Quem me deu a oportunidade de conhecer o Mickael foi o José Rodrigues, Presidente da Associação de Estudantes. Procurávamos as pessoas certas para gravar um vídeo e o Mickael surgiu com o perfil adequado. Aluno do 6º ano de Medicina, um pouco mais velho do que o comum dos alunos, nasceu em Yerevan, na Arménia. Era um exemplo perfeito para mostrar a importância da diversidade e que é nessa diferença que nasce a riqueza.
E assim foi, o Mickael passou quase um dia inteiro connosco a gravar e a repetir takes. Sempre composto, sempre disposto a refazer, a recomeçar, sempre disponível.
Making of do vídeo institucional “Escolhas”
Propus encontrarmo-nos durante o verão para falarmos do seu trajeto até aqui e claro que descobri infindáveis pormenores curiosos que explicam a sua vinda definitiva para Portugal. A sua vinda para a Faculdade de Medicina.
O pai, Varoujan Bartikian, respeitado músico violoncelista, recebeu em 1989 um convite da Fundação Calouste Gulbenkian para ser um dos elementos permanentes da orquestra.
Hesitou muito em mudar-se para Portugal e demorou a decidi-lo. A Arménia cultural era uma sociedade diferente, fazendo ainda parte da antiga União Soviética. Ser músico era pertencer à categoria dos que tinham elevado prestígio e estatuto. No dia 9 de novembro de 1989, o pai apanhava o avião rumo a Portugal. Na mesma altura caía o muro de Berlim, o que viria a originar mudanças culturais e geoestratégicas, como peças de um dominó todas a mexer em série. Pode dizer-se que a escolha do pai foi boa porque hoje em dia é primeiro violoncelo na orquestra, o mesmo que dizer que é o violoncelista principal do naipe.
Mickael nascia em 1988 e ainda hoje parece ser um misto das gerações que o antecederam.
A mãe é violinista e toca no Teatro de São Carlos. Com um tio pintor, a geração acima dos seus pais tinha o dom da joalharia e a técnica da engenharia.
Não é de estranhar que a música lhe faça parte do património genético. Mickael toca violoncelo. Apurou o jeito da mão no Conservatório D. Dinis em Odivelas, o instinto natural esse já lhe corria no sangue desde nascença.
Por ter uma aptidão natural os pais sempre esperaram que Mickael fosse músico. E ele é, não é por acaso que tocou já por duas vezes na Gulbenkian, a última a 20 de setembro na World Doctors Orchestra.
Mas não é só violoncelista, ou não o é, principalmente.
Sabe exatamente o que gosta mais na vida: música, carros e imaginar-se num bloco operatório. Adora a mecânica e a velocidade e neto de joalheiro que é, imaginar-se no bloco operatório já faz parte da equação, é como se fosse esculpir a pedra valiosa que não se pode partir.
Apesar de ter chegado a Portugal apenas com pouco mais de 2 anos, visitou muitas vezes a sua terra natal, para que a Arménia nunca lhe fosse casa desconhecida, era lá que mantinha a sua estrutura familiar.
Estudou no Liceu Francês e logo decidiu partir para Toulouse para aprender mais sobre Engenharia mecânica. Completou o primeiro ano, mas com a mesma prontidão que o acabava, concluía também que se ia “aborrecer rapidamente” de fazer sempre o mesmo. Afinal o sonhador que se projetava a construir aviões diz que foi no contacto próximo com uma médica que lhe fez o clique que “a Medicina podia ser algo fascinante”. Nascia assim na sua vontade um novo desafio, “resolver problemas, mas com pessoas”.
Por essa travessia de afirmação de vontade e personalidade Mickael foi experimentando diversas paixões, a fotografia, foi atleta de tiro e chegou a ser produtor de espetáculos musicais.
Fala devagar como se dentro do seu cérebro, que tanto gosta de estudar, conseguisse recuar no tempo como uma viagem que faz a outro lugar, na verdade ao seu lugar interior.
Regressou a Portugal e voltou ao ponto zero, submetendo-se a novas provas. Pensou que queria fazer investigação e entrou em Ciências da Saúde na Universidade de Lisboa. É depois de se formar que decide continuar caminho e é nesse preciso momento que se cruza com a Faculdade de Medicina de Lisboa onde entra para fazer um mestrado em Neurociências.
Só aí percebe que continuava a sentir-se limitado, incompleto, porque o caminho lhe apontava a investigação básica e não era essa que queria fazer. Percebeu que precisava do impacto do mundo clínico e queria entrar num mundo mais translacional e não ter a graduação de médico não lhe facilitaria a vida para fazer investigação clínica.
Foi numa conversa informal com o antigo Diretor da Faculdade, o Professor Fernandes e Fernandes, que este lhe disse: “Porque não concorres?”. E o Mickael, que nunca tinha pensado nisso, concorreu como licenciado. Cumpriu os anos todos e lançou-se em desafios novos. Hoje diz que quer seguir cirurgia vascular. É sempre a mestria com que se usam as mãos que é transversal a Mickael, quer quando toca violoncelo, ou quando se imagina a aplicar meticulosamente cada gesto para tratar um doente. Esta sua paixão pelo cérebro humano e o que o alimenta é a causa de quase todo o seu tempo e empenho.
Estamos no período de férias e não há quase ninguém na Faculdade, mas o Mickael está hoje e amanhã e na semana que virá. Não vai tirar férias. Recebe-me no Teatro Anatómico e apresenta-me à sua paixão.
Diante dele um computador que mostra tridimensionalmente um cérebro. Ao lado uma impressora a 3D. O que Mickael faz não é nada simples, mas pode vir a solucionar muitos casos em que até aqui se executariam sem treino prévio. Numa sala separada está outra impressora e diversos crânios ou parte deles. “Podes segurar são de plástico”, diz-me orgulhoso das suas imensas impressões que já lhe fizeram ganhar inúmeros Prémios e bolsas, no GAPIC, ou o 1º prémio de investigação no AIMS Meeting, como também no YES Meeting.
Maquete criada por Mickael de um tumor no cérebro
Recriando situações de obstrução de vasos sanguíneos no cérebro, ou problemas ósseos do crânio, aquilo que Mickael trabalha desde o 1º ano do curso é dar às equipas médicas a possibilidade de ensaiar em modelos de plástico, que possam vir a ser futuros padrões de doenças.
Não é por acaso que Anatomia foi a sua cadeira ideal, porque justifica ter aprendido assim a ver o corpo de forma tridimensional, aprendendo a ser visionário e a olhar além do que nos aparece diante dos olhos.
Onde é que tu te encontras no meio destas culturas entre um Arménio de uma ex-URSS e um Português que tem bases latinas?
Mickael: Nunca pensei muito na minha identidade como se fosse um cidadão do mundo. Não gosto muito dessa ideia porque parece que não temos casa. E eu sinto-me em casa, mais aqui do que lá. Mas sou diferente da maioria dos portugueses e muito mais diferente da maioria dos arménios.
Mas se pensarmos bem, penso que temos mais em comum do que pontos que nos afastem. Ambos são muito hospitaleiros, têm uma boa gastronomia, têm uma cultura predominantemente cristã. Diria que a grande diferença entre povos é que um tem marcas de uma disciplina muito soviética e aqui, se combinarmos um compromisso às 19h, as pessoas aparecem sempre atrasadas.
Olhando para o caminho que já percorreste é engraçado avaliar que tu nunca tens medo de voltar à estaca zero. Começar tudo de novo nunca te desmoraliza?
Mickael: Eu não gosto de estar parado e não tenho medo de começar do zero. Sinto que tenho as ferramentas para isso e ao longo do tempo fui criando segurança pessoal. Eu costumo dizer que, se me tirarem tudo e me enviarem para uma ilha deserta, eu crio a minha pequena civilização lá. (Pára e hesita) Só me custou da primeira vez, aí custou. Mudar de Engenharia para Ciências implicou muitas mudanças, inclusive a de país. Foi bom regressar a Portugal, porque é o meu lugar e o povo francês é muito menos empático. Mas obrigou-me a recentrar-me, mudou-me. Muito.
É difícil para ti fazer escolhas?
Mickael: Talvez… Um dos meus defeitos é não conseguir dizer não a nada. Quero fazer muita coisa ao mesmo tempo.
Será que aos 31 anos já tens medo que alguma coisa da vida te escape pelas mãos?
Mickael: (Longo silêncio) Não… Nunca tive medo da finitude. Sempre vivi ao máximo e digo muitas vezes que prefiro trocar uns noventas ou oitentas por uns bons trintas. E aprendi que não vale a pena fazer planos a longo prazo. Aprendi isso da maneira mais difícil.
Como, podes-me explicar?
Mickael: O meu plano a longo prazo era ser Engenheiro e trabalhar para a Airbus e isso não correu nada como planeei. E aí foi uma desilusão que me fez reequacionar uma quantidade de coisas. Era muito diferente do que sou hoje. Tive que voltar a colocar os meus tijolos do início e mudar um bocadinho a arquitetura da minha “casa”.
Para alguém cuja precisão das mãos é essencial, como é que se lida com o nervosismo? As mãos nunca te tremem mesmo quando tocas?
Mickael: Fico nervoso um pouco antes de tocar em público, as mãos ficam-me a suar. Depois começo e é a coisa mais natural. E adoro aquela sensação de borboletas no estômago antes de entrar em palco. E se eu não sentir isso é porque não vai ser um bom concerto, quase não vale a pena.
Sei que foste convidado pela World Doctors Orchestra para te juntares neste dia 20 de setembro que passou na Gulbenkian e no dia 21 na Casa da Música no Porto. Não é um desafio qualquer…
Mickael: Esta é uma orquestra mundial que organiza concertos em vários países e desta vez em setembro foi em Portugal. Mas quem me convidou foi o meu colega Sebastião (Martins) que também já tocou nessa orquestra, na altura ele esteve em Paris. É a segunda vez que toco na Gulbenkian. A primeira vez que toquei naquele palco fantástico celebravam os 50 anos da Orquestra Gulbenkian.
Como é que vais parar à Gulbenkian?
Mickael: A Gulbenkian queria pôr os músicos da sua orquestra a tocar com os filhos ou outros familiares. E eu fui com o meu pai. Toquei na mesma estante que ele.
Isso intimida, tocar perto do pai que é o primeiro do naipe?
Mickael: Um bocadinho. Sim! Também era a Joana Carneiro a dirigir! Atendendo a que só sei tocar uns 10% do que o meu pai toca. (ri) Mas foi uma experiência muito divertida.
Enquanto filmávamos o vídeo institucional e te fui observando achei-te muito rígido contigo. És assim mesmo?
Mickael: Sou perfecionista e cuidadoso. Rígido limitar-me-ia alguma imaginação que eu tenho.
És sonhador?
Mickael: Sim… (Ri) Talvez passe demasiado tempo a olhar pela janela para o infinito a pensar em muitas coisas. E acho que as pessoas deviam fazer isso mais vezes, parar e pensar. Claro que tenho desilusões, mas “move on”.
Disseste-me que para ti tirar uma semana de férias, para ir para uma praia descansar é um desperdício de tempo. A sério?
Mickael: Uma semana sim! Basta um dia, dois. Mas é só para conseguir ler um livro. Agora uma semana sem ter nada para fazer, ou fazer sempre a mesma coisa é-me impossível.
Como aluno de 6º que inicia uma fase de estudos mais feroz, fala-se muito do burnout. Como é que lidas com a pressão dos resultados?
Mickael: (faz silêncio) Com música! E por isso não deixarei de tocar e vou manter-me ligado à Orquestra Médica de Lisboa e à Orquestra Académica da Universidade de Lisboa. E quando os ensaios não forem à mesma hora eu vou a ambos.
No making of enquanto lia Juramento de Hipócrates
Neste 6º ano esperam-lhe longas horas de estudo, é o seu foco principal para poder estar pronto para a Prova final de seriação em novembro de 2020. Isso também explica que tenha passado todo o verão no Teatro Anatómico a fazer testes e mais testes numa das suas impressoras 3D pessoais para ver se deixa todas as suas maquetas completas e prontas para estudo. Muito em breve estará a estagiar no Hospital Beatriz Ângelo e não nega que lá, no contacto direto com o doente e outras áreas clínicas poderá vir a mudar de opinião daquilo que quer mesmo seguir, a cirurgia vascular.
Maquete criado por Mickael de um crânio para recriar cirurgia a um bebé
O Mickael é contornado a uma calma quase misteriosa e foi o treino de tiro que o disciplinou, domando os impulsos mais primários que todos temos mais ou menos evidenciados. Foco e mais foco e disciplina são as características de um homem que sabe tão bem o que quer, que nunca teve medo dos rótulos de continuar nessa busca, até ter a certeza do que o completa totalmente. De quem ele é.
Joana Sousa
Equipa Editorial