Chama-se Estela Flambó. Aluna a chegar agora ao 3º ano de Medicina, apresenta-se de forma tímida e reservada, algo aparentemente contraditório no primeiro contacto, já que quando está diante de uma grande plateia tanto pode ser a melhor comunicadora, como uma marcante bailarina.
De voz doce e delicada, tem no entanto mensagens claras do que quer e para onde vai, há nela um instinto de liderança que assume por vontade própria desde os tempos de menina. Durante toda a sua vida escolar e até ao 12º ano habituou-se a ser delegada de turma por eleição, sempre gostou de ser a intermediária entre alunos e Professores.
Na Estela esta dualidade de personalidade, que na verdade é um inteligente equilíbrio de forças, pode ter, porventura, razão na origem do apelido Flambó, cuja História conta que provém dos franceses aquando do Condado Portucalense. Lutadora e líder, não desiste de perseguir o caminho em que acredita. Mas não é seguramente coincidência que tenha um pai, Tenente-Coronel de Artilharia, das Forças Armadas, rígido o suficiente para lhe explicar bem as regras da vida. Desde que a filha assumisse a responsabilidade, podia ser e fazer tudo o que quisesse. A mãe, Professora de Matemática, não mudou o azimute da lógica, nem das prioridades na vida, mas talvez tenha acrescentado parte da sua doçura que também tem. Sempre boa estudante, Estela chegou a fazer natação de competição, ao mesmo tempo ia aprendendo a dançar e afinando o sotaque para ter um inglês perfeito. O segredo, desde pequena, estava na gestão do tempo, acreditando sempre que conseguia chegar a cada desafio, cada vez mais exigente.
Filha única diz que foi sempre habituada a ser tão pragmática, quanto responsável e se, “é para fazer, é mesmo para fazer”. É por isso que se entende que, mal tenha chegado a Medicina, decidisse que também era o momento de “se chegar à frente” com a responsabilidade.
“Ajudar acima de tudo”, é o que me responde quando lhe pergunto o que verdadeiramente a moveu para chegar a esta opção de vida. Imagina-se a ser médica e a integrar um grupo como os “Médicos sem Fronteiras”. A esse espírito de preocupação com o outro, refere “um fascínio por isto, que é o nosso corpo humano”.
Estava no 9º ano quando conheceu uma professora que lhe mudou por completo a perspetiva da vida e o interesse para olhar para dentro do corpo. Sabe, contudo, que não será “rapariga de laboratório”, porque precisa do contacto com o outro, com o doente.
Chegada à Faculdade de Medicina, escolha que não hesitou ter, entrou com a perspetiva que não queria apenas estudar. Foi enquanto se informava sobre a melhor faculdade a escolher que começou a espreitar os sites da AEFML e das Comissões de Curso. Percebeu que essa seria uma boa forma de começar a ser interventiva no seu novo lugar de ação. Na primeira semana de introdução às aulas, conheceu a Comissão de Curso do 2º ano que os recebeu. Estela voluntariou-se para entrar para a Comissão que viria a representar o 1º ano. Na verdade, é da Comissão de curso desde que entrou e por lá se vai mantendo. Mas como não deixa de ter sempre curiosidade por mais, e a representação do outro é sempre a sua escala de preocupação, agora integra também o grupo dos Discentes do Conselho Pedagógico.
Não bastando todas as ambivalências que já acumula, acaba ainda de ser a escolhida para ficar como a bolseira coordenadora do Projeto Mentoring, algo que funciona como forma de apoio e integração dos novos alunos que chegam à Faculdade.
Mas quem é esta aluna que não tem medo de seguir na linha da frente do batalhão e, no entanto, se reveste de uma delicadeza que se pode confundir com fragilidade?
Estela, porquê esta Faculdade?
Estela: Primeiro pelo plano de estudos que apresentava e depois pelas ofertas da Associação de Estudantes. A primeira atividade que me chamou logo a atenção foi o banco de voluntariado, que ainda nem o fiz, mas permitiu-me perceber que há muito para se fazer. Eu procurei outras opções, mas foi aqui que percebi que havia mais variedade.
O que é uma Comissão de curso e para que serve?
Estela: Eu digo sempre o mesmo, “é ser o delegado de uma turma, mas para 400 alunos”. É representar 400 alunos e ajudá-los, no bocadinho do tempo livre que nós temos. Se no 1º ano nos voluntariamos para pertencer à Comissão de curso, a partir daí é sempre por lista e por votos. Neste 2º ano que agora terminou fui a coordenadora, agora passo a pasta ao Miguel e fico apenas comissária de curso.
Quais são as características que uma pessoa deve ter para representar o seu ano?
Estela: Tentar ser o mais correto possível, o mais objetivo, porque às vezes temos de assumir o papel de quem faz o ponto de equilíbrio. Ou seja, alguns alunos procuram-nos com queixas e temos de saber ouvir para transmitir aos regentes, mas é também importante avaliar e assumir quando discordamos, e dizê-lo com alguma calma. E tem de haver uma grande sensibilidade para fazer chegar aquilo que os alunos acham que está menos bem, ao regente da cadeira.
É preciso muita diplomacia?
Estela: É. Muita.
Criam-se anticorpos com os próprios colegas de ano quando lhes dizemos “não” a algumas questões das quais se queixam?
Estela: Não, porque eles sabem que estamos ali para ajudar. No fim, consegue-se quase sempre a solução, sem recorrer ao conflito.
Quantos elementos representam a Comissão de curso?
Estela: Depende dos anos. O meu ano teve uma grande representatividade. Fomos 23 elementos. Este ano reduziu e passámos a 20.
E qual é o vosso papel no dia-a-dia?
Estela: Somos intermediários de vontades e tentamos conciliar as ideias de uns, com a dos outros. Ou seja, os regentes têm uma certa ideia e nós vamos tentar conciliar a ideia, que já era dos alunos, com a deles (regentes). Tentar fazer com que as coisas aconteçam. Todos os dias os alunos nos mandam emails e todos os dias respondemos. Depois falamos com os Institutos e tentamos encontrar soluções.
Deixe-me recuar ao 1º ano de alguém que constitui a Comissão que representa o seu ano. Para quem acaba de chegar a uma Instituição onde existe um formalismo que contínua a ser muito hierarquizado, como é que se comunicam reclamações e sugestões a regentes? E como é que eles recebem esta comunicação?
Estela: Normalmente, e ao princípio, sentimo-nos um bocadinho diminuídos… Porque demora a obter a credibilidade que queremos ter desde o começo. Somos do 1º ano, acabados de chegar, não fazemos ideia como é que o sistema funciona e vamos sentar-nos à mesa com um regente, cujo nosso lugar na mesa nem sabemos qual é. (Hesita) Só o gesto de sentar no lugar certo, é, por vezes, um problema… Ao início entramos e esperamos que eles se sentem para perceber para onde ir. É complicado. Mas vai-se construindo. Desde que mantenhamos a nossa postura…
Qual é a postura que se deve manter?
Estela: Cordial. Acima de tudo. Respeitar. Se queremos colocar uma opinião contrária, há que saber quando a colocar. Ter muita diplomacia e não começar a criticar. Não pode ser através da crítica que queremos mostrar trabalho, mas através da vontade, mostrar que queremos desenvolver projetos, ideias.
O mais difícil foi então o 1º ano, depois atenuou?
Estela: Sim, até diria que foi o 1º semestre. A partir daí, já temos outra sensibilidade e ao falarmos com a Comissão de curso do ano a seguir conseguimos perceber as melhores abordagens, consoante o regente de cada cadeira. Ajuda muito! Trocar impressões entre os anos acelera muito mais o processo. Uma relação bem conseguida é meio caminho andado para as coisas funcionarem e isso sente-se e reflete-se. Prova disso foi o 2º ano.
Assumindo essas regras de algum protocolo, a interação e recetividade dos regentes depois é boa?
Estela: Maioritariamente sim. Conseguimos fazer mudanças, por exemplo em Anatomia conseguimos mudar as formas de exame. Se dantes era uma gincana (sequência de 4 salas onde vamos respondendo a perguntas, em que em cada sala há um certo tempo cronometrado e passando esse tempo temos mesmo de sair), agora é como se fosse um estilo de prova oral, com dois Assistentes e o aluno. E isso permite-nos ter menos pressão e melhor gestão de tempo. E está sempre presente o Professor que foi daquele aluno, o que dá algum conforto acrescido. Mas claro que existem situações onde os regentes não se mostram tão recetivos às nossas sugestões.
Porque é que é tão importante para si representar os outros?
Estela: Há um sentido de utilidade. Não estou aqui só a estudar e não estou aqui só porque sim, ou para o meu umbigo. É com muito gosto que todos os dias de manhã, mal chego à Faculdade, abro o computador e leio os emails da Comissão de curso. É um sentimento de gratidão que se reflete na minha relação com os outros.
Ao fim de um ano é possível conhecer-se a cara dos quase 400 alunos de um só ano?
Estela: Não, mas consegue conhecer-se muitos deles. Quem segue muito o esquema de vida: casa / aulas e aulas / casa, dificilmente criará uma rede de contactos, mas com o tempo vamo-nos encontrando e cruzando. Especialmente no 2º ano, temos uma forma muito engraçada de fazer horários, porque estamos em várias turmas e com alunos diferentes. Por isso as pessoas ficam misturadas. Isso potencia que se criem relações humanas.
Mas à medida que os anos letivos passam vocês também mudam como pessoas, não mudam?
Estela: Sim…tenho algum medo disso…
Medo, porquê?
Estela: Porque sinto que enquanto seres humanos não somos pessoas de nos dedicarmos a um só tema, somos muito mais diversos do que isso e acho que “ser só Medicina” fecha as pessoas ao mundo. Tenho amigos que estão tão focados, só, na Medicina que apesar de terem outros interesses não se deixam abrir para os desenvolver.
Ouvi-a no Dia do Candidato em que enumerava a quantidade de atividades que desenvolve nesta Faculdade, para lá de ser só estudante. Por que é que as pessoas têm potencialidades e não as querem explorar? Porque dá muito trabalho?
Estela: Porque acreditam que não conseguem conciliar os dois lados, então ficam só a estudar. Uma pessoa consegue conciliar tudo desde que goste verdadeiramente do que faz. Eu gosto verdadeiramente de tudo o que faço. E o medo de alguns deles é que chega aquele ponto em que fizeram tudo tão bem como alunos, tiveram tão boas notas, que depois temem que já não corra tão bem a seguir, se se empenharem noutros projetos em simultâneo. Então mais vale jogar pelo seguro e não se investir tanto. Pelo menos é a minha perspetiva.
Então o seu medo é que à medida que o tempo avance se feche cada vez mais e só no “umbigo da Medicina”, não conseguindo ver mais nada em volta?
Estela: Tenho medo de chegar à prática clínica e de me focar só e só nisso. Uma das coisas que eu mais gosto de fazer, para além de Medicina, é dançar e tenho medo de um dia não conseguir conciliar.
Que tipo de dança?
Estela: Tenho aulas de ballet, jazz, lyrical jazz, broadway, danças latinas.
Este lado da dança é a procura do ponto de equilíbrio para se ser mais livre?
Estela: E é também a melhor forma de me poder expressar sem ter que o fazer explicitamente.
A Estela é tímida?
Estela: Já fui mais do que sou agora, mas considero que preciso de algum tempo com aquela pessoa para efetivamente me expor abertamente. E na dança estamos todos ali para o mesmo, somos um grupo a dançar.
Esta Faculdade é conhecida por ter uma forte raiz em espetáculos: a Noite da Medicina, o Sarau Cultural. Lá pode perfeitamente aplicar estas técnicas não verbais, mas que expressam tanto…
Estela: Fui coordenadora da dança da Noite da Medicina deste último ano (2018) e participei na também no Sarau Cultural!
Como é que se sente uma pessoa tímida que de repente sobe a um palco com centenas de espetadores a vê-la?
Estela: Adoro fazer espetáculo. É um bocadinho contraditório porque aí tenho confiança suficiente em mim para ir… e desfruto. Nessa altura não tenho problemas que as pessoas me estejam a ver.
Já teve momentos em que fez solos?
Estela: Já! E sinto-me bem! Não penso muito se sou observada, aproveito para dançar. Só dançar.
Quais são as expetativas para este 3º ano onde continua a representar tanto os outros?
Estela: Espera-me algum trabalho, mas espero que seja um ano calmo. E se assim for quer dizer que as pessoas estão agradadas com o curso e com o ambiente. Como eu gosto muito de estar aqui na Faculdade, quando assisto a algum tipo de atrito que acaba por causar a crítica e o desânimo nos outros, isso deixa-me um pouco triste. Porque quero que os outros gostem tanto disto como eu. Então, enquanto Comissão de curso, ter menos pessoas a falar connosco será sinal que elas estão mais agradadas e que o ano está a correr bem.
Depois espero, honestamente, que o Mentoring também cresça, que se reforce a entreajuda entre os alunos mais velhos e os mais novos. O Mentoring é a porta aberta que nos recebe e diz: “vocês não estão cá para competir, mas para se ajudarem uns aos outros”.
Porque nunca esquece o princípio que a moveu, quando lhe pergunto onde se perspetiva no futuro, aponta de imediato para a Medicina Interna ou Intensiva, “eu não quero chegar só ao bloco e operar sem saber nada da vida daquela pessoa, percebes? Eu quero criar uma relação, acompanhar”. Defende que o mais bonito em Medicina é a relação médico / doente, acredita que os doentes causam comoção nos médicos e que os anos de experiência não roubam essa mesma comoção. Sabe que poderá vir a passar muitas horas em claro, a estudar um caso mais raro, onde acabará por estreitar o laço entre quem está mais frágil e quem sabe tratar. Mas é isso que quer.
Para já diz estar a viver os melhores anos da sua vida numa Instituição que fala com um orgulho como se fosse um clube onde se joga até ao último fôlego. A cada ano que passa Estela diz que se cresce todos os dias, “nesta casa”, diz-me, “aprende-se a ser uma médica, mas acima disso a ser uma boa pessoa”.
A Estela é movida a uma magia bonita de quem acredita verdadeiramente que fará parte dos bravos que mudarão o mundo, através da bondade.
Foi uma das protagonistas escolhidas para o vídeo Institucional. Como não dar a conhecer a todos a Estela?
Joana Sousa
Equipa Editorial