Momentos
Sara Gonçalves – A arquiteta que desenhou a nova vida da Aula Magna
Percorre a sala como uma menina curiosa que desvenda ainda todos os recantos da sua própria obra. Não gosta de referir que é criação sua, sempre com um sentido muito apurado de equipa, tem particular tentação para valorizar os outros de tal forma como se fosse isso que lhe desse inspiração para depois criar. Não é falsa modéstia, é um altruísmo genuíno imbuído de uma generosidade de artista, sensível aos outros e ao que a rodeia.
Enquanto subimos e descemos a escadaria da Aula Magna encontramos um médico que ensaia para as suas provas de doutoramento que serão na semana seguinte. Pergunta-lhe se é a arquiteta da sala e dá-lhe os parabéns. Na presença da mulher que já ali se sentara há 32 anos atrás perguntamos então o que sentem agora que se junta também uma filha, agora estudante de Medicina. A resposta é clara, com o mesmo sentido de sobriedade há, no entanto, na nova Aula Magna uma leveza e harmonia que nunca existiram no passado.
Arrepia-se, fica emocionada e agradece dezenas de vezes como se estivesse num palco de ovações. Sara Gonçalves conheceu a Aula Magna ainda antes do incêndio, sensibilizada com as palavras de quem elogia o seu trabalho, diz que percebeu a dimensão afetiva que envolvia a sala. Se por um lado estava honrada com o desafio, sabia, por outro, que o peso era agora muito maior. Diz que tem a sorte de fazer aquilo que a apaixona, mas que as emoções dos outros nunca lhe são indiferentes, já que todas as suas criações são dirigidas para eles. O aspeto nobre e solene mantém a assinatura do passado, é um facto, mas o novo verde das cadeiras, a rebater o azeitona original, veio dar a frescura e jovialidade de novos tempos. “O projeto original era um dos projetos emblemáticos do país e da arquitetura moderna”, diz com sentido de responsabilidade e por isso quis repor sem se sobrepor. Tudo pesou de forma fundamental numa sala que é feita hoje e que se impõe para daqui a mais 20 anos, a temperatura, a luz, a acústica, a robótica e o multimédia, foram novos fatores que não pesavam há décadas atrás.
Fascinada com a sala, como se nunca tivesse sido obra sua, passeia e descreve-a, sem precisar de lhe lançar qualquer pergunta. Ponho a gravar a voz e sigo-a sem interrupções.
Sara Gonçalves: No teto original encontrávamos 2 níveis de altura. Tínhamos lá em cima calhas técnicas, ventilação, um cat walk que era uma passadeira que os técnicos tinham que usar, rastejando, para fazer a manutenção do teto. Essa foi uma das minhas grandes preocupações. O teto estava muito danificado e ao mexermos na sala tínhamos que fazer algo que facilitasse a sua manutenção e que conferisse propriedades acústicas favoráveis à sala. Partimos de duas premissas, uma delas a questão técnica e acústica. O nosso fantástico engenheiro acústico calculou todas as inclinações dos painéis de fletores e de absorção sonora para que o teto mantivesse esta inclinação da concha que vai do anel superior até ao ecrã. Depois, havia que conferir algum dinamismo e não ter painéis muito bem comportados e alinhados, mas respeitando a inclinação. Então, a ideia foi que pudéssemos mudar o seu comportamento e perturbá-los, dando-lhes ritmo. Demos ligeiros toques no canto de cada um dos painéis e fizemos um jogo. Ao tocarmos num vértice, automaticamente, eles ficaram subtilmente tortos. Nenhum está igual ao outro. Já viu? (Aponta) A equipa técnica foi fantástica porque repetiu ponto por ponto. Parece-lhe que vão cair, mas não vão, estou muito bem suspensos. (Ri-se) Mas há aqui outra questão e que se prende com a manutenção, com o teto aberto estão lá em cima escondidos os detetores de incêndio e toda a cablagem; todas as ligações estão acessíveis sem que ninguém rasteje, sob uma passadeira, para chegar aos vários pontos.
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Descobri só hoje aqui consigo que à nossa volta estamos rodeados de portadas de madeira completamente discretas e que todas abertas deixam entrar uma luz que “rasga” a sala.
Sara Gonçalves: Quando entrámos na sala depois do incêndio o cenário marcou-nos… O cheiro é algo indescritível que não lhe consigo descrever por palavras, nem as imagens conseguem retratar…Havia nesta sala um cenário devastador, mas ao mesmo tempo algo doce e bonito e que era uma luz linda e doce que entrou pela sala nesse dia de novembro. O cenário era algo tétrico, mas depois com uma iluminação linda. Nesse dia ficou para mim claro que a sala tinha que ter luz natural.
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Mas já conhecia a sala antes do incêndio?
Sara Gonçalves: Sim! Na primeira abordagem ao projeto da nova Aula Magna, a sala ainda estava intacta. Uns meses depois recebemos um telefonema e ficámos estarrecidos. Nessa altura percebemos que um projeto que já tinha iniciado teria que ser mudado, porque teria de ser muito mais invasivo. A sala não estava em condições de ser recuperada na sua maior parte. Tivemos atenção muito mais redobrada às questões da segurança, ela passou a estar no topo de todas as prioridades. Há hoje em dia nesta sala um pormenor muito interessante, quando uma pessoa chega atrasada, as cortinas são automáticas e fazem blackout. Assim, ao entrar atrasado na sala, a luz não perturba o evento. Mas ser automática não é uma frescura, é uma questão de segurança. A cortina está numa antecâmara de emergência e desenfumagem e ali estão portas corta-fogo e em caso de incêndio a cortina nunca será um obstáculo, recolhendo automaticamente mal a porta abre. A própria guarda de vidro aumentou para 1mt10 porque assim ninguém cai se se debruçar. No passado era apenas uma barra de latão e que tem impresso o Juramento de Hipócrates (versão inglês e português).
Mas depois quisemos respeitar tudo o que eram características do passado, os painéis de madeira e que antes eram de napa na parte superior. Mantive todo o desenho original, toda a métrica dos quadrados e que tentei replicar exatamente para os painéis do teto. Em relação à luz da sala, quando a vi a primeira vez, ela tinha umas cortinas de veludo amarelo que se fechavam por completo. Então tentei criar dois ambientes, ou com total luz natural, ou sem luz alguma do exterior. Criou-se um sistema oculto com portas que não mostrassem que se podiam abrir. E resultou muito bem! A equipa de carpintaria foi absolutamente extraordinária. A empresa de construção está de parabéns. Toda a equipa, que aqui se juntou, trabalhou sempre do lado da solução e não do problema.
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Qual foi a maior de todas as dificuldades que encontrou aqui?
Sara Gonçalves: Soubemos desde o começo qual seria a maior dificuldade e assumimo-la com muito orgulho. Era a distância entre cadeiras e que é a original desde os anos 50. À época, a distância era de 80cm entre cadeiras e hoje em dia é de 1m10. Isto porque as pessoas cresceram, a estatura física alterou. Se quiséssemos aumentar a distância entre cadeiras, precisaríamos partir os degraus de betão do projeto original. Ou fazer um novo estrado, sob o chão que já existia, e alargando as filas, obra que seria muito complexa e que destruiria toda a geometria da sala, reduzindo os lugares. Então decidi respeitar o passado, debatendo-me com a dificuldade de encontrar uma solução de conforto. Com a escolha da cadeira tínhamos que encontrar uma cadeira pequena, muito geométrica e completamente rebatível, mas que quando uma pessoa se sentasse, as costas levantassem. E encontrámos essa cadeira. O assento rebate e automaticamente a postura é confortável. Então sabe o que aconteceu? Com a escolha desta cadeira, conseguimos ganhar espaço, as pessoas no passado tinham que se sentar de lado e hoje não chegam a tocar com os joelhos na cadeira da frente. Com a cadeira fechada conseguimos cumprir os regulamentos atuais de evacuação de incêndio, tendo um corredor largo para que as pessoas possam sair repentinamente.
E há mais, o seu sistema de oscilação é mecânico. Sabe que foi o Sr. Costa que me passou muito bem esta preocupação de manutenção dos materiais, até por uma questão de custos.
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Fala sempre da equipa, mas a decisão arquitetónica é sua. Há aqui uma assinatura.
Sara Gonçalves: Sim enquanto programa definido em conjunto com a equipa da Faculdade. O que me limitei a fazer e que entendi enquanto arquiteta que estava a pegar numa obra desta natureza e com estes requisitos, era que não estava a fazer uma peça de autor. O desafio foi responder a um programa que era necessário e que devia ser funcional para quem precisava de usar a sala. E corresponder às expetativas do ponto de vista emocional e estético de quem sempre usou e continuará a usar a sala. Vi-me sempre muito mais como o meio para chegar a um resultado final. Agora, claro que para um arquiteto que desenha algo, é impossível não se apaixonar pelo seu trabalho, porque dá sempre o seu cunho. E o meu cunho ficou nas portadas e no teto. O teto é o ponto de “distúrbio”. (Ri) Na harmonia que existe na sala e enquanto uma pessoa está a assistir a uma palestra, ou evento, muitas vezes precisamos de um sítio para prender o nosso olhar. O teto pretendeu criar esse desassossego ao olhar, “mas o que é que se passou aqui?”, vão pensar as pessoas. Foi apenas uma forma de passear o olhar sem tirar a concentração dos discursos que serão ditos. Já viu que a Natureza é falsamente perfeita? Então, como as nuvens que têm diferentes formas no céu, quis criar essa dança no teto.
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As obras são “filhos” que se vão deixando para que todos possam admirar e cuidar?
Sara Gonçalves: Sempre! Tentamos fazê-las da melhor forma possível, mas sabemos que nunca haverá a obra perfeita. Nunca. Mesmo quando todos olham e não notam nada, nós olhamos para as imperfeições e também olhamos para o que saiu melhor do que o esperado. Depois aceitamos tudo exatamente como está e tal como um filho aceitamos as imperfeições e as qualidades.
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Joana Sousa
Equipa Editorial