem uma forma de o CNPMA mostrar a sua dinâmica a não especialistas, porque o trabalho de bastidores é imenso, e, se dentro do meio todos sabem como funcionamos, para fora esse conhecimento não é claro ou não existe. Este ano, a presença da senhora Ministra da Saúde na Sessão de encerramento constituiu uma manifestação especialmente importante da valorização da área da PMA por parte do Ministério da Saúde.
Que mensagens querem então passar ao público em geral?
Calhaz Jorge: Que há uma entidade reguladora de uma área que é complexa e está sob diretivas europeias muito estritas – o CNPMA. A infertilidade é um campo maior do que parece. Por exemplo, a Sociedade Europeia de Medicina de Reprodução, a maior Sociedade do mundo nesta área, organiza uma reunião anual, que tem cerca de 12 mil participantes. Não são todos médicos, porque envolve também a investigação e as ciências básicas e aplicadas, mas é verdadeiramente grande. Ainda assim, a infertilidade tende muitas vezes a ser considerada pouco relevante e até quase um luxo, o que é lamentável.
Professor apesar de tudo o que falámos, nenhum dos fatores negativos o tem demovido a continuar no público.
Calhaz Jorge: Não, não me demovo. E não o faço por ter um espírito autodestrutivo. Nada disso (Sorri). Sempre me dediquei a tratar de pessoas e é isso que continuarei a fazer. Continuo a achar que, o SNS é uma das melhores coisas que o país tem, mas mal-usado e mal estruturado. Eu continuarei a dar o meu contributo. Atualmente, não tenho expetativas de melhoria, mas tenho a intenção de tentar contribuir para que não haja maior deterioração. Quero, no entanto, dizer-lhe, que este quadro geral que traço, não se refere especificamente à nossa casa, é o espelho do SNS e dentro dessa realidade, nós ainda somos dos que melhor vamos conseguindo corresponder às necessidades das populações.
Muitas são as mulheres de outras nacionalidades que chegam a Portugal, e mesmo tendo vindo raras vezes ao país, muitas têm um número de utente. Como tal os custos da sua saúde são, quase suportados na totalidade, pelo SNS. Só no último ano, todo o Departamento de Obstetrícia e Ginecologia perdeu 3 especialistas experientes, cuja reposição não foi feita. No próximo ano, sairão mais três clínicos, por reforma. Dos mais jovens, quem sai procura maior estabilidade financeira, bem como, a expectativa de poder tratar mais adequadamente doentes, porque têm todos os meios para tal. O Hospital, abriu concursos para médicos recém-especialistas, mas sendo preciso sangue novo é também indispensável que se mantenham os padrões da experiência. Apesar de todo o cenário, o Professor Calhaz Jorge reitera que a qualidade, essa, não diminuiu, mas avisa também, que as listas de espera tendem a aumentar ainda mais. Por acréscimo, fatores externos à sua vontade, motivam a preocupação geral, o baixo índice de natalidade permite, perspetivar que, em 2030, Portugal será o país mais envelhecido do mundo. E, apesar de ser uma percentagem baixa, a verdade é que, os tratamentos de Reprodução são uma ajuda à natalidade, com um contributo de cerca de 3%. “Ajudar uma mulher, em tempo útil, será muito diferente de a colocar em espera durante um ano e meio”, insiste. Após essa espera e contando com a possibilidade de não ser bem-sucedida no primeiro tratamento, é possível que, se vá aproximando de uma idade limite, que já não lhe permita grande margem de manobra para novo tratamento.
O Professor sabe que, apesar de não resolver todos os motivos do baixo índice de natalidade, se ajudasse todos os que procuram a Unidade, que dirige, em tempo devido e eficaz, essa taxa aumentaria, sendo um benefício claro para os ansiosos pretendentes a pais, mas também para o país.
Joana Sousa
Equipa Editorial