Reportagem / Perfil
Uma aula com a Professora Susana Constantino
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Combinamos que posso ir assistir a uma das suas aulas práticas de Bioquímica. Marcamos às 11h. Chego sem atrasos, mas encontro a porta fechada e ouço a sua voz lá dentro. Entro a pedir mil desculpas e penso como é possível ter entrado atrasada logo na minha primeira aula dentro da Faculdade de Medicina.
Numa sala que tem só bancadas, frigoríficos e umas máquinas que ainda não me foram devidamente apresentadas, estão 9 alunas, todas raparigas, todas com o cabelo apanhado. A Professora fala entusiasticamente e saltita como se tentasse fintar o tempo que ultrapassou a hora limite da aula. Afinal não cheguei atrasada, mas antes da hora e a 1º turma, das duas que recebe do 1º ano de Ciências da Nutrição, chegou com relativo atraso. As conclusões da aula estão escritas com um marcador, num quadro branco. “Não se esqueçam de dormir bem na noite antes da nossa aula, é muito importante não chegarem atrasadas, como veem 2 horas passam a correr”.
Terminada a aula retiram as batas à pressa e com um ar sério saem a correr para dar vez à nova turma que volta a encher as bancadas.
A Professora arruma a sala e prepara materiais para a nova aula onde repetirá tudo o que acabou agora mesmo de ensinar. Susana Constantino dá aulas de Bioquímica e lidera a Unidade de Angiogénese (crescimento dos vasos sanguíneos) na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, é Investigadora e Diretora Executiva do Centro Cardiovascular da Universidade de Lisboa (CCUL). Respira fundo e vem à porta à procura dos novos alunos que se seguem, cada minuto tem para ela a importância necessária para se cumprir à risca o conteúdo.
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Novas caras começam a preencher a sala, desta vez há um rapaz e acrescenta-se mais uma aluna que, por ter faltado à hora anterior, vem agora pedir para assistir. Há um telefone caído no chão, a Professora pergunta se é de alguém dali, rápido uma das alunas o reclama. Num ritual organizado e a bom ritmo, vestem as batas brancas, é com as luvas que têm maior dificuldade, como se fossem ainda um adereço menos usual. Os telemóveis são guardados discretamente no bolso da bata e visitados muito pontualmente ao longo da aula quando há breves segundos de transição de tema.
“Não ponham nada pessoal nas bancadas onde já esteve sangue”, diz com a naturalidade de uma informação que a mim me é particularmente estranha. Mais ninguém faz um ar curioso ou assustado, apenas eu que me encolho ainda mais no canto ao fim da sala e tiro os pés do chão.
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Chama finalmente nome a nome e conhece os seus alunos, pela primeira vez. A manhã é fria e invernosa, mas a Professora sente o calor claro de quem fervilha energia. A cada nome que chama olha-os por curtíssimos segundos e apenas uma vez. Poucos minutos depois percebo que acabara de fixar todos os seus alunos, associando cada cara ao respetivo nome. “Preciso que sejam pontuais e que estas aulas sejam dinâmicas e interativas”, reforça a Professora impondo alguma pressão no arranque da aula. O que Susana Constantino ainda não sabia era que a dinâmica não era necessária de se pedir, porque dos primeiros minutos de cerimónia silenciosa, surgia a efervescência do pensamento.
Do frigorífico tira então dois pequeníssimos tubos de sangue, cada bancada é constituída por uma equipa e a cada uma delas é fornecido o sangue, dividido em dois tubos; depois ser-lhes-á dado a solução de drabkin e a solução padrão, fundamental para as reações químicas que se seguem. As pipetas, que servem para aspirar e controlar as dosagens de líquidos a colocar nos tubos de ensaio, também já estão nas bancadas. “Quero que saiam diferentes do que entraram nesta aula. As dúvidas só surgem quando temos tempo para pensar em alguma coisa”. Não é em vão que é Professora, Susana Constantino sabe que é na repetição do ciclo da tentativa versus o erro que se ganha a lógica do raciocínio.
Gosta de ter alunos persistentes e autocríticos e mesmo sabendo que vão falhar nas primeiras experiências em laboratório, aquilo que quer é que trabalhem o raciocínio, mesmo que ele seja fundamentado num erro, mas é isso que os ajudará a desenvolver uma sequência de ideias que um dia os pode levar ao resultado certo, ou mesmo até novos resultados até então não descobertos.
Os primeiros minutos naquele laboratório são preenchidos a um silêncio que nos permite ouvir as máquinas a funcionar, principalmente quando pergunta aos alunos se trouxeram o protocolo estudado e impresso. O protocolo deveria ser o manual que os guia ao longo da aula. Nas próximas 4 semanas é importante que se adaptem ao ritmo desta Professora, porque ela não dá tréguas para que se instale o desinteresse, principalmente a quem menos se quer destacar.
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É ao comparar os tubos de sangue que começam a aplicar a terminologia científica que, alguma, já é dominada. É aí também que percebo que numa turma há sempre um grupo ou alguém que vai à frente e se destaca, o que não significa que impere sempre a razão.
“Há uma coisa proibida nas minhas aulas que é não entenderem o que se está a fazer”, afirma calmamente a Professora. Uma das alunas chega mais tarde à aula, subtil, desliza até à cadeira vaga, mas Susana Constantino não a deixa perder o fio à meada, porque sabe que a partir do momento em que alguém faz uma pergunta para o lado, para recuperar a matéria, distrai também aquele que já lá estava desde o começo. Estão todos no mesmo barco e nenhuma equipa é mais fraca porque não o permite, então se alguém fica para trás, todos acompanham e retomam o ritmo.
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São dois ou três os alunos que seguem à frente a apresentar soluções para aquilo que devem ler nos tubos de sangue onde são misturados contrastes diferentes. À medida que a lógica se vai apanhando a confiança também cresce. “Alguém está perdido?”, pergunta a Professora, “Não parem de trabalhar, podem ter o cérebro a funcionar e as mãos a mexer ao mesmo tempo”.
Alguém na sala lança uma dúvida. “Foi uma excelente pergunta da tua parte, faz mais dessas!”. É a dúvida que alimenta o interesse. O tempo que passou trouxe ânimo, afinal os primeiros passos foram dados e há quem os dê de forma mais desenvolta. Uns escrevem tudo o que a Professora diz, outros quase que se limitam apenas a ouvir. A Professora passa a “stôra”, mas não é falta de respeito, são os primeiros laços que se estreitam.
Os tubos de sangue vão à centrífuga, para isolar elementos que o constituem e poder fazer leituras. Os grupos trocam os tubos, perdem a ordem, retomam-na depois de algumas comparações. “Está tranquilo, está fixe”, responde uma das alunas a acalmar o seu grupo de trabalho.
Na simplificação dos dados Susana Constantino consegue puxar o grupo para o seu raciocínio. “Saímos do laboratório e vamos até à cozinha e fazemos um bolo, pesamos ingrediente um a um”.
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Um ou outro levanta-se discretamente e bebe água, sempre do lado oposto ao lugar onde se senta na sala. É nestes pequenos detalhes que se percebe que respeitam a hierarquia da aula e que há regras.
Faltam 5 minutos para esta aula acabar, uns grupos concluíram a experiência com mais agilidade, trocam-se conclusões, mas há sempre um espírito de entreajuda. A mesma voz feminina de sempre do grupo de alunos apressa, “vá lá malta, já estou a ficar com fome”. A Professora reforça a gestão do tempo, “se as aulas não começam à hora, os protocolos não se cumprem, percebem a importância de chegar a horas?”.
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Perceberam sim e motivaram-se. Uns trazem ainda demasiadas convicções próprias, seguros de si, mesmo quando falham tentam encontrar novos argumentos que enriqueçam a Ciência; outros preferem que ninguém os veja. É no equilíbrio das personalidades que se compensam uns nos outros. Mesmo antes de verem os resultados finais, fundamentados pela Professora, todos quiseram dar leituras próprias e tirar conclusões prováveis.
Acaba a aula, despem-se as batas a correr, no entanto, quase todos as dobram com especial cuidado, como se fosse uma peça rara e delicada. Soltam o cabelo e as luvas atiram-se ao lixo. Em segundos a sala esvazia. A Professora volta a arrumar o laboratório.
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Liga o portátil, senta-se e respira fundo. Mais de metade da sua energia ficou ali naquela sala. Há, porém, um sentimento de dever cumprido, igual ao de uma corrida dura que nos leva até à meta sem sabermos bem em que pernas fomos conduzidos.
É só no fim da aula que faço então breves perguntas.
Qual é a importância de haver aulas práticas na formação académica que esta Faculdade dá, quer seja em Medicina, quer em Nutrição?
Susana Constantino: É dar a possibilidade aos alunos de poderem concretizar o conhecimento teórico, despertar a sua curiosidade e criatividade, mas também desenvolver o seu sentido crítico permitindo-lhes refletir e consolidar o conhecimento. Esta aula demonstrou muito bem isso.
E podem surgir novos caminhos da solução quando se coloca algo em prática?
Susana Constantino: Sim, porque no início de uma aula prática os alunos colocam hipóteses perfeitamente possíveis de acontecer. Isso faz com que se promova a imaginação do aluno alicerçada no conhecimento teórico. A teoria traz os princípios que lhes permite pensar e é muito importante pô-los a pensar. Depois a prática permite que reflitam, que sejam críticos e criativos e ao verem o resultado final que consigam perceber a razão pela qual o resultado foi aquele.
Achei muito interessante que pusesse os alunos a pensar, mesmo que baseados no próprio erro.
Susana Constantino: Nas aulas práticas os alunos enganam-se bastante a pipetar. Praticamente todas as aulas práticas teriam o mesmo fim, onde me diriam "eu não cheguei ao objetivo certo porque cometi erros de pipetagem", quando não dizem pior, "se calhar as pipetas do laboratório estavam descalibradas". Não é isto que eu quero ouvir. Perante o erro que é tão certo de acontecer durante a aula, eu quero que eles desenvolvam um raciocínio, na mesma, até ao fim. Sendo eu investigadora, a prática para mim é muito importante, tal como o conhecimento teórico e eu preciso que eles cheguem a um resultado final. Mas antes de chegarem a esse mesmo resultado, alunos diferentes conseguem pensar de formas diferentes e colocar hipóteses possíveis para aquilo que vão obter. Ver só o resultado no fim não exercita o pensamento do aluno. É muito engraçado quando fazem um raciocínio brilhante e a conclusão não vai ao encontro das suas expetativas, porque isso faz com que o resultado prático destrua a sua hipótese e eles obrigam-se a reformular o pensamento. Na primeira aula do dia de hoje a primeira turma chegou à conclusão certa, já nesta segunda aula foram muito mais heterogéneos. Esta última aula foi muito rica para eles porque nasceram imensas hipóteses, eles estavam num constante exercitar do seu raciocínio e apesar disso poder desgastar o Professor e fazer com que a aula fuja um bocadinho do trilho que tínhamos planeado, é muito compensador e temos de os deixar ir. Só temos que ter cuidado porque uma aula prática tem uma duração limitada, e há um momento em que a Professora tem que travar a discussão. Mas enquanto ela é fundamentada, eu deixo-os ir. Na terceira aula prática vamos ter ainda mais erros, porque eles vão pipetar tantas coisas que algumas delas vão fazer mal. Eu não acabo essa aula sem eles terem que me dar uma explicação que não seja unicamente um erro de pipetagem. Quero que eles me digam o que pipetaram a menos ou a mais, que elaborem um raciocínio.
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Há muitas diferenças entre os alunos de Nutrição e os de Medicina?
Susana Constantino: Eu diria que há logo muitas diferenças entre alunos de um mesmo curso, basta algum já ter experimentado outro curso onde já ganhou alguma maturidade de pensar e até de executar. Depois, há turmas muito assertivas e outras não. E numa turma há sempre um ou outro que se destaca porque é mais extrovertido, criativo e leva os outros atrás. Depois também há turmas onde nenhum é assim e onde todos são muito contidos.
Qual é a importância de um protocolo numa aula?
Susana Constantino: É como uma receita que se segue na cozinha. É muito importante. Todos o deveriam ler e estudar previamente; mas foi a primeira aula e eles ainda estão a conhecer as regras.
Será que hoje teria tido este borbulhar de dúvidas e de certezas se não os tivesse provocado tanto para intervirem?
Susana Constantino: Tenho a certeza que não. Os alunos seriam os mesmos, mas o que o Professor exercita a fazer e como os motiva a desenvolverem o seu raciocínio, torna-os completamente diferentes. O aluno sai diferente de uma aula consoante o estímulo e o estilo de aula que tem.
Joana Sousa
Equipa Editorial
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