Roteiro da Memória
Lurdes Alves – a alma que se dá aos lugares
Foi uma das pessoas que mal viu a notícia do incêndio ligou de imediato a Isabel Aguiar, Diretora de Serviços da Faculdade, a perguntar se era verdade o que estava a ver na televisão.
A sua sala de excelência estava a arder e com ela um passado de 25 anos de dedicação que só seria suportado agora pela memória e em registos fotográficos.
Atualmente com quase 70 anos e com origens perto do Cartaxo, veio viver para Lisboa aos 17, com o tio, recorda que nessa altura tinha como vizinho Marcelo Caetano. Aí viveu durante mais de 40 anos.
Lurdes Alves entrou na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa dia 2 de dezembro, tinha 35 anos. Veio pela mão de um amigo dos pais, o Sr. David, tesoureiro da Reitoria. Começou como empregada de limpeza, mas ficou nessas funções apenas um ano. O seu cuidado no trato com os outros e o sentido apurado de responsabilidade, cedo a destacaram do seu grupo, levando-a a ocupar o seu novo lugar, a gestão das rotinas diárias da Aula Magna.
Nos dias em que havia sessões solenes e provas, chegava entre as 07h30 e as 08h para aquecer a sala com tempo, consoante o Professor, sabia que tinha de trazer um reforço de aquecedores para que a temperatura fosse a desejável. Sabia lidar com todos, estrangeiros, ou os da casa, nunca se atrapalhou em encontrar a solução mais adequada para que a sala cumprisse os meios técnicos necessários. Garantia que tudo estivesse apto tecnicamente, com microfones e projetores a postos.
Encontramo-nos na nova Aula Magna, apresenta-se impecavelmente vestida e perfumada e tem o cabelo a rigor, não é todos os dias que se regressa à casa que se sente falta. Sentada na primeira fila, na fileira do meio aponta o dedo e o olhar para um dos cantos da sala e diz que "era precisamente naquele cantinho, que controlava qualquer contratempo". Seguia o protocolo à risca e em dias formais apresentava-se com semelhante solenidade, de roupa escura, e nos dias das sessões clínicas andava de bata. Nos Doutoramentos se o candidato não soubesse quando se levantar, Lurdes acendia um ponteiro de luz no chão e, discretamente, fazia sinal do passo seguinte a dar.
Conta que há provas que a marcaram até hoje e que não era por desconhecimento, mas por personalidade, " a Professora Carmo (Fonseca) vinha de calças para a prova de Doutoramento e isso não era nada habitual, mas quando a Professora chegou aqui já tinha muito boa fama, já todos sabiam que ela ia ser um ás nas provas". "Depois houve outra prova que me marcou muito porque chumbaram uma pessoa, foi a única que vi chumbar até hoje e custou-me muito".
Já no seu tempo se faziam transmissões do bloco operatório para a sala, em direto assistiam-se às intervenções, alunos, médicos e a Lurdes. Se de início saía do Hospital e tudo lhe cheirava a éter, diz depois que ganhou tanto calo que até às operações assistia, embora “nesse dia só não fosse almoçar".
Passou por duas remodelações de sala, na primeira versão com cadeiras verde azeitona, assistiu à segunda com o vermelho e vê o regresso ao verde que agora é lima. Gosta da sala atual tal e qual está, como numa casa que precisa de sofrer mudanças, também esta sala precisava de mudar, "porque quando se muda é para melhor".
Fala com a mesma dose de respeito quanto de carinho sobre os Professores que diz serem quase família, Fernando Pádua, Carlos Ribeiro, Gonçalves Ferreira são os que refere de imediato. Trabalhar numa Faculdade inserida no Hospital foi como uma bênção que diz ter recebido, porque diante dos graves problemas de saúde da família mais próxima e de alguns mais leves seus, teve sempre o médico certo a acudi-la.
Perdeu o seu primeiro marido tinha apenas 44 anos, desse casamento tem um filho e uma neta. Tempos mais tarde viria a apaixonar-se de novo por um colega seu da Faculdade, o seu companheiro atual, Paulo.
Foi o seu espírito de missão com os outros que a fez deixar a Faculdade de Medicina e a sua querida Aula Magna, para ir cuidar da mãe já doente e do seu negócio de restauração. Lamenta ter deixado a sua casa de trabalho e parte da sua vida, mas precisava de ir cuidar do que era seu. Atualmente acompanha de perto um primo que tem 80 anos, leva-o ao médico e aos exames, na verdade diz que "tanto faz ser família ou um estranho", porque tem que ajudar quem precisa. Diz que "Deus ajuda a levar a vida" e que tem sorte por ter o que tem. Mulher independente agarra no carro e vem sozinha para Lisboa, não deixando de comparecer à inauguração da nova Aula Magna e ao convite para uma entrevista.
Ainda hoje sente saudades de trabalhar com os Professores com quem diz ter aprendido até a ganhar olhar clínico para os assuntos. "Quando cheguei ao hospital com a minha mãe já sabia que ela estava a ter um avc, só depois a médica o confirmou, depois de ter negado inicialmente. Como dizia o Prof. Pádua, só me faltava o canudo".
Num dia normal de trabalho escorregou nas escadas do Hospital e partiu o braço. Rapidamente alguns Ortopedistas do Hospital dirigiram-se às urgências para ajudar a Lurdes e colocar-lhe o osso no lugar. Preocupados com um Congresso de Ortopedia que decorria na Aula Magna e com o braço engessado assumiram o compromisso que Lurdes ficaria a dar assistência ao mesmo, mas apenas a dar indicações, enquanto os médicos assumiam as suas funções audiovisuais.
Deixamos a sua sala de sempre. A Lurdes sai como se voltasse já amanhã. E eu fico com a certeza que a sala será sempre um pouco dela.
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Joana Sousa
Equipa Editorial