Reportagem / Perfil
Entre o ontem, o hoje e o amanhã: Entrevista com Prof. António Vaz Carneiro
É usual vê-lo sempre de forma acelerada, a passar pelos corredores da Faculdade de Medicina. É o homem dos 1000 ofícios e a sua agenda, diz quem trabalha com ele, é caótica. Com um ritmo muito próprio, o Professor António Vaz Carneiro dispensa apresentações. Muitas das suas realizações académicas e profissionais tiveram como palco a FMUL.
“Owner” da evidência em Portugal, o Professor António Vaz Carneiro dedica grande parte do seu tempo à promoção dos estudos científicos, que visam esclarecer a população sobre os mitos e verdades pouco dogmáticas, no que diz respeito à saúde pública.
Nasceu em Vila Real, em Trás-os-Montes, a 28 de Fevereiro de 1951. Filho de um Engenheiro e de uma típica dona de casa, da década de 50, cresceu no seio de uma família tradicional. Com orgulho das suas raízes, garante que o mundo na altura era completamente diferente: “ Uma cidade da província, nos anos 50, era uma coisa extraordinária! Um estilo de vida absolutamente único.”.
Não querendo ser demasiado intrusiva, no que concerne à sua vida familiar, há algum motivo mais pessoal, e que queira partilhar connosco, que o tenha feito escolher Medicina?
Fui para Medicina não por talento, nem nenhuma chamada especial. Fui porque gostava de ter uma vida livre de patrões. Depois, é claro, a medicina transformou-se muito e eu acabei muitas vezes por ter patrões (Risos). Queria ser o chamado “artesão individual”, não me agradava a ideia de trabalhar das 9h-17h, num escritório. Não era esse o meu modelo de felicidade. Embora, me considere um médico competente, não tinha, na altura, nenhum talento especial, penso que também teria sido um bom engenheiro. Em bom rigor, o ser bom numa profissão pouco tem a ver com o talento individual, tem é a ver com trabalho.
Então, já rebate aqui uma ideia: Quando há uma corrente que defende que o bom médico, o bom futuro médico deve ser igualmente tão bom aluno como ter vocação...
A vocação ajuda. Mas hoje em dia a prática clínica nada tem a ver com aquilo que era, há 40 anos atrás, quando me formei. O tipo de vocação que eu precisava há 40 anos, não é a mesma que preciso hoje. Eu tenho prazer em tomar conta de pessoas, mas a prática clínica é uma opção muito difícil, por vezes muito tensa, porque temos de lidar com a dor e com o sofrimento. Na minha perspetiva, o talento para se ser bom médico tem acima de tudo que ver com a maneira de compreender o ser doente. A Medicina foi alvo de grandes mudanças e nesse sentido, as vocações que se tinham naquela altura são bem diferentes hoje em dia. A profissão médica é feita por grandes sistemas, já não é feita pelos “artesãos” e brevemente haverá uma altura em que os médicos individuais irão desaparecendo. Os doentes passam a ser assistidos por equipas: equipas de hospitalares, de cuidados primários, continuados, etc. Equipas que se substituem umas às outras.
E como é que fica a relação com o doente?
Terá tendência a ser substituída por outra forma de relação.
Então, não é importante?
É importante, mas perde-se. Os doentes têm determinadas expectativas em relação aos médicos e têm determinadas expectativas em relação ao sistema que os vai tratar. Mas, habitualmente não conhecem o médico, nem o sistema. E nunca poderão conhecer plenamente. Ao contrário do que as boas intenções possam dizer, os doentes não compreendem os riscos, as probabilidades, a fisiopatologia das doenças, no fundo não sabem o que é que pode vir a acontecer e, portanto, é um diálogo muito difícil. Se o doente não compreender aquilo que lhe quero dizer, o que pode acontecer é que ele vai decidir com a sua intuição e portanto com maior hipótese de resultados maus. Relativamente aos problemas da relação médico-doente, o problema raramente é a negligência ou a incompetência do clínico (embora exista, claro). Não. É de comunicação. 80% dos casos é de comunicação. A relação de médico-doente é uma relação desigual: nós temos acesso a informação que os doentes não têm, logo a nossa obrigação é tentar comunicar o melhor possível com eles. Agora, temos de aceitar o grau de incerteza dos fenómenos biológicos, que implica que nunca se saiba o que vai acontecer: por exemplo, um estudo diz-me que naqueles 5 mil doentes que tomaram determinado medicamento, aconteceu o efeito X, em princípio os meus doentes vão responder de igual forma ao tratamento mas, às vezes não. Esta incerteza também afeta a relação com os nossos doentes. Nós estamos sempre à procura de certezas e a maior parte dos doentes não entende que isso não existe. E a verdadeira razão pela qual os doentes escolhem os médicos é algo curiosa…
Qual é o verdadeiro motivo?
Pela reputação, o que parece lógico. Mas onde é que os médicos ganham essa reputação? Quem é a fonte mais fiável de reputação dos médicos?
Quem?
Comecemos por equacionar o problema: uma das maneiras de avaliar a reputação real de um médico seria perguntar diretamente aos seus doentes. Há vários estudos sobre isso, feitos na Inglaterra, Canada, Estados Unidos que levaram a cabo uma avaliação com o objetivo de definir – na perspectiva do doente - aquilo a que se chama competência clínica. Mas estes estudos demonstram que muitas vezes não há qualquer relação entre a proficiência médica e a reputacional do clínico individual…
E na sua opinião, esse reconhecimento deveria ser feito também tendo em conta a opinião dos pares?
Exatamente. A opinião profissional interpares é de grande importância. É isso que fazem os médicos nos E.U.A. Todos os anos sai no New York Times uma listagem, onde se pergunta, por exemplo a 100 médicos pneumologistas, ou a 100 pediatras, ou a 100 cardiologistas quem são os 3 melhores médicos da sua especialidade em NY. O ranking final é muito útil para o doente, já que lhe dá a opinião dos pares sobre os médicos individualmente. Por exemplo, quando um doente meu me pede para eu lhe indicar um oftalmologista, eu refiro-o para um colega em quem tenho confiança, que conheço e com que até já trabalhei. Porque é que esta informação, tão preciosa, não é pública? (Já estou a ver o nervosismo de alguns perante esta sugestão…) (Risos).
No seguimento das constantes referências aos Estados Unidos: Tivemos a oportunidade de olhar para o seu percurso académico/profissional e pudemos verificar que passou algum tempo, quer da sua formação académica, quer profissional no estrangeiro. Parece que os Estados Unidos foi, de facto, um local marcante para o seu currículo. Gostaria de partilhar connosco como surge a oportunidade de estudar e trabalhar nos E.U.A?
Isso é uma longa história…
E como é que começa?
O 25 de Abril apanhou-me no meu 4º ano…
Aqui na Faculdade?
Sim. Pois bem, o 25 de Abril destruiu o curso, ou seja, não houve aulas nesse ano, não houve exames, passou toda a gente. No 5º ano, os exames foram à volta de uma mesa, onde o assistente fazia uma pergunta a cada aluno e toda a gente tinha a mesma nota. No 6º ano começaram a fazer exames um pouco mais apertados, mas a avaliação era apenas “Apto” ou “Não Apto”. Não havia notas. Portanto, passei os anos seguintes a transformar os “Aptos” e “Não Aptos” em “16”, “14”. Bom, o que importa aqui é que cheguei ao 6º ano e reconheci que pouco sabia de Medicina. Pensei cá para mim: “É melhor ir para um sítio qualquer para aprender!” E qual seria o melhor sítio naquela altura? – A América. Os exames para a América eram muito difíceis. Apenas uma minoria conseguia entrar. Resolvi, então, que tinha de tentar fazer os exames para ingressar também no Reino Unido. Assim, matavam-se dois coelhos com uma cajadada só: se chumbasse nos exames dos EUA, sempre poderia ir para Inglaterra. Durante cerca de 4 anos estudei e sujeitei-me a exames sequenciais, quando tudo aquilo terminou tinha passado nos exames americanos e nos exames ingleses. Era só escolher. Escolhi os Estados Unidos. Os Estados Unidos eram (e isso não se alterou até aos nosso dias) o “sítio” da Medicina.
Mas, não foi sozinho…
Não. Fui com mais dois amigos, que depois ficaram lá mais tempo do que eu. Estive vários anos em Nova Iorque e em São Francisco. Ao final de algum tempo, verifiquei que não queria lá ficar.
Porquê?
Porque não me interessava aquela sociedade. Nunca fui emigrante. A minha ideia era ir e vir. Mas, não me interessava viver na América. Era uma sociedade altamente criativa, como nenhuma outra, um local fabuloso para trabalhar (as condições!) mas o estilo social, a estrutura… Depois, tinha cá os meus pais já idosos e senti que devia assumir a responsabilidade e regressar para lhes dar assistência. Não tive qualquer hesitação e nem nunca me arrependi. A decisão foi deliberada.
Relativamente a este mindset americano, com origem na sua formação, foi ele o principal impulsionador do seu interesse pela Medicina baseada em Evidência?
Foi. Quando um doente era admitido, por exemplo, no meu hospital em Nova Iorque não havia processos eletrónicos, era tudo em dossiers e papel. Acontecia muitas vezes, que o doente que estava internado tinha no seu dossier um artigo médico, que era relevante para aquele caso concreto. Pelo que havia sempre alguém que tinha a preocupação de fundamentar cientificamente aquilo que estávamos a fazer pelo doente. Criei o hábito de ler todos os artigos relevantes para o caso específico. Foi aí que verifiquei a importância extraordinária da ciência clínica como base de apoio à decisão. Hoje é muito mais assim. Portanto, foi isso que me transformou totalmente o mindset para uma educação médica baseada na evidência científica, até porque hoje estuda-se tudo: doentes, doenças, o sistema de saúde, intervenções diagnósticas, prognósticos… Hoje é muito difícil dizer-se que não se tem informação quando temos uma pergunta clínica. A questão é: Onde é que está essa informação? Onde é que a localizo? Em que base de dados? E, depois, perguntar se o que tenho na mão é bom! Foi isso que a Medicina baseada na evidência veio trazer. Se o estudo for bom, guardo-o. Se não for bom, vai para o lixo. Portanto, isto transformou radicalmente a prática clínica.
Mesmo baseando-se em estudos de análise do nível de evidência o Professor é, por vezes, portador de mensagens pouco consensuais no campo da Medicina, o que pode levantar algumas reações junto dos seus colegas de profissão. Como é que o Professor lida com as opiniões diversas da sua?
Penso ter uma vantagem: a metodologia que utilizo protege-me de processos de intenção. Tento sempre justificar tudo. Para contrariarem aquilo que eu digo, as pessoas têm de utilizar a metodologia idêntica à que eu utilizei: a ciência clínica. Caso contrário, não existe discussão possível. A minha opinião pode até ser irrelevante para as pessoas, porém, quando tenho de a expressar, gosto de balizá-la e fundamentá-la, de maneira transparente e explícita. Se as pessoas lerem aquilo que eu leio e interpretarem como eu interpreto, concluem como eu. Mas, já tem havido discussões em que dou a mão à palmatória: “- És capaz de ter razão. Essa interpretação do estudo é melhor!”. Eu só reconheço a metodologia científica como base de apoio à decisão. Se alguém me quiser mostrar outra e compará-las, estarei aberto a essa discussão, mas até hoje nunca aconteceu. Eu sei que os antibióticos não tratam o cancro, ou que um antidiarreico não trata a cefaleia. Tenho estudos que me dizem para que serve uma coisa e outra. As coisas estão à nossa frente. Ou, o estudo não é bom, ou é e, nesse caso, não podemos ignorá-lo, porque se não quem sofre são os doentes. A esta evidência estritamente científica deverá adicionar-se a experiência clínica do médico, que é uma fonte muito importante de informação, já que capta uma realidade que a ciência clínica não consegue: por exemplo, os meus doentes idosos têm sempre pelo menos 4-5 doenças. Não há estudos em doentes com este número de comorbilidades.
Professor, sem querer aprofundar as suas decisões profissionais, mas na tentativa de compreender melhor algumas das suas opções, porque diminuiu a intensidade da sua prática clínica?
Não foi uma decisão nada fácil. Eu diminuí consideravelmente a minha atividade clínica, porque, não tinha tempo para fazer tudo. Cheguei a um ponto em que tive de fazer uma escolha, pois sentia que me arriscava a fazer mal as duas (clínica e académica). Nos E.U.A treinei intensamente para ser médico e quando regressei, trazia comigo os standards americanos, era aquele modelo que queria seguir. A questão é que a organização do sistema não me permitia fazer – com a intensidade que eu desejava - as duas coisas ao mesmo tempo, a chamada medicina académica. Enquanto, na América isso é possível, em Portugal é muito mais difícil, ainda que cada vez as coisas estão melhores. Ora, se eu estava 50h ou 60h no hospital, restava pouco tempo para a parte académica, ainda para mais, porque fazia uma ou duas urgências de 24h, por semana… Não tinha disponibilidade para chegar a casa e pensar em Ciência. Portanto, foi uma decisão complicada, mas muito natural.
É habitual vê-lo sempre a 1000 a hora a passar pelos corredores ou do Edifício Central ou do Egas Moniz, quantas horas tem afinal o seu dia? Como é que se organiza?
Em primeiro lugar, porque esta é a minha natureza, em segundo lugar porque gosto muito daquilo que faço e, é por isso que, por vezes, aceito e assumo quantidades de trabalho que habitualmente as pessoas não assumem. Mas, também só assumo aquelas que considero importantes, não as que me possam consumir inutilmente. Sou bastante organizado: todos os dias estudo 1 hora, das 8-9 h, utilizando artigos e estudos que seleccionei das melhores 12 revistas da área da Medicina Interna durante o fim de semana anterior (faço um scan dos artigos e guardo os que têm de ser lidos logo e os que podem ir para o meu sistema de informação pessoal, que contém milhares de pdfs devidamente classificados, para fácil acesso). Tenho tempo para jogar ténis 2 vezes por semana e todos os dias janto em casa com os meus filhos e a minha mulher, apesar de trabalhar 12h por dia, tenho esse cuidado.
Relativamente à Faculdade, qual considera ter sido a sua maior vitória?
A criação do Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência. O CEMBE é um centro único no país e um dos grandes centros Europeus, nesta área.
Professor, como é que consegue conciliar a docência com a investigação e gestão e a quantidade de cargos que tem atualmente na nossa Instituição?
Antes de mais, e como já disse, tento ser altamente organizado, só assim serei capaz de responder à maior parte dos desafios. Às vezes há momentos mais complicados, mas contornáveis. Mas, sim. É muito difícil recursar um convite, principalmente quando parte da Instituição que sirvo, porque parto do princípio que se a Instituição nos pede algo, é porque já analisou todas as opções alternativas. É muito difícil dizer que não nestes casos. De resto, preciso de estar constantemente a pensar e a criar coisas, porque é isso que me dá prazer. E as coisas correm bem também porque tenho um conjunto excepcional de pessoas com quem trabalho e é justo reconhecer que sem elas (no CEMBE, no IMP, no IFA, na AIDFM, etc.) nada seria possível. Tenho imenso gosto e honra em trabalhar com equipas de excelência como as que tenho na FMUL. É o que justifica a minha existência no campo profissional.
Isabel C. Varela
Equipa Editorial